Para o médico patologista Paulo Saldiva, um dos grandes especialistas em poluição ambiental do mundo, a ruptura das barragens da mineradora Samarco, em Mariana (MG), ocorrida no dia 5 de novembro, é a maior tragédia ambiental de toda a história do País. A Samarco é uma joint-venture da companhia Vale do Rio Doce e da anglo-australiana BHP.
Segundo o pesquisador, os rejeitos da Mina de Germano, no município de Mariana (MG), formarão um “tapete mortal” no fundo do Rio Doce e seus afluentes. Além disso, podem penetrar o solo e infiltrar no lençol freático, inviabilizando o plantio e o uso da água de poços.
O pesquisador também diz que a divulgação do tipo e do teor dos resíduos tóxicos contidos na mistura de rejeitos e lama não poderia demorar tanto. “Isso impede a definição de medidas e agrava os riscos para o ambiente e à saúde das pessoas.”
Saldiva, entre outras atividades, dirige o Laboratório de Poluição Atmosférica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, é membro do Comitê de Qualidade do ar da Organização Mundial de Saúde e pesquisador do Departamento de Saúde Ambiental da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Também colunista do canal Saúde!Brasileiros.
Saúde!Brasileiros – Como será o futuro da vida e a saúde humana na região afetada pelos rejeitos da mineradora Samarco?
Paulo Saldiva – Muito complexo. Essa lama não é normal, mas sim um rejeito de mineração. Deve ser rica em ferro, mas há outros elementos. Dependendo do processo de mineração, por exemplo, os rejeitos contêm substâncias que modificam o pH do solo e da água, que pode ser tornar muito básico ou muito ácido (em função do que se usa para extrair o ferro). Isso afeta as espécies, mas a natureza consegue se reequilibrar. O problema é que o tipo e o teor dos resíduos de metais pesados que podem estar nessa lama ainda não é conhecida com precisão. Isso atrasa a adoção de medidas para lidar com o impacto ambiental, que é imenso.
Por que ainda não se sabe o tipo e teor dos metais pesados e outras substâncias presentes nos rejeitos?
Impressiona que a informação não tenha sido divulgada claramente até agora. Eu não tive acesso a esses dados e acho que ninguém teve. Entre as substâncias tóxicas que podem estar associadas ao ferro nos rejeitos podem estar os metais chumbo, arsênico, cádmio e manganês.
Essas informações já poderiam ter sido divulgadas?
Seria muito importante que os dados já estivessem disponíveis para que os centros de pesquisa do País e internacionais pudessem estudá-los e sugerir ações. Existe tecnologia disponível para identificar com segurança o tipo e a quantidade dos resíduos tóxicos em situações como essa. Há um teste chamado espectroscopia de fluorescência de Raio X que pode ser feito com máquinas portáteis no local. Aí você consegue saber com quais substâncias e em qual quantidade se está lidando. A demora no conhecimento dessas informações multiplica os danos e riscos à saúde das pessoas.
Será possível plantar novamente na área afetada daqui a algum tempo?
Sem os dados do que há nos rejeitos e na lama, não podemos saber. Mas além de reduzir muito a fertilidade do solo da região atingida, os elementos tóxicos podem se acumular e percolar para o lençol freático, lá permanecendo.
O que vai acontecer com as áreas que receberam o banho de lama?
O distrito da cidade de Mariana, Bento Rodrigues, provavelmente irá se acabar. Será uma área que morreu, assim como pode acontecer com a cidade. Porque, economicamente, é quase impossível remover toda a camada de lama que ficou e fazer os testes necessários para saber se será possível continuar vivendo ali. Você cavaria um poço para tomar água, independentemente da profundidade, sem examinar a qualidade dessa água? Se a população não for alertada sobre isso, é uma loucura.
Aconteceu ali algo de proporções semelhantes a um acidente nuclear? Seria mais grave do que o acidente com césio 137, em Goiânia, em 1987?
Por sua extensão e pela magnitude do impacto sobre a economia e os ecossistemas afetados, o acidente em Minas Gerais têm maiores proporções do que o ocorrido pela contaminação por Césio em Goiânia.
O que precisa ser feito?
