Coluna_header_ topo Auro Danny Lecher
Ontem eu tive um sonho.

Estávamos no meu consultório, sentados em roda, confortavelmente instalados em nossas poltronas.

Igor, 17 anos, internado há dez meses na Fundação Casa. Roubou a ONG cristã com uma arma de brinquedo na mão.

Karine Dauchler, bela mulher de 35 anos, deprimida. Vive o drama do fim de seu casamento.

Noé, 80 anos, consternado. Numa grave crise de consciência. Fora obrigado por Deus a salvar do dilúvio apenas seus familiares e um casal de cada espécie animal.

Meu pai Itche, 77 anos bem vividos.

Ao lado, minha mãe, Ruchel, 71. Os dois, inseparáveis. Estavam ali, como sempre, para me apoiar.

Foto: Ingimage
Foto: Ingimage

Professor Lubávitch, 65 anos, catedrático de Línguas Latinas da Universidade de Jerusalém, exibe seu curativo na região das costelas, esfaqueado recentemente por um estudante radical ao sair de uma aula. Foi logo comunicando: estou curado de todas as dores, do corpo e da alma! Ajeitando seus óculos tortos com os cascos dos membros superiores. Tinha cabeça de gente e corpo de fera, como o Minotauro.

Entreolhamo-nos todos, preocupados com a saúde do professor. Breve suspensão de dois segundos, e o último integrante do grupo é finalmente apresentado.

Yasser Arafat, bem velhinho, talvez 90 anos, com seu inconfundível turbante na cabeça e corpo de imponente ave. Ave de rapina. Aninha-se estranhamente no encosto de sua poltrona. Eu fico preocupado porque suas longas unhas podem rasgar o tecido novo do poleiro, que eu acabara de trocar.

Como sempre, começo lembrando o enquadre de mais uma de nossas sessões quinzenais. Teríamos uma hora e meia para falarmos da vida. Da vida vivida de cada um do grupo e daquela vivida pelo próprio grupo.

Igor começa dizendo que naquela noite não iria falar nada. Mas confessa que deu graças à Deus quando a polícia arrombou a porta do barraco e o resgatou, junto com sua irmãzinha. Naquela hora preparava um ovo mexido para o jantar. Ele tinha 5 anos, ela 3.

Noé, ignorando o que Igor acabara de confessar, em tom severo, vocifera que Deus o traíra.

“Primeiro, ver meus amigos, meus vizinhos, os amigos dos meus vizinhos, todos, morrerem afogados no grande dilúvio. Como se não bastasse, Ele voltou a ficar furioso enquanto os sobreviventes tentavam construir a Torre de Babel, instaurando a confusão das múltiplas línguas, para que os homens não mais se entendessem entre si!”

O Professor Lubávitch pede a palavra visivelmente contrariado, mas eu me antecipo e proponho mudança súbita no movimento do raciocínio e da emoção que o acompanha:

“A nossa mente está estruturada na linguagem. Ela é linguagem. Quanto menos arte ou cultura mais primitivos ficamos. A violência é falta de linguagem. Se Ele puniu a humanidade com a disseminação das línguas e dos homens por toda a Terra, teve resposta da vida, que é mais complexa, e nos presenteou com nossa maior potência, de criação e autonomia: justamente a multiplicidade de linguagens. Podemos pensar sobre nós mesmos, sobre nossas tradições e contradições também, aliás aquilo que fazemos aqui, em cada sessão, não passa de um exercício de linguagem, procuramos dar nomes aos bois na linha”.

Mandei bem, pensei com os meus botões. Em seguida controlei a soberba. Terapeuta também é gente.

Meu pai, querendo apaziguar os ânimos, emenda: “Vocês conhecem aquela do Jacó? Ele perguntou pro Moisés por que estava triste. Moisés disse que perdeu a mãe. Coitada, o que ela tinha? Ele respondeu: Pouca coisa, um apartamentozinho, uma poupancinha…”

Todos nós sorrimos amarelo, só o Arafat parece ter realmente gostado da piada.

Karine, mais preocupada com suas próprias dores do que com as dores do mundo, vestida com sua burca transparente e lingerie mínima de renda preta, contrastando com o vermelho dos olhos, tingidos de sangue, dirigidos a mim, dispara:

“Estive em Paris recentemente, jantei naquele bistrô onde você me matou pela primeira vez”. E, aproveitando a palavra, mudou a direção do seu olhar para Noé, inspirou fundo e disse: “Eu simpatizo com o senhor mas, francamente, querer salvar o mundo é sublime, julgar-se o salvador é ridículo…”

A força daquelas palavras ditas por aquela mulher deixaram as reticências no ar por outros dois segundos, enquanto cada um de nós tentávamos mentabolizar tudo aquilo.

“Alguém quer falar mais alguma coisa? Estamos chegando ao fim da nossa sessão”. Gosto de deixar sempre uns minutos para o grupo compartilhar a novidade de alguma narrativa dentro de suas próprias novelas e sonhos. Aquilo que ganhamos em linguagem ao trocarmos nossas humanidades.

A cobra morde o próprio rabo. Igor pede a palavra. Ele iniciou, ele termina.

“Tenho dois pedidos: o primeiro é para o Professor Lubávitch, o senhor pode me dar uma carona até a Fundação? Se formos galopando chegaremos antes das dez. O outro é para todos nós, vamos fazer nossas sessões toda semana?”

“Bem, podemos retomar esse assunto, se o grupo concordar, na nossa próxima sessão, daqui a quinze dias. Ficamos por aqui, por hoje”.

Antes de acordar ainda ouvi minha mãe perguntando:

“Auro, você pegou o agasalho?”

Esfriaria naquela noite de verão.


*
Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo, psicoterapeuta e coordenador do Projeto Quixote   aurolescher@gmail.com psicoterapeuta e coordenador do Projeto Quixote   aurolescher@gmail.com

 


Comentários

4 respostas para “Sessão de terapia”

  1. Sabat shalom, Auro! É seu primeiro texto que leio. Gostei bastante.
    Espero que continue compartilhando pelo FB para que possa acompanhar os próximos.
    Mande lembranças para o Itche, Raquel e Betina (que não apareceu neste sonho).

  2. Avatar de Luciana São Pedro
    Luciana São Pedro

    Excelente!

  3. Bravo! Profundo, leve e divertido, tudo ao mesmo temo. Muito bom mesmo!

  4. Avatar de Isaac lescher
    Isaac lescher

    Auro parabéns, foi a melhor que já li até agora. Mas não esqueça de levar o agasalho.

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