Quando o feitiço se vira contra o feiticeiro, muito tempo depois

“No início de 2014, o Estado Islâmico divulgou um dos seus primeiros vídeos. Pouco visto na Europa, não tinha nem a edição profissional de suas posteriores gravações de execuções nem a hipnótica música ‘nashid’ que acompanha a maior parte da sua propaganda. Ao contrário; neste, uma filmadora de mão mostra uma escavadeira derrubando um baluarte de areia que marcava a fronteira entre o Iraque e a Síria. Enquanto a máquina destrói os alicerces, a câmera move-se para um
pôster escrito à mão caído sobre a areia.
‘Fim do Sykes-Picot’, diz o pôster.”

Robert Fisk, no The Independent, no artigo Isis: In a borderless world, the days when we could fight foreign wars and be safe at home may be long gone
(
EI: Em um mundo sem fronteiras, parece terem ficado para trás os dias em que podíamos travar guerras no estrangeiro e ficar a salvo em casa),
em tradução livre

Arte/Brasileiros
Reprodução

Em meio à grande cobertura dos recentes ataques perpetrados na França pelo autoproclamado Estado Islâmico, em geral marcada por uma visão em branco e preto da realidade, um pouco de história talvez forneça novos elementos de compreensão desse fenômeno. E a questão das fronteiras, muito mais permeáveis à passagem dos responsáveis pelos ataques do que gostariam os Estados europeus, pode ser tratada sob outra perspectiva. A perspectiva dos árabes.

Na medida em que não foram esses povos que criaram as fronteiras que agora se desmancham no Oriente Médio, o quanto o EI deve de sua popularidade à responsabilidade por essa mudança é uma importante questão. E de difícil compreensão para nós brasileiros, uma vez que sérias questões fronteiriças não nos perturbam há mais de um século, felizmente.

Faz parte desse mesmo questionamento das fronteiras o movimento desesperado de populações sobretudo sírias em direção à Europa –  uma fuga daquele mesmo grupo que ao declarar a constituição de um “califado” no nordeste sírio e no noroeste iraquiano impôs aí um descaso assustador pela vida humana. Que as populações sunitas do Iraque tenham em grande parte recebido e apoiado esse grupo não estranha, se levarmos em conta a maneira como elas vinham sendo tratadas pelo governo xiita instalado pelos Estados Unidos após a invasão de 2003. Aliás, essa é uma das teses do jornalista Patrick Cockburn em seu recentemente traduzido A Origem do Estado Islâmico (leia resenha à página 52).

Quanto a nós, acostumamo-nos a ver apenas alguma alteração fronteiriça no Oriente Médio em relação à Palestina, com os sucessivos avanços territoriais do Estado de Israel sobre Gaza e Cisjordânia. Qualquer livro didático de História Geral sempre traz uma sequência de mapas mostrando a expansão do Estado de Israel. Já os demais países, em que pese a instabilidade política que assola o Oriente Médio desde o final da Segunda Guerra Mundial, davam-nos uma impressão de estabilidade territorial, os mapas pouco mudando nesses últimos 50 anos.

Entretanto, o traçado muitas vezes feito à régua das linhas de divisas entre os países da região tinha muito pouco a ver com comunidades que se imaginassem nações e que, assim, demarcassem os limites geográficos da área de pertencimento. Ao contrário, assim como o colonialismo já havia feito na África, no século 19, essas linhas tanto dividiram comunidades há muito estabelecidas como agruparam seus retalhos em países fictícios cuja única razão de existência eram os interesses imperialistas de nações europeias.

Em outras palavras, os países que nossos mapas mostram hoje na região, especialmente Síria, Iraque, Líbano, Jordânia e Israel são consequências de um acordo secreto realizado em 1916 entre Inglaterra e França, representadas respectivamente por Mark Sykes e François Georges-Picot. Estes dois aristocratas acreditavam, como bons homens de império, que populações não europeias fossem incapazes de decidir acerca de seus próprios destinos, e sobre os escombros do antigo Império Otomano, que durante a Primeira Guerra Mundial se desintegrava, decidiram criar áreas de influência que atendessem à conveniência de ambas as potências em controlar rotas de comércio e explorar recursos naturais, notadamente o petróleo.

Ocorre que, de uma maneira geral, os árabes odiaram e continuam odiando essa divisão, embora tivessem de se acomodar a ela. Não que a convivência na região sob o domínio turco fosse tranquila. Longe disso, como atestam, para ficarmos no século 19, as perseguições a cristãos, e no início do 20, o genocídio dos armênios. Mas, se esperavam uma libertação decorrente do ocaso turco, como acordado com a Grã Bretanha antes da guerra, em troca da luta contra o poder otomano na guerra que se avizinhava, as populações árabes locais se depararam com a cupidez imperialista e seu fatídico resultado: países fictícios, governos títeres e exploração econômica.

Que desse caldo de cultura pudesse surgir um grupo de desequilibrados fanáticos que se aproveitasse da permeabilidade das fronteiras imposta pela chamada globalização não era algo que aquelas potências imperialistas esperassem quando, de régua e compasso na mão, redesenharam o mapa do Oriente Médio. 

*Professor de História

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