Nenhuma outra forma expressiva apresenta tão claramente os problemas do processo de formação do Brasil, como nação e como cultura, como as artes visuais. Nossa visualidade, plástica e arquitetônica, é profundamente “estrangeirada”. Tanto e de tal maneira que nela “nada nos é estrangeiro, pois tudo o é”, como disse certa vez o crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes, a propósito não das artes em particular, mas da própria ideia de uma “cultura brasileira”.
Mesmo se quisermos retirar o período do Barroco colonial, no qual a questão da formação de uma “arte brasileira” não era central, desde o início de nossa aventura plástica moderna, os olhos e as mãos do “outro” recém-chegado desenharam os caminhos da configuração de um “eu” local que sempre desejou ser uma particularidade expressiva e original: autônoma e (auto)crítica. Digamos que desde que Debret foi remodelando seu olhar neoclássico europeu para refazer sua forma diante de um mundo para ele novo, esse processo foi tomando suas diversas formas.
O belo livro organizado por Maria Alice Milliet sobre a artista húngara que virou brasileira Yolanda Mohalyi traz uma vez mais essa questão à tona. Na trajetória historicizada dessa artista, o processo de “nacionalização”, ou, dito de modo mais apropriado, de problematização das particularidades locais diante dos desafios do século XX e do próprio lugar do Brasil dentro dele, ou seja, do modernismo, é visto de modo privilegiado. Ao mesmo tempo, uma artista marcante, especialmente entre os anos 1950 e 1970, é amplamente apresentada, bem como nos torna possível avaliar a pertinência das escolhas que nossos artistas foram fazendo, desde a figuração social da primeira metade do século até o riquíssimo embate entre os abstracionistas da segunda metade.
Yolanda chegou ao Brasil em 1931, portanto em pleno auge do primeiro modernismo, agora contaminado pelas transformações que a revolução de 1930 estava preparando. Ela teve formação europeia típica: filha de artista, estudou em escolas de arte. Em São Paulo encontrou a miríade de artistas, imigrantes como ela, buscando seu lugar dentro do movimento artístico, marcado ainda pela sociabilidade de uma aristocracia local, cosmopolita e decadente. Rapidamente ela mesma se contaminou pelo ambiente de rupturas e contestação. Sua primeira configuração foi um expressionismo de cunho social, não exatamente socialista, que a aproximou daquele que foi seu mestre da adaptação local: Lasar Segall. Trazendo algo da força crítica de Käthe Kollwitz e muito da melancolia de Segall, as gravuras e a pintura figurativa da primeira parte de sua vida traduzem também o esforço de aprender a viver fora do lugar.
É uma bela coincidência histórica que o lançamento do livro sobre Yolanda coincida com o lançamento de um título sobre seu mestre. Segall Portátil é um projeto experimental ousado, que propõe uma apresentação da obra do artista em braile, tinta e em sonorizações, usando o tato e a sensação como forma de descobrimento e sentido. Deixar ver quem não vê. É também um alívio para todos que o lançamento desse livro, com sua proposta de abertura de olhares, venha junto com a reabertura do próprio Museu Lasar Segall.
O que ver e por que ver sempre foi o tema central dos melhores debates sobre a arte brasileira moderna, da qual Yolanda participou à sua maneira e em suas condições e escolhas. Há muito o que ver e reavaliar na obra dessa artista discreta. Especialmente em torno de um dos grandes debates do segundo modernismo: aquele que opôs os defensores da abstração geométrica e os artistas voltados àquilo que se chamou “tachismo” ou abstracionismo informal (ou “lírico”). Por meio do livro e da pesquisa cuidadosa e bem informada de Maria Alice Milliet, vemos o caminho que tomou Yolanda (caminho que a consagrou em algumas bienais), escolhendo o informalismo (que correspondeu amplamente ao gosto da classe média brasileira em transformação), que ela praticava de uma forma razoavelmente distinta da maioria de seus contemporâneos (sobretudo os nipo-brasileiros), com uma paleta de cores muito elaboradas, estruturando formas que, de certa maneira, não negavam completamente o construtivismo.
Outra estrangeira, muito mais ousada e impertinente, foi a arquiteta Lina Bo Bardi. No seu processo de “abrasileiramento” ela ousou interferir em nossa tradição arquitetônica moderna de forma veemente. Os livros lançados pelas edições do Sesc ajudam na retomada dessa artista que reuniu um imaginário revolucionário trazido da Europa (o projeto exemplar de restauro da antiga fábrica que se transformaria no Sesc Pompeia visava instaurar uma sociabilidade comunal e politizada, como se fora a possibilidade de um “soviet” em pleno bairro operário paulistano), com uma pesquisa constante sobre o Brasil, como se fosse ela a continuadora do projeto de Mário de Andrade. Outros quatro livros trazem os projetos mais famosos de Lina, vez por outra explicados por ela mesma (que era também profunda pensadora da arquitetura e da cultura): o Masp (e seu vão livre, que funciona como uma praça cívica e política), o Teatro Oficina e seu palco-passarela, a Casa de Vidro e sua dialética entre transparência, natureza e memória, a Igreja Espírito Santo do Cerrado, em Uberlândia (MG), projeto comunitário que, segundo Lina, “foi construído por crianças, mulheres e pais de família, em pleno cerrado, com materiais muito pobres: coisas recebidas de presente, em esmolas. (…) O que houve de mais importante na construção da Igreja do Espírito Santo foi a possibilidade de um trabalho conjunto entre arquiteto e mão de obra”.
O outro livro é inédito. Trata-se do projeto do Solar do Unhão, em Salvador. Neste, a maneira com que Lina conjugou sua pesquisa sobre o Brasil popular e as técnicas construtivas modernistas em sua vertente libertária mostram-se plenamente a partir da simplicidade de sua intervenção em um monumento histórico que se tornaria um museu original, como um dia ela sonhou que o Masp pudesse ser. Esses nossos estrangeiros, como Lina, Yolanda ou Segall, ao abrirem os olhos para nós, nos permitiram imaginar o que somos e, sobretudo, o que poderíamos ter sido.
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