Estreia nesta quinta-feira a nova colunista da Brasileiros, Adriana Komives. Ela vai falar sobre o Paris, impondo em seu texto sempre o olhar de uma brasileira que mora há mais de 20 anos na capital francesa.
São seis e meia da manhã, ouvimos sirenes berrando na rua, algo está acontecendo, este medo na barriga não é à toa, de dentro da minha cama, debaixo das cobertas penso: preciso ligar o rádio. Minha filha levanta para se arrumar para a escola e me avisa: está havendo um fuzilamento em Saint-Denis. O quê? Sobressalto. Parece que é a policia que pegou os terroristas. O rádio ligado tenta descrever o que é visível, palpável, audível no centro da cidade de Saint-Denis, que é simplesmente uma extensão de Paris, colada, a uns três quilômetros da minha casa. Uma cidade onde moram filhos da imigração, a mesma onde fica o Stade de France, construído para a Copa de 1998, onde na sexta-feira (13) François Hollande poderia ter morrido com muitos de seus compatriotas.
Um apartamento onde se encontram terroristas foi invadido às 4h30 pela unidade de elite da policia militar, o GIGN, pois ali presumivelmente se encontra o “cérebro” dos ataques do dia 13, Abdelhamid Abaaoud, jihadista belga de origem marroquina.
Cérebro? No YouTube qualquer um pode vê-lo, um garotão de 28 anos, sorridente e exibido, boné afegão enfiado na cabeça, arrastando com seu jipe um cacho de “infiéis” assassinados por seus camaradas. É ele que está sendo caçado hoje aqui do meu lado, por militares, soldados, policiais, ambulâncias. Ouvimos no rádio o testemunho dos moradores, vizinhos deste apartamento “conspirativo” como foi classificado pelas Forças da Ordem. Como não torcer para que o peguem? Como realizar que isto está acontecendo de verdade, que não estamos em um filme? O som do helicóptero sobrevoando a cidade é uma prova de realidade. As sirenes que não param também.
Nestes dias que se seguiram à noite terrível da sexta-feira 13, os parisienses fizeram questão de afirmar sua coragem, sua resistência saindo às ruas. Peregrinação aos lugares onde nossos conhecidos, vizinhos, amigos foram abatidos. Acender uma vela e agachar ali onde se elegeu um altar, próximo ao Bataclan, perto de um amontoado de flores que representam o amontoado de cadáveres na casa de show. Uma onda de tristeza assola os cidadãos ali reunidos. Estar juntos nesta hora, em comunhão com as vidas interrompidas.
No dia seguinte, começam a aparecer os rostos. Rostos dos terroristas, todos jovens, franceses, com nomes árabes e histórias que ainda vamos descobrir. Também são seres humanos. E os rostos das vítimas, jovens, belos: duas irmãs de 26 e 27 anos, uma grafista, outra música; o dono deste restaurante destruído que viu morrer sua esposa e se mantém de pé para estar com sua filhinha; um rapazinho de 20 anos que recebeu no rosto os respingos de sangue de um rapaz abatido à sua frente; rostos de uma juventude que precisa mudar o mundo. Hoje anunciaram que foram enfim identificadas as 129 vítimas perecidas nos atentados, é dizer em que estado estavam os corpos, desconstituídos. Trezentos e cinquenta e dois feridos, em número extenso. Cinquenta e sete deles em unidades de reanimação. Os sete terroristas não são incluídos nesta conta, são contados à parte.
Diferentemente dos atentados de janeiro, desta vez não se ouvem “desculpas”, explicações, justificativas para estes atos. A República que não cuidou dos filhos de seus imigrantes não está sendo apontada com o dedo, nem fazendo a autocrítica do início deste ano. Trop c’est trop. O especialista do mundo árabe contemporâneo Gilles Kepel emite a teoria de que os terroristas desta vez atiraram em seus próprios pés, para utilizar uma expressão francesa. Foram longe demais, e não suscitaram com seus atos nenhuma ou pouca adesão da população.
As sirenes ressoaram o dia inteiro. Foram mais de sete horas de intervenção do GIGN. Oito pessoas esta noite estão presas para interrogatório. Dois terroristas morreram, inclusive uma mulher kamikaze. Como pode um corpo que dá a vida dedicar-se à morte alheia e à sua própria? Quem está por trás disto tudo? Que interesses? Que armas? Que jogos políticos?
Às 22h, o rádio enfim revela que o alvo da intervenção matutina, o garotão zombeteiro, Abdelhamid Abbaoud não estava entre os terroristas capturados. Estará na Síria, entre os 33 jihadistas mortos pelas bombas franco-russas?
Voltando para casa, dei de cara com a capa do Le Point. Pessoas abraçadas, num elã de compaixão, certamente depois dos atentados de sexta-feira. O título? Nossa Guerra. Como se a melhor resposta para tudo isto fosse aquele velho adágio hippie: faça amor, não faça guerra. Esta noite quero dormir com o coração branco, vermelho e azul, verde, amarelo, rosa e carvão. Todas as cores contra a escuridão.
Será que este tempo chegou? Não podemos todos, mas todos mesmo descer às ruas, aproveitando a COP 21, para pedir que o mundo seja de agora em diante regido pela fraternidade? Que através dela possamos atingir a igualdade, com melhor distribuição de renda e de responsabilidade climática? Para que a palavra liberdade ganhe sentido e corra em todas as veias, do momento em que ela não desrespeite a liberdade do próximo?
*Adriana Komives, brasileira de origem húngara, 51 anos, 31 em Paris onde estudou cinema e exerce desde então as profissões de montadora e roteirista. Consultora em montagem de documentários nos Ateliers Varan, la Femis, DocNomads, ensina o ofício de montagem no Institut National de l’Audiovisuel e roda o mundo trabalhando em oficinas de realização documentária.
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