O Brasil viveu uma melhora das condições socioeconômicas nos últimos anos: aumento de salários e queda da desigualdade social. Mas, ao contrário do que se esperaria, as mortes e os roubos só aumentam. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que 58.559 pessoas foram vítimas de mortes violentas intencionais em 2014 no País. Isso significa uma morte a cada nove minutos, em média. A categoria inclui homicídios dolosos, lesões corporais seguidas de mortes, latrocínios e ações policiais.
O índice de mortes violentas intencionais aumentou quase 5% em relação ao ano anterior. Para entender esse fenômeno que “deixa os pesquisadores boquiabertos”, a Brasileiros conversou com a pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Roberta Astolfi: “A gente tem que ter muito cuidado quando a gente associa a questão econômica à violência e homicídio, principalmente à violência letal. Existe uma relação, mas não é direta. A gente fez isso por muitos anos e, mesmo com o aumento dos salários e a redução da desigualdade, vimos crescer em muitos lugares a violência letal. A gente sabe que a América Latina é o lugar mais violento do mundo, se comparamos com outras regiões, em termos de violência letal. E a América Latina não é o lugar mais pobre do mundo”.
Leia alguns trechos da conversa abaixo:
Revista Brasileiros – Por que vocês usam essa categoria de mortes violentas intencionais?
Roberta Astolfi – Mortes violentas intencionais não é uma categoria da polícia nem no código penal, é uma categoria nossa para agrupar crimes que tem semelhanças muito fortes e que podem ser combatidas com políticas semelhantes. O homicídio doloso, categoria tradicionalmente usada, no estado de são Paulo, para chamar atenção para queda de homicídios. Mas isso deixa na sombra questões muito importantes, como latrocínio, que são roubos seguidos de morte. As pessoas não sabem que latrocínio não está sendo incluído em homicídio doloso, mortes por policiais também não.
As condições socioeconômicas no Brasil melhoraram nos últimos anos. Por que a violência cresce?
Temos que tomar cuidado ao dizer que a violência cresce. Quando a gente pensa em estupro, violência sexual, o número vem aumentando até o ano passado e esse ano apresentou uma leve queda. Embora tenha acontecido na maioria dos estados, a gente não sabe se foi uma questão de notificação, temos que esperar mais um tempo para ver se é uma boa noticia mesmo. De qualquer modo, mudou a lei. Vários crimes começaram a ser notificados como estupro, como atentado violento ao pudor. Tem um aumento da notificação. O crime do estupro é muito característico. Às vezes tem um ano com mais conscientização, então tem mais notificação. Esse é um dos crimes mais subnotificados, em torno de 35% dos crimes é notificado.
Homicídios no Brasil cresceu. No estado de São Paulo e do Rio de Janeiro o homicídio doloso caiu nos últimos dez anos, bastante. Roubo cresce. É uma coisa surpreendente. Os pesquisadores estavam esperando que com a melhora das condições socioeconômicas , a violência diminuiria. Mas aumenta-se a circulação de riqueza, então pode também aumentar – por exemplo de crimes contra o patrimônio.
Mas a desigualdade caiu também, né?
Mas você tem mais circulação de riqueza, mais produto. Ou o crime organizado, ele responde a uma lógica diferente. O curto espaço de tempo dessa melhoria não seja suficiente para produzir uma queda nessa criminalidade. Mas essa é uma questão que ainda está sendo debatida. Não temos uma resposta definitiva para isso.
O centro de São Paulo, por exemplo, é onde mais tem roubo e furto. Porque tem mais pessoas, mais objetos circulados. Não é só uma questão de comer, morar, tem uma necessidade de status, do consumo. Essas questões não estão resolvidas, nem de longe. Tem mais dinheiro para consumir droga, por exemplo. O tráfico é uma categoria criminal mais arbitrária. Como ela é proibida, o crime nasce a partir da proibição.
E como combater a violência, então?
Em relação à questão de homicídios e crimes violentos letais, é quase um consenso entre as pessoas que estudam o tema de que a circulação de armas é determinante. Arma de fogo facilita o cometimento de vários crimes. O controle de armas não resolve tudo, mas é fundamental.
O Estatuto do Desarmamento não é suficiente?
Ele dá as diretrizes. A apreensão de armas caiu. Mas pode ser um problema da polícia ou então tenha menos armas em circulação. Quando o estado de são Paulo teve uma política muito forte de apreensão de armas nos últimos 10 anos, tem uma redução de homicídios muito forte. É um fator que provavelmente teve um impacto.
