Estava decidido.
Naquela manhã eu faria o “download” da minha crônica quinzenal, da alma para a tela do computador. O tema seria os traboules, uma rede de caminhos secretos na cidade velha de Lyon, na França. O labirinto tem muito o que contar sobre a indústria da seda no século XVIII, sobre a resistência à ocupação nazista no século XIX, e sobre a história de amor entre Chantal e Damian que atravessa os tempos.
No trajeto que faço à pé, da minha casa ao consultório, posso escutar duas músicas do João Gilberto ou uma do Itamar Assunção no meu Spotify (que moderno!). Seria o tempo para definir o começo da crônica, qual seria a primeira frase, a primeira ideia – um momento crucial que pode definir o seu destino, se consegue ou não capturar a atenção do leitor. Se tivesse que me deslocar alguns quilômetros de carro, entre a minha casa e o trabalho, como fazem milhões de conterrâneos todos os dias, certamente daria também para ouvir Eduardo e Mônica do Legião Urbana e Bolero de Maurice Ravel. Desconfio contudo da qualidade desse tempo para os fins da criação, no caso, o início do meu texto. Ficaria como um ogro entre ogros rugindo com as buzinas o sangue dos olhos (que primitivo!).
Num breve exercício de futurologia, acho que, em 20 anos, veremos e trataremos a indústria automobilística como hoje vemos e tratamos a do cigarro.
Mas isso é uma outra história.
Prestes a botar em marcha o meu plano, no hall de entrada do prédio, ela me chama e com olhar soturno diz: “Oi Auro, bom dia”. Valentina, minha menor amiga. Ela é vizinha e tem 7 anos de idade. Quase todo dia trocamos um ou dois dedos de prosa. Repousava em seu colo um livro que acabara de ler, enquanto esperava a perua da escola chegar. Uma versão para crianças de Romeu e Julieta. Estava explicado seu astral, sempre leve, naquela manhã, carregado. Ela fez questão de me contar o enredo da tragédia, um jeito de atenuar os efeitos imediatos da leitura, e pediu-me que lhe explicasse o que Romeu quis dizer com aquelas palavras – seus dedinhos apontavam a cena II do ato II:
Zomba da dor quem nunca foi ferido.
Que luz surge lá do alto, na janela?
Ali é o leste, e Julieta é o Sol.
Pedi-lhe alguns dias para pensar e sugeri que Dom Quixote talvez pudesse ser sua próxima aventura literária. Sorriu e perguntou-me se eu gostaria que ela me emprestasse o livro. Disse que sim e nos despedimos.
Enfiei os fones nos ouvidos e apertei o passo, tocava Dor Elegante, poesia do Paulo Leminski musicada pelo Itamar. Entrei na venda do Francisco. Pause. Peguei um saquinho do melhor amendoim da Vila Mariana, com lascas de alho frito. Perigosíssimo. 400 Kcal a porção de 100 gramas. Normalmente muito contido, naquela manhã ele desatou a falar. Contou-me inconformado, as agruras políticas das eleições que estão a se desenrolar em Portugal, bem como as perspectivas de crise que nos ronda, parece, por todos os lados. Concordei. Anotou os 5 Reais no caderninho e nos despedimos. Play:
Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegando atrasado
Andasse mais adiante
Stop.
Abro o consultório. Eu e meu paciente depressivo crônico nos sentamos em nossas respectivas poltronas, como fazemos semanalmente há 10 anos. Algo inédito acontecia: as rimas de seus lábios lentamente se deslocavam para os lados e para cima, e um breve sorriso, indisfarçável, formou-se em seu amarroado semblante. Como se portasse medalhas, revelou-me em tom solene: “o caminho se faz ao caminhar”.
Agradeço à Valentina, ao Francisco e ao paciente, que instilando em mim, gota a gota, a humanidade de suas dores, acabaram atiçando a saudável rivalidade entre o Acaso e a Necessidade, o Destino e a Mutação, o Programado e o Inusitado. Cada lado tentando persuadir o outro com a força de seus bons argumentos.
Prometo que na próxima coluna contarei as histórias dos traboules de Lyon…
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