Contrariando diversas estatísticas: um papo com Rico Dalasam

Desde o lançamento de seu primeiro clipe, da faixa Aceite-Cem dezembro do ano passado, Rico Dalasam começou a chamar muita atenção por ser o primeiro rapper brasileiro a falar abertamente sobre o fato de ser gay.

A notícia rendeu e a história e o trabalho de Rico geraram diversas matérias, entrevistas e aparições na TV – inclusive nas manhãs da Globo no programa de Fátima Bernardes. Rimando desde 2007, finalmente Dalasam viu seus planos – traçados há pelo menos três anos, quando começou a publicar suas primeiras músicas na web – em pleno funcionamento.

“Eu preferi me expor em um grau que as estatísticas dizem que a gente tem uma chance diária de sofrer alguma coisa”, conta o rapper em uma longa entrevista para a Brasileiros. “Juntando as tags que eu tenho (jovem, negro e gay) a gente fez uma conta lá e eu tenho 20% de chance de morrer diariamente só por existir – só de gay, a cada 27 horas morre um. Mas preferi isso a ficar na invisibilidade para sempre, que é outra coisa que mata a todos nós, negros da periferia”, completa.  

Apesar do respeito com que a imprensa tratou o tema, Rico chegou a temer que o maré boa rendesse uma presença passageira. “Fica aquela sombra de quando acabar essa tag, já era, esquecimento. A gente sabe que isso mora muito do lado, muita gente que foi genial em um instante e depois sumiu”.

Passado quase um ano, o que ele temia não aconteceu, muito pelo contrário. De lá para cá, o garoto de Taboão da Serra só aumentou sua presença com shows pelo Brasil, uma participação especial no novo disco do Emicida e uma turnê que passou pelo Estados Unidos e Reino Unido, incluindo uma noite consagradora no Royal Vauxhall Tavern, emblemática casa LGBT londrina

Ainda com apenas um EP com seis músicas na praça, ele prepara para o ano que vem o primeiro álbum ao lado do parceiro musical de sempre, Filiph Neo. A primeira música dessa empreitada, Paz, Coroas e Tronos, foi lançada com exclusividade pela Brasileiros. Sobre a faixa, ele conta. “Ela quer dizer que dentro da invisibilidade a gente já se moveu, entendeu? Essa música diz que já chegou umas coisas, mas ainda tamo na construção. Agora que você vê que pode alcançar o mundo, você não vai dormir. É assim, é meu sonho, tá ligado?”.

Rico Dalasam canta “Paz, Coroas e Tronos” a capela

Exclusivo: ouça o novo single do rapper Rico Dalasam http://old.brasileiros.com.br/7Vi2p

Posted by Revista Brasileiros on Monday, September 14, 2015


Leia a entrevista completa com Rico Dalasam: 

Brasileiros – Queria que você contasse a história da sua participação em Mandume, a faixa do Emicida que conta com a sua participação e de outro rapper jovens.

Bom, Mandume tem muito a ver com o que eu venho fazendo. Juntando cada uma dessas tag que eu carrego e o grau de exposição que as coisas têm tomado – eu vindo do Tabuão de ônibus, voltar de madruga, a gente tá muito exposto tá ligado? É como se existisse esse mesmo rei, esse mesmo dominador que veio diante de Mandume e Mandume preferiu morrer a se entregar pra ele. O que a gente faz é isso: a gente preferiu se expor, por a cara, a se entregar, ficar morto, nessa opressão, nessa invisibilidade. A gente preferiu se expor em um grau em que as estatísticas dizem que a gente tem uma chance diária de sofrer alguma coisa, de repente até morte, e preferiu isso a ficar na invisibilidade para sempre, que é uma outra coisa que mata todos nós, negros de periferia. Tem mil gente talentosa lá morrendo na invisibilidade.

