Um brasileiro chamado Koellreutter

Em um País onde culturalmente se aprende que música erudita é sinônimo de arte elitizada, é natural que poucos saibam quem foi o grande maestro alemão, que deixou um legado de ricas influências para nossa cultura. As pequenas revoluções, que começou a implantar quando aqui chegou há mais de sete décadas, ecoam até hoje em nossas vanguardas artísticas. Gênios brasileiros mundialmente celebrados, como os maestros Tom Jobim e Moacir Santos, tiveram em Koellreutter o primeiro mestre. Sua liberdade criativa inspira nossos grandes artistas desde a década de 1940. Ao aventurar-se em terras baianas e encontrar os jovens Tom Zé, Caetano Veloso e Gilberto Gil – na transição dos anos 1950 para os 1960, quando lecionou na Universidade Federal da Bahia (UFBA) -, Koellreutter também foi determinante para as experiências embrionárias do Tropicalismo.

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Desde sua chegada, em 1937 – quando sabiamente fugiu do nazismo, após ser delatado pela própria família pela postura antifascista e a temível perspectiva de casamento com uma judia -, mostrou-se um grande amante do povo brasileiro. Teve a possibilidade de residir em vários países da América Latina, mas uma visita a trabalho, para concertos no Norte do País, o fez antecipar a escolha. Apesar do ambiente opressor da ditadura Vargas, o calor e a gentileza de nosso povo o conquistaram. Teve a cidadania alemã cassada e selou definitivamente o casamento com o Brasil, em 1948, quando se naturalizou e se tornou um de nós. Um brasileiro chamado Hans-Joachim Koellreutter.tr

De Robin Hood a antifascista tropical
A paixão pela música surgiu graças a um castigo. Koellreutter estudava em um colégio frequentado por pobres e ricos e, certa vez, meteu-se em uma presepada “robinhoodiana” ao furtar o dinheiro de alunos abastados para comprar bananas de chocolate, que distribuiu aos colegas pobres. Sofreu uma severa suspensão, e o castigo do pai foi mantê-lo recluso em seu quarto por quase seis meses. Nos dias e noites de isolamento, o menino deu de cara com uma velha flauta vertical, abandonada em um armário, e instigou-se a aprender a tocar o instrumento. Tinha 12 anos. Aos 16, regeu seu primeiro concerto. Dois anos mais tarde, teve as primeiras obras publicadas. Em 1935, criou o Círculo de Trabalho para a Nova Música, grupo que se opunha à xenófoba política cultural defendida pelo nazismo. Meses antes de desembarcar no Brasil, liderava o Círculo de Música Contemporânea em Genebra, onde ousou apresentar peças de autores judeus. Como sabemos, judaísmo e arte contemporânea estavam no topo da lista negra de Adolf Hitler. A vinda para o Hemisfério Sul seria o momento oportuno para a fuga ensaiada na Suíça. Convocado para servir o exército, rejeitou o convite e desertou.

O primeiro biênio tropical foi de trânsito contínuo no eixo Rio-São Paulo. Em 1939, em uma das estadas na cidade maravilhosa, Koellreutter decidiu hospedar-se na pensão de propriedade da mãe de um certo garoto de 13 anos, chamado Antônio Carlos. Ciente dos predicados do inquilino, Nilza contratou o alemão para lapidar o talento do filho, que tomou as primeiras lições de harmonia, contraponto e piano. O garoto Tom Jobim teve em Koellreutter um mestre cativante e desafiador, desses raros que, muito além de educar, transforma vidas a sua volta. Sua libertária filosofia de ensino partia dos seguintes princípios: “Aprendo com o aluno o que ensinar. São três preceitos: 1) Não há valores absolutos, só relativos; 2) Não há coisa errada em arte, o importante é inventar o novo; e 3) Não acredite em nada que o professor disser, em nada que você ler e em nada que você pensar. Pergunte sempre o porquê”.

O “espião” que organizava movimentos
O pensamento livre proposto por Koellreutter e as escolas de vanguarda que representava inquietaram o ambiente da época e o colocaram em constante suspeição. Da ditadura Vargas que, em 1942, o prendeu por três meses na polícia de imigração de São Paulo – sob a equivocada acusação de espionagem – até a patrulha estética, representada por seu inimigo número um, o maestro Camargo Guarnieri, que via nas ideias do compositor uma ameaça à arte nacionalista e pura, defendida por ele e Heitor Villa-Lobos. Guarnieri chegou a lançar um manifesto, em 1950, intitulado Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil, onde não dá nome aos bois, mas indiretamente ataca as ideias defendidas por Koellreutter ao classificar o dodecafonismo de “contorcionismo cerebral antiartístico”, e definir Arnold Schoenberg, Alban Berg e Anton Webern – a sagrada tríade vienense – de “compositores medíocres”. Uma resposta tardia e desesperada ao manifesto Música Viva, lançado em 1946 pelo alemão. Duas décadas mais tarde, Música Viva e as aspirações nele defendidas impulsionaram as ousadas ideias de um grupo de jovens compositores paulistanos, liderados pelos maestros Gilberto Mendes, Rogério Duprat e Willy Corrêa de Oliveira, que lançaram, em 1963, o manifesto Música Nova.

Koellreutter rodou o mundo com sua didática revolucionária. Lecionou na Índia, Itália, Japão e Uruguai, e foi responsável pela formação de toda uma geração de grandes músicos brasileiros, como Claudio Santoro, Edino Krieger, César Guerra-Peixe, além do próprio Tom Jobim, que levou as lições eruditas do mestre para uma esfera popular, resultando na revolução da bossa-nova.

O tropicalismo sofreu reações ainda mais sólidas com a passagem de Koellreutter pela Bahia, quando foi convidado para participar do radical projeto defendido pelo reitor Edgard Santos, que apinhou o campus da UFBA com a nata da vanguarda que chegou ao País no pós-guerra. Um corpo docente dos sonhos, que incluía nomes como a arquiteta Lina Bo Bardi, a coreógrafa Yanka Rudzka, o fotógrafo Pierre Verger, o maestro Ernst Widmer, o músico suíço Walter Smetak e o filósofo português Agostinho da Silva.

Ricos personagens, que desembarcaram em nosso País, promoveram grandes revoluções e, infelizmente, ainda continuam anônimos para a grande maioria dos brasileiros.

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