Ouro Preto é uma cidade maravilhosa, patrimônio do hedonismo visual, gastronômico e etílico. Cidade de poetas, blasfemos e religiosos. De belas moças e moços. Há loucos na direção de mineradoras e sensatos correndo pelos telhados. Não é preciso mapas, pois o fantasma de Aleijadinho guia os incautos com arte e delicadeza.
É nesse cenário de livro e pedras que acontece o Fórum das Letras, um dos festivais literários mais interessantes do país. No primeiro dia participei de uma mesa sobre narrativas do jornalismo, ao lado dos admiráveis Adriana Carranca e Bruno Paes Manso. Em uma das intervenções, sei lá por quê, encanei com a expressão “graças a Deus” e expliquei que eu era ateu (apesar de ser, na verdade, agnóstico; mas achei meio pedante e covarde dizer que sou agnóstico). Então: ateu.
No almoço, em seguida, junto com meus novos amigos de mesa, de jornalismo e boas narrativas, apoiei o braço na borda da janela, com o cotovelo apontando pra rua. Na outra mão, uma ótima caipirinha, artefato indispensável em situações mineiras. Eis que uma beata, senhora simpática, acho que de longos cabelos, vestido florido e idade indefinida passou e tocou meu braço: Deus te abençoe, meu filho, ela disse.
Agradeci, cordialmente, e nem sei se ela ouviu. Acho que desapareceu. Era anjo, talvez (eu disse que sou agnóstico!). Ficamos todos entre o riso e a perplexidade. Fazia mais ou menos uns 40 minutos que eu tinha declarado em público não acreditar em Deus. A lógica torta da superstição logo tomou conta do meu juízo. Será que vai acontecer alguma coisa comigo? Bati na madeira, envergonhado, mas convicto de que era o melhor a fazer.
O dia seguinte era meu aniversário. 51 anos. Boa ideia, hahaha. Um insulto pensar em 51 na terra da cachaça. À noite eu iria mediar uma conversa entre dois de meus ídolos de adolescência: Jards Macalé e Jorge Mautner. Eu sabia dos riscos. Por isso, me preparei como quem vai par a Terra do Nunca: tudo poderia acontecer.
E aconteceu. Depois de um cafezinho entre risadas, histórias saborosas e um clima de nobreza gentil, fomos para o palco, diante de casa cheia, e o que parecia doce tornou-se bárbaro. Cada resposta do Mautner durava de dez a quinze minutos. A litania era tal, dita em voz baixa, sem modulações, que era difícil separar os ditos de gênio – pois os havia – das caídas nos desvãos de uma mente superpovoada. O público parecia se divertir, mas eu, preocupado com o equilíbrio, tentava trazer o Macalé para a conversa. Ele respondeu duas ou três perguntas e desapareceu. Um anjo torto, certamente. Um morcego. Continuei ouvindo o autor de Maracatu Atômico. Fascinado, sim; mas também aflito. Onde estará o Macao?
Eu quero ouvir o mestre! Foi a resposta quando perguntei por ele. Não quero falar, quero ouvir! Macalé estava deitado nas almofadas em frente às cadeiras do teatro, junto com os jovens que esperavam ouvi-lo também. Nesse momento, houve quem desistisse. Poucos, é certo. Eu quase fui um deles. Mas juntei toda a galhardia que me restava e apelei até ao volume morto de leveza e bom humor de que dispunha, e decidi aproveitar o melhor de meu amigo Mautner. Não é todo dia, afinal, que alguém consegue juntar nióbio, Heidegger e Jesus de Nazaré no mesmo raciocínio.
Relaxei tanto que nem sei bem o que aconteceu. Acho que insisti mais uma vez com o autor de Vapor Barato e ele não apenas voltou ao palco como aceitou tocar e cantar. Mautner, que não parecia ter se alterado nem um milímetro o tempo todo, participou da festa final com seu violino e voz tão característicos. O Morcego e o Vampiro de volta, afinal.
Graças a Deus.
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