E quando você decidiu começar a se expor? Porque a maioria das matérias sobre você são do fim do ano passado e do começo deste ano, mas você posta música online desde 2012, não é um cara que apareceu agora…

Então, isso explica muito claramente a invisibilidade, é a síntese dela. Eu ia nas batalhas ali de 2007, a mesma época de todo mundo aí. Frequentava as batalhas, ia e a galera sabia: “é o Rico”. Assim como existe 500 caras fazendo coisa legal. Aí quando foi 2012 eu comecei a gravar uma música a cada seis meses e colocava no Soundcloud, pra ir fomentando alguma coisa e nisso ir arquitetando tudo isso que tá acontecendo hoje. Acho que o que acontece hoje pelo menos três anos atrás já tava muito claro para mim de que seria dessa forma, mas já tem muita acontecendo que já foge do que eu imaginava…

Por exemplo?

A dimensão que as coisas tomam, né? O alcance, onde a música tá chegando, pra quem tá chegando, o retorno disso, tudo que a gente tá conseguindo fazer em relação a show e a representatividade que a gente tem gerado e a velocidade com que isso tem acontecido. Isso a gente sabia que ia rolar, mas talvez em uma velocidade mais lenta.

O que aumentou a velocidade? Exposição na internet, na televisão, matérias…

Antes de dezembro de 2014 a gente tava ali mandando a música para um monte de blog, um monte de coisa. Tinha gente que olhava e falava: “Opa, interessante, vou comentar” e ok. Quando foi em dezembro saiu uma capa de Caderno 2 falando de mim e saiu uma notinha na Rolling Stone:Rico Dalasam, primeiro rapper gay e não sei o quê”. Isso aí já deu uma sacudida. Na segunda quinzena de dezembro saiu o clipe de Aceite C ao mesmo tempo que tava saindo o CD dos Racionais, só que aí disparou. “Primeiro rapper gay”, disparou. E aí, a gente foi mais assunto que o disco do Racionais, sem querer pá. A ponto de que nos últimos dias do ano, quando ninguém mais tá trabalhando, a gente passou a ter uma demanda de show. Quando foi janeiro a gente tava com uma agenda que ninguém teve. E aí de janeiro até março eu fui o cara que fez mais show no rap.

Na época, você chegou a comentar nas redes sociais sobre um receio de acabar esse bom momento. Você chegou a ter algum receio quando os pedidos de matérias passaram a ser mais sobre a sua sexualidade do que a sua música ou tinha uma segurança de primeiro quebrar uma barreira?

Cara, tá tudo muito na nossa mão, mas os caras quando querem colocam uma força que parece que não tá na nossa mão, sabe? A minha narrativa tá na minha mão, se eu quiser virar outra história hoje, eu vou virar outra história. Se isso vai fazer sucesso ou não é outra coisa, mas a minha narrativa é minha, tá ligado? Não pode ser um jornal que vai ditar o caminho do meu barco.

E você acha que em algum momento pesaram a mão?

Não pesaram a mão, mas um grande veículo dá aquilo e o outro também dá. Todo mundo quer tá junto aí com a pauta, tá ligado? Todo mundo quer falar. E aí chegou um momento que ficou assim, tipo, quem falou primeiro, legal, mano, mas tinha uma galerinha chegando depois que, mano… “já falou, esse papo já foi dado”. E aí você fica com aquela sombra de quando acabar essa tag já era, esquecimento. Porque, mano, a gente conhece a invisibilidade e a gente sabe que tudo isso mora muito do lado. Bombar de entrevista tá muito perto da invisibilidade, conhecemos a história de muita gente que foi genial em um instante e depois sumiu.

Mas você não é um cara de um hit só, por exemplo, um artista vazio.

Eu sou uma coisa que a construção vai levar tempo ainda, tá ligado? Para que eu me sinta alicerçado para o que eu creio que vim fazer enquanto missão usando a música como instrumento, vai demorar tempo para eu me tornar sólido do jeito que eu acho que deva ser. Porque a gente viu que muita coisa pode acontecer rápido e a gente sabe que a velocidade das coisas tá muito perto da invisibilidade.

Além da parte artística, como vai a parte administrativa da carreira? Já tá tranquilo?