Como eu disse, é urgente determinar quanto de metais pesados e outras substâncias tóxicas há no solo e se ele poderá ser propício à agricultura. Isso não diz respeito apenas à fertilidade. Vou dar um exemplo típico do que pode acontecer para mostrar a extensão do problema. A cidade de Boston, nos Estados Unidos, começou a estimular as hortas comunitárias. Como é uma cidade antiga e os seus encanamentos eram de chumbo, era de se imaginar que houvesse algum teor de chumbo no solo de Boston. Mas as hortas nos quintais das casas mais antigas começaram a ser feitas sem que essa informação merecesse maior preocupação. Como o solo estava contaminado de fato, os problemas começaram a aparecer na década de 2000. Um estudo revelou, por exemplo, que as raízes de algumas verduras e legumes chegavam até a profundidade em que havia acúmulo do metal, que não é eliminado pelo organismo. As pessoas pensavam estar comendo algo saudável, mas na verdade era comida contaminada por metais pesados. Nas áreas afetadas em Minas, pode acontecer o mesmo.
O que pode acontecer com a qualidade da água na cidade?
Se o encanamento for ruim ou diminuir a pressão no cano (como ocorre no racionamento) há uma pressão ao contrário, de fora para dentro. Com isso, dependendo de onde passa o cano, se tiver um vazamento do esgoto ao lado, ou se o solo estiver encharcado e com poluentes, a água se contamina ao longo do trajeto.
E com a água de poços artesianos, mais profundos?
É necessário examinar essa água e o solo. Um exemplo será mais eloquente do que eu para dar um panorama da situação: lembro-me do que ocorreu em Bangladesh, na Índia, quando as pessoas estavam morrendo de fome e sede por causa desertificação. Isso motivou a Unicef e o Banco Mundial de Saúde a furar milhares de poços para obter água nos anos 1960 e 1970. O que ninguém sabia é que o solo de Bangladesh continha muito arsênico. A consequência foi que logo surgiram milhões de casos de arsenismo, insuficiência renal e câncer de pele. Quero dizer que é absolutamente imprescindível conhecer o teor dos metais pesados do solo antes de tomar medidas como abrir poços ou plantar alimentos na região.
É possível recuperar o solo dessa região?
Para limpar essa camada de lama, você teria de retirar fisicamente o solo, o que é impossível. O que pode ser pensado é um projeto de bioremediação. Dependendo da profundidade em que esses resíduos estão, é escolhido um tipo específico de planta. Algumas espécies vegetais, como a mamona, conseguem retirar do solo os metais pesados, sugando-os. Evidentemente, essas plantas não podem ser comidas. Isso nunca foi feito sistematicamente aqui no Brasil, mas talvez seja uma chance.
Como se calcula a compensação a ser feita em um desastre ambiental desse porte?
Uma empresa do porte da Samarco é muito importante para a economia da região. Para onde irão os moradores dessas cidades? Trabalhar em que? Com quais recursos, se muitos perderam tudo? O que vai acontecer agora é que provavelmente o Ministério Público federal ou estadual irá contratar peritos e exigir um diagnóstico que a empresa deve pagar. A Samarco, que pertence ao Grupo Vale do Rio Doce e à anglo-australiana BHP Billiton, deverá gastar um bom dinheiro com o diagnóstico e as indenizações.
A verdade é que faltam algumas peças importantes para fazer essa avaliação. Mas há técnicas de valoração bem estabelecidas para valorar essa contaminação do solo. Por exemplo, se a empresa não quiser examinar o solo e for pagar o valor real da perda, o cálculo pode ser feito pegando-se o preço do metro quadrado de 500 quilômetros lineares por três quilômetros de largura, que é o curso do rio de lama, e pagar o que isso custaria a cada proprietário. Mas muitos deles envelhecerão antes de ver a cor da indenização.
O perigo dos metais pesados
Saúde!Brasileiros
A exposição prolongada aos metais pesados é perigosa porque eles são facilmente absorvidos pelos organismos vivos. Entre os mais usados pela indústria, estão o mercúrio, arsênio, cádmio, manganês e chumbo. De modo geral, seu acúmulo no organismo prejudica as funções neurológicas, o sistema imune e o funcionamento dos pulmões, rins e fígado.
Estudos apontam danos específicos conforme o tipo de metal
O mercúrio, por exemplo, atinge mais fortemente o cérebro, o coração, os rins e pulmões e o sistema imune. O excesso de cádmio está associado às disfunções renais, doença pulmonar obstrutiva, câncer de pulmão e comprometimento ósseo (osteomalacia e osteoporose).
Chumbo atinge diretamente o funcionamento dos rins, o trato gastrointestinal, o sistema reprodutivo e faz lesões agudas ou crônicas do sistema nervoso, além de danos ao sangue.
O excesso de manganês decorrente de exposições prolongadas pode causar rigidez muscular, tremores das mãos e fraqueza, problemas de memória, alucinações, doença de Parkinson, embolia pulmonar e bronquite.
O arsênio está ligado ao aparecimento de lesões e câncer de pele, bexiga e pulmão e doenças vasculares.
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