Cidadão Bertazzo

Formar cidadãos dignos por meio da dança. Essa sempre foi a prioridade do coreógrafo e diretor Ivaldo Bertazzo. Hoje, ele faz uma pequena correção de rota. Seu maior objetivo é formar bons profissionais. Ensinar a civilidade por meio do trabalho.

Os 18 bailarinos do espetáculo Corpo Vivo, que está em cartaz em São Paulo até dia 17 (veja resenha), são prova disso.
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Além da apresentação, o coreógrafo lança o livro Corpo Vivo – Reeducação do Movimento (Edições SESC-SP, 256 páginas) sobre o Método Bertazzo, desenvolvido por ele ao longo de 30 anos de estudos e experiências, e pretende rodar o Brasil levando seu conhecimento.

Envolvido com dança desde os 16 anos, Bertazzo é conhecido por democratizar essa arte. Inventou o Cidadão Dançante, conceito que levava ao palco pessoas comuns, de diferentes profissões e classes sociais, desenvolveu um projeto social na Favela da Maré que resultou nos espetáculos Mãe Gentil (2000), Folias Guanabaras (2001) e Dança das Marés (2002), e com 64 jovens da periferia de São Paulo produziu o fabuloso Samwaad (2004).

No SESC Pinheiros, em São Paulo, onde se apresenta, concedeu entrevista à Brasileiros.

Brasileiros – O que significa a peça Corpo Vivo no conjunto da obra, principalmente em Samwaad e Milágrimas, de um cara chamado Ivaldo Bertazzo?
Ivaldo Bertazzo –
Existem certos comprometimentos muito pouco encarados na espécie humana. Com o fato de nós termos conquistado uma postura vertical absoluta, o cérebro aumentou, o focinho diminuiu, as mãos viraram ferramentas preciosas. Tudo isso é realmente digno da última espécie, a síntese de todas ou a melhor delas. Porém, uma vertical absoluta para você trabalhar, comer, guiar seu carro e se locomover acaba se anulando pela própria manutenção, se achata, fica sem condição. Então, vem joanete, pé chato, artrose, hérnia de disco, hemorroidas, prisão de ventre, insuficiência respiratória, apneia noturna. Eu estou falando de coisas normais.

Brasileiros – Eu tenho 50% de tudo isso aí (risos).
I.B. –
Seria tão produtivo e delicado se começássemos a pensar: se o seu carro é um 4×4, você tem de tomar certos cuidados, porque pode comprometer o motor. Com a gente é a mesma coisa. Então, o preventivo é um reconhecimento de que todos nós envelhecemos. Não é se culpar dizendo: “Olha o que eu fiz comigo”. A gente sempre joga no psiquismo. É tomar vergonha na cara que é só uma questão de higiene e saúde.

Brasileiros – No espetáculo, os movimentos são inspirados nos animais. Por que, por exemplo, é importante eu fingir ser um pássaro?
I.B. –
Diminui a incidência da gravidade. O pássaro flutua, mas ele flutua contra uma câmara de ar, então essa flutuação é a que você, como jornalista, já tem no computador. Quando está digitando, você é um pássaro, porque são poucas as espécies que têm essa gravitação no plano horizontal dos braços.

Brasileiros – Por que é importante eu me fazer de cavalo?
I.B. –
Para que você não fique sempre vertical, para que se fortaleçam glúteos, pernas, encaixe dos ombros A atitude quadrúpede dá estrutura à coluna, depois você se mantém na vertical muito melhor.

Brasileiros – E de peixe?
I.B. –
São atitudes originais. Você foi peixe na barriga da sua mãe, os braços foram construídos para frente, as pernas, e tudo convergiu para frente sendo peixe. Enrolou, e esse enrolamento é que faz você virar um ser que entra em relação com o mundo e com os outros, é o único que se direciona para frente, porque foi peixe, tem essa capacidade inserida no seu corpo. É interessante isso, não é?