Agora a gente tá tendo que trazer gente para formar uma equipe. Trabalha eu, meu namorado e é um ritmo porque tá rolando uma demanda, tem coisa já pra fevereiro, março e tem um disco aí pra nascer. Temos um EP de seis músicas na rua. Eu preciso trazer uma obra e ela também tá em um processo de construção com o Felipe Neo, que é uma outra parceria. Só que ao mesmo tempo… Cara, eu trabalhei de cabeleireiro dos 12 até pouco tempo.

Ia te perguntar sobre isso…

Acabou a escola, fiz uma faculdade de audiovisual e teve uma época que eu trabalhava de cabeleireiro, fazia uns frilas de assistente de direção de arte e ainda estudava. Era um ritmo doido para você juntar tudo e ter 2,7 mil reais no fim do mês, entendeu? Agora você vê que pode alcançar o mundo, você não vai dormir.

Você não tá dormindo ultimamente?

Cara, tem dia que eu durmo e tem dia que eu vou embora. É meu sonho, tá ligado?

É uma nova fase da carreira agora que tudo está andando?

É, mas que ainda não sai daquele patamar da construção que eu te falei, tá ligado? Para nós chegar no solo, no solo que eu quero chegar, a gente tá ainda muito no sub, mano. A gente tá vindo de onde vem o diamante, tá ligado? De onde vem o petróleo, de onde vem as maiores riquezas, mano, a periferia é isso. A periferia é um lugar que tá na mesma profundidade de onde vem as maiores riquezas – diamante, minério, petróleo. E é assim que as pessoas são lá. Gente muito rica, só que tá lá no fundo. Se alguém cavar, puxar, se alguém conseguir sair dali, mano, a gente tem as maiores lideranças desse país lá.

Nessa questão de liderança, tem uma frase sua que é “o fervo é protesto”. Fala um pouco mais sobre isso.

O fervo é protesto é a síntese do que a gente tem visto hoje, mano. Você vai para a rua hoje e alguém leva a bateria. Existe um entretenimento no protesto. O protesto hoje não é só protesto para ele existir, hoje ele é um entretenimento. Se é um evento no Facebook, o protesto, a marcha, um encontro de pessoas por tal razão é um entretenimento, um fervo. O fervo é protesto, eu quero ser isso.

Fazer a trilha desse rolê.

Se puder, mano. Mas fazer esse som para cima, essa farra. Quero ver as pessoas pulando por um ideal, porque pular vazio tá todo mundo pulando. 10h30 da noite todo mundo muito louco, já tá. Quero ver todo mundo dez, mas por um destino, por uma visão.

Sua música tem uma aproximação com a noite, com festa. 

A gente fez música para tocar no rolê, entendeu? O EP foi feito para tocar no rolê. Olha como esse negócio da construção é muito verdade, a gente se deparou com a fragilidade dos DJs. DJs na sua maioria homens, héteros, falarem: “não vou tocar isso, mano”.

Você chegou a ouvir isso?

Não, você não chega a ouvir, mas você vê. Tem os caras que faz festa, contrata e manda essa de que “não tem nada a ver com o que eu faço…”. Minha música é igual a de geral, a gente fez música para tocar no exato momento da pista, a gente fez pra isso. São seis músicas, mas são seis músicas para chegar dez. A gente sabia o que ia tocar agora, o que ia tocar amanhã, qual era a última cartada. Foi muito tempo que eu fiquei esperando para chegar, a gente tem música para toda essa construção.

Apesar do EP ter mais a ver com balada e coisas eletrônicas, tem música sua não lançada oficialmente que tem piano, outras coisas. Você tem músicas guardas que são muito diferentes do que já foi lançado?

Tenho. Eu tenho uma liberdade para fazer minha música, sem dúvida. A música chegou para mim através do rap. Eu ouvia pagode, aquela coisa do bairro, mas eu me vi como alguém na música como MC. O MC existe em mim, não tem como. Eu posso tá fazendo uma coisa muito tranquila, estar aqui conversando, mas chega um hora que eu preciso fazer um flow, fazer uma rima, pensar numa punchline, num verso foda. É inevitável. Mas a gente fala de amor, a gente tem muita coisa pra contar que não cabe dentro da estética do rap. Paz, Coroas e Tronos, por exemplo, já sai um pouco, desce o bpm para ser uma música mais calma, ela tem dois refrões, tem uma parte de rap, mas tem uma parte que qualquer um canta em qualquer voz…


Nela você usa muito uma característica sua de mudar várias vezes de voz dentro de uma música, até parece outra pessoa… Qual a inspiração para isso?