A gente tem que ter muito cuidado quando a gente associa a questão econômica à violência e homicídio, principalmente violência letal. Existe uma relação, mas não é direta. A gente fez isso por muitos anos e mesmo com o aumento dos salários e a redução da desigualdade, vimos crescer em muitos lugares a violência letal. A gente sabe que a América Latina é o lugar mais violento do mundo, se comparamos com outras regiões, em termos de violência letal. E a América Latina não é o lugar mais pobre do mundo. Nem com guerra. Então não está ligada apenas a fatores socioeconômicos. Essa foi uma grande lição que o Brasil teve sobre a questão da violência. É uma relação bem mais complexa, mediada por outros fatores. O fator cultural, por exemplo. Principalmente na América Central, temos alguma coisa parecida no Brasil, tem as questões das gangues locais, do crime organizado. Está muito ligada à questão do homem, do macho. E a gente sabe que quem mais mata e morre é o jovem. Muitas vezes a violência ta ligada ao grupo etário. A violência cai há décadas na Europa ocidental, muito relacionado ao envelhecimento da população.
Realmente deixamos os pesquisadores boquiabertos. Como pode essa dificuldade em lidar com essa questão?
Outro número que vocês levantam é o de adolescentes cumprindo medidas socioeducativas. Cresceu 443% entre 1996 e 2013. Por que esse número e o da população carcerária cresceram tanto? E qual a relação disso com o crescimento da violência? Quanto mais se prende maior a criminalidade ou se prende mais justamente pelo aumento da criminalidade?
Essa é a pergunta de U$ 1 milhão. Dificilmente o encarceramento vai trazer uma redução da criminalidade. A gente está vendo isso ao longo dos anos. A população carcerária brasileira e a relação com os crimes é diversa. Às vezes aumenta e outras diminui o crime. Pessoas que vão presas por crimes eventuais são engendradas nesse mundo e acaba aumentando o contingente de pessoas envolvidas no crime profissionalmente.
O crescimento de prisões no Brasil é proporcional ao aumento de crimes?
Temos que separar por crimes para responder. No caso das drogas, depois da lei de drogas de 2006, a gente não tinha a figura do usuário como não criminoso. Então a expectativa que se tinha na época é que diminuiria o número de presos por droga. Mas o que aconteceu foi exatamente o oposto, um punitivismo exacerbado, uma preocupação dos operadores da justiça que aquilo traria um grande drama social porque a lei descriminalizava o usuário, que cumprira medidas ligadas à saúde publica. Mas muitos que poderiam ser enquadrados como usuários, foram considerados traficantes. E aí fica a pergunta: o que é um usuário e o que é um traficante. Então teve uma explosão do número de prisões por tráfico a partir de 2006 que não corresponde ao aumento do tráfico em si.
Por outro lado, quando as pessoas permanecem mais tempo, você também pode aumentar a população carcerária. Você tem a lei dos crimes hediondos, que tornou a pena para certos crimes maiores.
Apesar disso, você tem uma taxa de solução de homicídios baixíssimo no País. Prende-se muito e prende-se mal.
Se o número de esclarecimento de crimes é baixo, por que as prisões são tantas?
Tem muito flagrante, de droga, de roubo. A droga é um crime que a maioria vai preso em flagrante.
Apesar do número de mortes de civis ter aumentado, o de policiais caiu. Por quê?
O número de policiais mortos a gente não pode dizer que caiu, porque o número é muito pequeno. Vamos combinar que ele está estável. Por outro lado, o aumento de civis mortos pela polícia foi estrondoso. As polícias estão matando mais. Para mim é até uma boa notícia, metade da população brasileira é a favor do lema “bandido bom é bandido morto”. Já tivemos cenários mais difíceis de reverter. Estamos em um ambiente que já dá para conversar. De qualquer modo, as preferências mais fortes são mais ouvidas. As pessoas que bradam por um enfrentamento mais agressivo falam mais alto. Às vezes a gente confunde essa gritaria com quantidade. Então esse aumento acontece em cima de uma crença de que as pessoas apóiam esse enfrentamento, uma parte deles realmente acredita que estão combatendo o crime, temos uma investigação deficiente, então vários policiais querem fazer a justiça com as próprias mãos. É completamente deletério porque alem de ser uma execução sumaria, acontece a vingança, o mata-mata. É deletério para todo mundo. Os policiais não percebem que eles também serão vitimados em algum momento.
Outro dado impressionante que vocês levantaram é de que a morte por policiais é a segunda causa de mortes violentas intencionais no País, superior ao número de latrocínios.
Pois é, a gente não esperava nesse momento que superaria o número de latrocínios. É 4% de mortes por policial e 2 ou 3% de latrocínio. Em primeiro vem homicídio doloso.
E se compararmos com outros países?
No Brasil é muito, muito alto. No ano passado fizemos uma comparação. A polícia brasileira mata em um ano o que a polícia dos EUA leva 10 anos para matar. O Brasil é extremamente violento. Temos 3% da população mundial e 11% dos homicídios.
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