Brasileiros – Hoje, esses seus jovens, que vieram de um projeto social, se transformaram em verdadeiros bailarinos.
I.B. –
Meu sonho é transformá-los em futuros artistas. Antigamente, a televisão tinha vários Oscaritos e Grandes Otelos. O que é um Grande Otelo? Que vem, acho que de Minas, do interior, e que tem uma grande capacidade de interação e de movimento, é um comediante. Eles têm de se transformar em grandes comediantes para que novamente as televisões tenham de novo corpos de dança. Então, em vez de dizer que eu quero que ele vá para Alemanha e entre em um grupo acadêmico de dança, digo que quero que ele seja contratado pelas televisões do Brasil. Isso que me interessa, se um é escolhido para a Alemanha porque a perna sobe na orelha, isso é porque ele nasceu assim, com esse dom.

Brasileiros – O que você observa nesses jovens?
I.B. –
Tem uma coisa interessante. Quando fui com o espetáculo para a França, na época, os magrebinos tinham acabado de destruir as periferias de Paris. Nós fomos para fazer encontros em escolas públicas na periferia, só que caímos de queixo, era uma maravilha! Os meus meninos perguntavam: “Isso é escola de periferia?”. Você não sabe o chiquê! Informática, tudo. Mas quando nos juntamos, o que se via era uma inabilidade deles com o corpo, uma timidez e uma introversão. Eu olhava para os meus e pensava: “Seguramente, aqueles escrevem melhor, têm mais ferramentas para entrar no mercado”, mas os meus tinham uma postura e uma saúde corporal invejável!

Brasileiros – Melhor seria juntar as duas coisas.
I.B. –
Sim, juntar as duas coisas. Agora, tem um grande contraste mesmo, porque o magrebino lá jamais será um francês. E apesar da exclusão e de níveis muito rudes, aqui o nosso é brasileiro. Mas temos coisas muito sérias a trabalhar. Organização fonética, por exemplo. É gravíssimo, você vai se preocupar com dança, mas precisa também trabalhar a organização da palavra, a emissão do som, porque eles têm mais capacidade de escrita do que a gente imagina.

Brasileiros – E menos verbal?
I.B. –
É. O verbal é uma tragédia. A questão dentária é grave, má mastigação, há encurtamentos muito sérios nesses jovens, não sentam direito em uma vertical, os músculos da bacia são muito curtos e isso gera uma hiperatividade e uma agressividade, porque não têm conforto e bem-estar, não conseguem ficar cinco horas sentados em uma sala de aula. E a gente desenvolveu metodologia aqui. Os trabalhos sociais que falam de arte educativa têm de complementar o que a escola pública não está dando conta. Senão, para que serve o trabalho social? Hoje, a gente tem método, exemplos. Brinco que a gente poderia exportar modelos de trabalho social. Você tem o Nós do Morro, no Rio, que é teatro, e Edisca, em Fortaleza. Estou citando só alguns.

Brasileiros – Da época do Samwaad (2004), há uma cena que faço questão de colocar. Saí do espetáculo, como todos, bastante impactado com a qualidade, principalmente com a integração daquela molecada, daqueles pretos, amarelos, pardos brasileiros, todos ali com um olhar muito orgulhoso. Aí, eu saio de lá e perto do teatro havia uns meninos com as mãos na parede, um carro da polícia e um deles era um dos que eu acabava de ver com aquele olho brilhando de orgulho… Encontrei com ele, logo depois, e ele disse: “É isso mesmo, é assim mesmo, a gente vai levando…”. Como está a questão da cidadania? Hoje é mais dança e menos cidadania?
I.B. –
Acho o seguinte: cidadania é criar condições saudáveis de relação de trabalho. A carteira de trabalho é fundamental. Muitas vezes, aconteceu de um menino sair de seis horas de ensaio, mais um espetáculo de uma hora e meia, pegar seu metrô e a polícia exigir sua carteira de trabalho. Então, é fundamental ter um rigor, em futuros trabalhos sociais que pretendem capacitar um jovem para o mercado de trabalho, de, no período de um ano, decidir se ele tem o veio artístico. Diminuí o número de bailarinos, antes eram 64 e agora são 18. Hoje, todos do grupo são CLT. Esse foi o grande processo evolutivo, só que é onde a cobra morde o rabo, porque saíram do social, se profissionalizaram. Eu tinha de chegar a isso, senão não teria nenhuma graça. Aprendi isso com Carlinhos Brown. Essa cidadania é o jovem se sentir empregado, ter respeito.