Tem a ver com essa ideia de quebra de norma. Dá para você fazer uma música que você canta e vai para rima, canta e vai pra rima. A gente vê aí, a Flora Matos é um exemplo genial disso, o Criolo também. E tem a coisa de você conseguir fazer uma voz supertranquila e sair rimando pesado que é uma quebra da estética, de um formato que alguém diz que é e que não é, tá ligado? Alguém fala que rap é assim, alguém fala que o rap é 16 versos, que é não sei como. Não é. É o que você quiser. Posso fazer 3 cantados, posso fazer um rap com 7 versos, três cantados e duas rimas, volto e o resto é silêncio…

E essa liberdade musical vem de onde? Queria entender como foi sua relação com o rap, quando começou a ouvir, começou a se identificar, etc. Porque, por exemplo, a parte da sua sexualidade é uma questão que você não ia escutar em um rap…

É que o rap entrou em outro lugar. O rap não veio para atender uma demanda da construção do meu pensamento sobre sexualidade. O rap veio como vem para qualquer moleque de periferia, mano. Ninguém tá me entendo? O rap tá me entendendo, então é ele que eu quero ouvir. Meu embasamento de raps são raps que não tem nada a ver com o que eu ouço, tá ligado? Pô, Visão de Rua, Dinadi, pô. Uma presidiária, mulher, tá ligado? Pensa o quanto eu sou o outro signo de uma narrativa próxima,tá ligado? Pô, Facção Central, eu fiz minha sala de aula inteira ouvir Facção Central, a ponto da professora teve que tomar o CD de mim.

Como era sua sala de aula? Você estudou em escolar particular – uma escola alemã.

Não foi a vida inteira, não. A escola alemã foi um episódio, mas sempre estudei em escola particular e todas são parecidas, são iguais. Todas gentrificam, todas tem esse molde de que “aqui somos outro parte da sociedade”.

E como era encarar isso muito novo?

Sem ter o embasamento de hoje? Eu encarava como, mano, “um dia eu vou quebrar tudo isso”, tá ligado? Foi nessa que eu encontrei o rap. Foi ali que eu consegui criar uma associação com o que eu tava vivendo. Porque de alguma forma você também tá enclausurado, também tá algemado, entendeu? Você tá algemado dentro do limite que tá dão. “Olha, você é o único aqui, então seu espaço é aí, não se mexe, não cisca, não abre a boca e não anda com a gente”.

Não deu para construir uma amizade ali?

Construí pouquíssimas. Toda vez que eu mudava de escola eu fazia dois amigos, mas porque na vida eu sou assim, conheço o mundo todo aí. Mas meus amigos são os mesmo cinco lá do bairro, que são meus amigos da vida. Tipo, quando eu quero levar gente para minha casa e ficar lá trocando ideia, comendo, são eles que eu chamo. Não levo um milhão de pessoas pra minha casa. Tem meu namorado, mas é outro setor.

 

Agora que você falou um pouco da infância na escola, como foi sua adolescência? A questão de se encontrar, por exemplo, que já vi você comentando outras vezes. Foi difícil? Você ouvia muita coisa?

Foi muita coisa. Já tinha aquela coisa do bairro… O bairro é assim, todo mundo vai ficar falando pra sempre de você. No bairro de periferia todo dia chega uma família nova do nordeste, do norte, de algum lugar do país, que vai virar assunto. Alguém é feio, alguém é bonito, alguém já bebeu, alguém já ficou caído na calçada. Sempre tem a mazela de alguém pra virar assunto, pra zé povinho arrastar. E eu cresci ali, era isso aí. Filho da dona Ana e ponto. Depois uns, “ah, ele é gay”, “ah, ele não é gay, não”….

