Coluna_header_ topo Auro Danny Lecher
Eu começo honrando uma promessa feita há 15 dias – contar as histórias dos
traboules de Lyon –  e vou logo pedindo duas desculpas: primeiro para Valentina, minha menor amiga. Ela me corrigiu, um pouco decepcionada, dizendo que sua idade é 9 anos, e não 7,  como eu havia escrito na crônica passada. Espero que assim eu atenue os efeitos do equívoco sobre a nossa sólida amizade. Peço desculpas também ao leitorado, porque, naquele mesmo texto, eu anunciava que uma das histórias a serem contadas seria o caso de amor entre Damian e Chantal. Ocorre que na última semana resolvi rebatizar os pombinhos: Ariadne e Jean Pierre. Pareceram-me nomes mais sonoros além da conveniente referência mitológica da heroína grega e seu fio no labirinto.

Traboules de Lyon. Foto: Reprodução/Instagram/@maralblar
Traboules de Lyon. Foto: Reprodução/Instagram/@maralblar

Quanto o cronista revela a realidade e quanto ele a inventa?

Traboules são 315 passagens secretas que conectam 230 ruas da cidade de Lyon, na França. Somados e em linha reta, perfazem 50 Km de extensão. Foram inicialmente construídos pelos romanos no século IV, como suporte para o abastecimento de água que era trazida do rio Saône. Aos poucos, foi se formando um complexo emaranhado dessas vielas por onde apenas os habitantes mais profundos da cidade, ainda hoje, ousam transitar. Seu esplendor ocorreu no século XIX, quando Lyon transformou-se na capital da seda no ocidente. Chegou a ter 310 fábricas desse tecido. Ariadne, mais tarde, nos anos 40 do século XX, trabalharia numa delas. Os traboules eram fundamentais porque evitavam que os carregamentos de bicho-da-seda fossem molhados pela chuva, o que inviabilizaria todo o processo de fabricação.

Jean Pierre era um dos heróis da Resistência francesa contra a ocupação nazista em Lyon, durante a segunda Grande Guerra. Planejava e executava missões de vigilância e sabotagem contra as tropas alemãs, geralmente noturnas e sempre utilizando a rede de traboules como fator de surpresa e proteção.

Foi numa noite obscura do inverno de 1943, na confluência entre os números 27 da rue St-Jean e o 6 da rue des Trois Maries, que Jean Pierre encontrou Ariadne pela primeira vez. Ela se escondia da perseguição de 3 oficiais da Gestapo. Tremia de frio e pavor. Agachada no canto do beco, tentava sumir dentro de seu sobretudo cinza. Quando percebeu a presença de Jean Pierre, tudo o que conseguiu fazer foi tentar cobrir a estrela de Davi bordada na manga esquerda do casaco. Nunca mais Jean Pierre esqueceria daquele olhar angustiado da bela moça dos cabelos ruivos, que se tornaria sua companheira de toda a vida. Embaixo dos medos habitam os desejos. Iniciava-se a história de um amor que se manteria clandestino até o verão do ano seguinte. Dia sim, dia não, o fio invisível que conecta aqueles que estão destinados a encontrar-se, unia irremediavelmente tecendo a noite com seus jovens corpos e espíritos, sempre naquele mesmo local, casulo secreto. Conversavam, riam, choravam e faziam amor, depois, em meio às brumas que exalavam do tabaco negro do Gitanes com filtro, artigo de luxo para aqueles tempos de guerra, voltavam às suas vidas fora do labirinto, ansiosos pelo novo encontro marcado dali a dois dias.

Hoje, uma pequena parte dos traboules ainda pode ser visitada em roteiros turísticos guiados em Lyon.

Ariadne e Jean Pierre, ambos com 90 anos de idade, têm muita história para contar para seus 5 filhos, 13 netos e 4 bisnetos. Eles já não transam mais, mas ainda conversam, riem, choram e fumam o cigarrinho.

*Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo, psicoterapeuta e coordenador do Projeto Quixote   aurolescher@gmail.com psicoterapeuta e coordenador do Projeto Quixote   aurolescher@gmail.com


Comentários

Uma resposta para “Os traboules de Lyon”

  1. Parece cabível frase do filósofo Pierre Levy: “O amor é o pólo magnético e a bússola”.

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