Brasileiros – Como esses jovens chegam a você?
I.B. –
Sabe, vou exagerar, 80% deles chegam nas portas das ONGs dizendo: “Eu quero fazer teatro, dança”. Acho que se esses trabalhos sociais que levam à arte não trabalharem de mãos dadas com a escola pública, não tem nenhum sentido. É que tem muita competitividade, você chega nas escolas públicas, eles têm medo que você mexa no ensino formal, e você só está querendo que uma sala seja liberada e oficializada para esse trabalho, e não consegue.

Brasileiros – Lá atrás, você falou que o mais importante era formar cidadãos. Lembra disso? Que a ideia de tudo que estava fazendo era proporcionar, por meio da dança, a formação de cidadãos dignos.
I.B. –
Isso, agora mudei de ideia completamente. Penso assim: não importa o que ele venha a ser, mas ele terá de ser um excelente profissional no período em que estiver comigo.

Brasileiros – Por que isso?
I.B. –
Porque acho que trabalhar em um sistema bem organizado, com infraestrutura e respeito ensina civilidade. Então, hoje eu não digo mais que alguém transformou alguém para ser um grande ser humano, isso parece papo de guru, já um bom emprego…

Brasileiros – Você está lançando um livro e vai viajar o Brasil ensinando o seu método. Só para educadores?
I.B. –
Essencialmente educadores, que sejam fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, psicólogos, professores de educação física e de dança e também professores de escola pública, que precisam observar os sinais de descoordenação dos jovens. Agora, quando eu comecei, fazia Cidadão Dançante. Mas era o quê? O corpo igual ao meu. Minha mãe é sírio-libanesa, meu pai é italiano, seu pai espanhol, ou seja, esse corpo misto. Quando entrei em contato com eles, era um corpo que eu não sabia trabalhar, é uma outra etnia, o negro, o caboclo é outro corpo.

Brasileiros – Como você está vendo o País? Está otimista?
I.B. –
Estou otimista. Enfrento problemas da Lei Rouanet, o ministro quis fazer reformas, achei algumas boas. Acho muito bom esse deslocamento do eixo São Paulo-Rio. Sabe por quê? Seria muito benéfico que as pessoas que sabem dirigir arte em diferentes setores circulassem pelo Brasil. Tem muita coisa interessante, uma “desburocratização”. Agora não tem mais volta. Quando uma atriz antiga, e eu entendo, diz: “Ai que saudade de quando a gente subia pelo litoral de barco, e ia parando nas capitais e fazendo espetáculo, e eu sobrevivi a todos esses anos de bilheteria”. Os ingressos baratearam porque a gente quer que mais pessoas venham ao teatro. As coisas são feitas mais em massa, então nós não podemos mais viver sem Lei Rouanet. Como poderia cobrar um ingresso do meu espetáculo 80, 100 paus? Não posso fazer isso. Então, há movimentos que eu ainda não sei, mas eu tenho sentimentos bons. Sou um artista que vive do meu trabalho, tenho uma casa, um sítio, dizer que não ganhei com arte aqui no Brasil seria uma calúnia.