Foi antes da música ou depois que você começou a falar que era gay abertamente?

Foi antes da música, mas eu já tava grande, já tava “véio”, ali com 18, 19 anos. Eu já trabalhava, já tava na faculdade e, tipo, se desse ruim na minha casa ou no bairro, ali eu já me jogava porque eu já tinha dinheiro pra fazer isso, entendeu?

E como sua família lidou?

Eu sou o mais novo de três irmãs e um irmão – a diferença minha de idade para minha irmã mais nova é de dez anos e a minha irmã mais velha é gay. Então, já existia uma coisa ali em casa e todo mundo me acompanhou do zero. E como tudo mundo era mais velho, gente que já viu muita coisa, tava todo mundo esperando. “Ou ele vai ficar aí quieto pra sempre nessa ou vai ter uma hora que ele vai trocar ideia”.

Você era muito quieto no geral?

Teve uma coisa em casa por ser o mais novo de muito amor e aí ninguém quis por o dedo. Todo mundo foi muito cuidadoso. Na hora que eu trouxe e ok. Foi desse jeito. Minha mãe é uma mulher muito brava, não comigo, mas de braveza da vida. Minha mãe já bateu em policial, enfim…

Como foi essa história?

Tinha um policial do bairro que ficava tirando meu irmão de ladrão e meu irmão nunca foi ladrão. E chegou uma hora que meu irmão tava se sentindo muito coagido a ponto de começar a faltar na escola. E minha mãe chegava do trabalho de tarde sem saber se ele já tinha ido ou não pra escola, entendeu? Então, alguém contou pra minha mãe a história e um dia ela chegou do serviço bem cansada e foi na casa do cara e aí desenrolou… Minha mãe tem uma história dura. Ela foi dada com três anos de idade para uma mulher cega, pra ser guia dela na Bahia. Quando ela fez treze anos conseguiu vir pra São Paulo, ficou trabalhando no Guarujá de faz tudo, sozinha no mundão – só foi descobrir uma irmã em Santo André quando já tinha todos os filhos. Ela tem essa história puxada e quando se viu com filhos foi defender toda a história porque não teve pai presente.

E todos são filhos do mesmo pai?

Isso. Minha mãe só teve um casamento, só que existiu essa coisa – pai some e quando volta nasce um, aí some e quando volta nasce outro…

Mas nem seus irmãos conviveram com ele?

Alguém teve uma convivência ali de meses. Vagas memórias.

Indo para outro assunto… Quando você foi rimar rolou preconceito?

Pra caramba. Na internet, que é terra de ninguém, rola muito. Hoje já menos porque eu criei minha fanpage, eu sei com quem eu me comunico.

Então você cuida das suas páginas pessoalmente?

Precisa ser, não dá pra dar na mão de um assessor porque eu preciso sentir ali o tempo. É igual o tempo – hoje tá sol, amanhã tá nublado.

E essa situação no Brasil na rua – homofobia e racismo?

Juntando as tags que eu tenho, a gente fez uma conta lá, eu tenho quase 20% de chance de morrer diariamente só por existir – só de gay, a cada 27 horas morre um vítima de homofobia no país.

E como você encarar a parte política que colabora muito nesse retrocesso?

Acho que ainda tá tudo muito na nossa mão e a gente não se atenta pra isso. Se os pretos se junta e não vão trabalhar amanhã, a cidade não existe e ponto. Se os jornalistas não vão trabalhar amanhã, os sites vão ficar com as notícias de ontem. Então, uma hora ou outra uma geração vai falar “mano, vamo ninguém amanhã?”. Aí vai se criar uma rotina de “vamo ninguém pra tudo” e alguém vai ver que esses poderosos aí não tão com essa bola toda. Agora quando todo mundo só quer saber de obedecer vai ter 17 malucos que vão tocar o país. Aí quando milhões de pessoas tão na mão de 17, certamente esses 17 é gente escrota. Porque o certo não é ter 17 pra cuidar de milhões, entendeu? O certo é cada um se cuidar, começa aí. Isso pra mim é coerente e ponto.

