A mão feliz de um grande desenhista (1931-2010)

Um dia, no topo de morro,?excitado pela brisa do fim da tarde perfumada pelos pinheiros de Campos do Jordão, convidei Wesley para elaborar a lista dos seus pintores preferidos em todos os tempos, excluídos os cavernícolas da Dordonha. Ele desfiou o seguinte rosário, sem hesitação: “Masaccio, Piero della Francesca, Caravaggio, Rembrant, Goya, Cezanne, Matisse, Francis Bacon”. Achei magnífica e bati palmas.

Se penso no amigo, me vêm à mente instantes nítidos extraídos da memória como de uma gaveta cheia, embora em desordem. E, então, ando pela calçada da Rua João Adolfo, quase na esquina da Nove de Julho, e ali dou com Wesley de paletó de tweed, chega com um amigo e somos apresentados. É um dia de agosto, ou setembro de 1960. Eu já ouvi falar dele, pela boca de meu pai. Meses antes, ele me contou ter conhecido um jovem artista muito talentoso na redação do Estadão. “Tem a mão feliz dos grandes desenhistas.”
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Daí, me ocorre recordar a coleção de desenhos apresentada em uma noitada do João Sebastião Bar, de Paulo Cotrim, em 1963. As modelos estavam presentes, jovens douradas, dispostas a posar de lingerie para o bico de pena de Wesley, era uma teia fina tecida sobre papel Fabriano com a seda das ligas e o nylon das meias implacavelmente pretas. Arrepiados, bebemos muito.

Pego-me agora na Marginal do Tietê a bordo de um MG, quem dirige é ele, de boné de lã quadriculado e cachecol bege ao vento, teria de ser o siroco da Costa Azul, de um lado o Mediterrâneo, do outro miosótis e bocas-de-leão perplexas, oliveiras e palmeiras descabeladas. Lamento, porém, a presença do rio e também o retorno ao trabalho, Wesley me leva para o edifício da Editora Abril, é a época da revista Veja.

Mais de uma vez ele abriu seu ateliê para meu deleite, e a casa no caminho de Santo Amaro, algo assim como a antecipação do loft, a misturar móveis de estilo, vitrais déco, camas japonesas. Mais de uma vez o entrevistei, mas valem, sobretudo, milhares de horas de conversas ao acaso, marcadas pela amizade antiga. Encantava-se pela criatividade cambiante conforme o tempo a viver, embora a emoção acabasse por tomar conta do artista e da sua obra.

Era capaz de urdir motivações de uma lógica pitagórica para a escolha deste ou daquele caminho, todos inspirados, ao cabo, no entanto, os sentimentos traíam as palavras de ordem. E agora ouço a sua voz, escandida, à beira de alguma solenidade no empenho da persuasão, pois seu impulso era no sentido de explicar e explicar para ser entendido. Colho-me a dizer: “Você não precisa disso, sua obra dispensa esclarecimentos”.

As várias fases percorridas ao longo do trajeto de Wesley exprimem um gênero de imaginação que inclui a invenção autêntica e bem-vinda. Há, de todo modo, uma coerência irredutível entre elas. E se lhe ouço a voz, surge na minha frente, como o vi, faz tempo escasso à mesa do amigo comum Armando Vasone, com seu cavalheresco semblante de general da Guerra de Secessão. Creio que esteticamente ele preferisse o azul acinzentado das fardas sulistas. Não sei se, chamado a optar, vestiria o azul escuro nortista. A julgar pelas feições, pelos bigodes bem penteados, pelo gesto elegante, concluo que ficaria bem à sombra de um chapéu de abas largas, de feltro na frente da guerra, panamá no alpendre da mansão colonial. Neoclássico o estilo, está claro.

Artista Wesley Duke Lee morre em São Paulo


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