ESPETÁCULO DE SURPRESAS
por Mariana Borges

Objetos improváveis, como escovas, movimentos corporais inspirados em bichos e charadas fazem de Corpo Vivo, no mínimo, uma apresentação única

As surpresas de Corpo Vivo – Carrossel das Espécies, o novo espetáculo da Companhia TeatroDança Ivaldo Bertazzo – que estreou dia 10 de setembro e segue em temporada até 17 de outubro no SESC Pinheiros, em São Paulo -, começam antes mesmo do início da apresentação.
Ao chegar ao teatro, o público é recebido pela produção da companhia, que distribui escovas para cada um. “O que vamos fazer com isso?” “Será que é uma peça interativa?” Essas são algumas perguntas que passam pela cabeça. Mas não é nada disso. Os mais ansiosos terão de esperar até o meio do espetáculo – ou o final desse texto – para saber a resposta.
Com suas escovas na mão, as pessoas começam a se apressar para achar seus lugares na meia-luz, logo que o segundo sinal é emitido. Aos sussurros, os mais atentos alertam aos desavisados que os bailarinos estão entrando no palco. Cada um em seu espaço, eles começam a colocar as roupas, um quimono, da primeira coreografia.
Entre os bailarinos, é impossível distinguir diferenças. Com movimentos precisos, homens e mulheres dançam de forma harmoniosa. Mas, ao final da coreografia, uma pessoa fica em destaque, se posicionando na frente dos demais, que saem para a próxima performance. Para os espectadores que esperavam assistir a um espetáculo inteiro de dança, mais uma surpresa: esse homem começa a falar. É o ator Rubens Caribé que, interpretando o papel de um monge, divaga sobre a angústia de envelhecer e, quase que dando o tom do espetáculo, ressalta como é importante observar o comportamento dos animais para compreender e superar esse inevitável processo da vida humana.

O que é o que é?
Rubens Caribé sai de cena, deixando no ar uma charada para a plateia – recurso utilizado em todo o espetáculo para apresentar cada uma das danças. A resposta do enigma leva à compreensão da próxima coreografia. Uma dança que representa um réptil. Aí começa pra valer o Carrossel das Espécies. Na apresentação, Ivaldo Bertazzo – diretor e coreógrafo da companhia – procurou confrontar a espécie humana com a evolução de outros animais, descrevendo as características que diferenciam cada espécie.
Bertazzo mostrou as peculiaridades dos répteis, dos quadrúpedes, dos peixes e dos pássaros, até finalmente chegar aos homens. Mas, para mostrar os movimentos de cada animal, o espetáculo não conta apenas com a dança. Além das representações de Caribé – que não interpreta apenas o monge, mas também um maestro que dirige um coral de bichos -, o espectador é surpreendido por um repertório musical interpretado pela mezzo-soprano Regina Elena Mesquita (texto e roteiro são assinados por Marília de Toledo).
Após a dança dos pássaros, o espetáculo parece chegar ao fim. Entretanto, mais uma vez a plateia é surpreendida. Em meio a aplausos entusiasmados, o diretor da companhia toma a frente do palco e explica que há um último quadro inacabado. As luzes se apagam e a apresentação recomeça. Dessa vez, todos os animais representados entram no palco e Rubens Caribé desvenda cada charada que fez ao longo da apresentação, uma forma de explicar o espetáculo para aqueles que ainda estavam confusos.

E as escovas?
No meio da apresentação, a luz da plateia se acende. A desconfiança é geral. Até que, meio agitado, Ivaldo Bertazzo aparece, descendo as escadas rumo ao palco. “Será que aconteceu alguma coisa?”, é o que muitos se perguntam. Mas, aos poucos, todos vão entendendo o que se passa. Com uma escova em punhos, Bertazzo começa a dar uma aula de massagem facial para os presentes, uma forma de aliviar o estresse do dia a dia.
Se aquilo tem realmente algum significado dentro da apresentação, não ficou claro. Mas que deixou o ambiente mais descontraído e engraçado, isso é fato!

Corpo aberto


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