Como foi tocar lá fora?

Nos festivais eu era uma atração de muitas, já no Royal Box Hall em Londres foi foda. Porque era só eu e aí tava todo mundo esperando pra me ver. Eu costumo não me emocionar na hora com essas coisas que acontecem, mas passa três dias eu choro, fico quebrado. No Royal, uma casa tradicional na história queer da Inglaterra, eu comecei rindo, trocando ideia. Na terceira música a galera já levantou e começou a dançar. No fim, na hora da foto, alguém falou “one more” e eu cantei zuando “one more night” (refrão de Não Posso Esperar) e parei, mas todo mundo continuou e cantaram mais umas oito vezes o refrão. Ai eu falei: “Caralho, moleque. Chegou!” (risos). Passou dois dias e em outro rolê na Serpentine Galleries, do outro lado da cidade, no metrô uma mina falou: “Ei, eu tava no seu show, obrigado. Foi uma noite maravilhosa”. Vish. Aí eu falei: “Mano, se a gente fica aqui três meses a gente faz nosso nome”.

Voltando a falar um pouco do seu começo. Dos seus amigos quem deu uma força?

Ninguém, mano. Todo mundo falou, tipo, “cê tá louco? Os malucos vão te arrastar”.

Ninguém mesmo?

Ninguém.

E o que te motivou, no sentindo de falar “vocês estão tudo errado, ninguém vai arrastar meu trabalho”?

Eu sempre tive essa autonomia. Quando todo mundo foi procurar um trampo, eu falei “mano, vou ter um salão e não vou trabalhar no McDonald’s. Vou fazer cabelo”. Era um instante onde uma galera já tava muito fascinada por roubar, vender alguma droga, tá ligado? Que dava uma grana, mas era um trabalho foda, não é party time, não. Trabalhar no crime é full time. Eu não acho delícia.

Mas ascende rápido, né? Logo já compra uma moto…

E para a  favela ter uma moto é ascensão, ter iPhone é ascensão, entendeu? Agora, quando você vai tirar férias disso?

Você viu alguém sair do crime?

Que eu vi sair e ficar suave só os que foram para a igreja. E os caras vê se eles tão na igreja certinho mesmo. Se tiver só de fachada, alguém te cobra. Enfim, mó bad isso, aí. É um assunto bad vibes. E eu falei, “não vou, vou trabalhar de fazer cabelo e boa”. Aí, quem queria trabalhar e ainda não tinha idade começou a trampar no rodinho de farol, entende? Isso dava 15 reais por dia e o cabelo era 5 reais, mas tipo, eu tava fazendo dez cabelo em um dia, tava foda. Conseguia cinquenta conto por dia. Cortava, fazia trança. Tipo, chegava alguém: “Cê sabe fazer?”. Eu respondia: “Sei”.

E você aprendeu sozinho?

Sim. Eu aprendi no “sei fazer, sim”. (risos) Algumas coisas eu sabia fazer muito bem, mas outras… “Sabe fazer luzes?”. “Sei, senta aí”. Toquinha, puxava, descoloria. Eu tenho um negócio, um jeito. Errava, mas pelo preço que eu cobrava, a pessoa permitia o erro e boa. Quando chegou o fim do primeiro ano fazendo cabelo lembro de ir na galeria e comprar um monte de roupa. Cheguei muito foda no bairro. Nisso aí, pensando no papo de ascensão, de classe social, vários caras já pararam de andar comigo, vários. “Como assim ele chegou com esse monte de pano e a gente tá aí se fudendo?”. Aí, eu já comecei a ter uma visão de como muito pouco já te separa, como muita pouca grana já te põe em outro lugar nessa miséria que a gente vive de hemisfério sul.

E como você tá agora, por exemplo? Rola uma nova separação?

Não. Muito antes eu já entendi, falei: “Quem quiser andar comigo vai andar comigo, quem não quiser andar comigo não anda”. E antes de usarem tanto a palavra recalque eu já aprendi que vão existir esses e eles vão ter que me entender.


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