A maior biblioteca privada especializada em vinhos do mundo está em São Paulo. E é de um argentino que mora no Brasil desde a década de 1970. “Sou um bebedor, não me considero um enófilo”, diz Juan Carlos Reppucci, um engenheiro, amante da bebida e dos livros que falam dela. Os 5 mil títulos, que coleciona em suas estantes, variam do século XV ao atual, e contam, mais que a cultura vinária, a história da humanidade.

Para se ter uma ideia, existe lá, aproximadamente, uma centena de incunábulos – livros produzidos entre 1450 e 1500, época da criação da imprensa, dos tipos móveis, por Johannes Gutenberg. Na belíssima coleção, há também um pré-incunábulo – portanto, um manuscrito – datado de 1450, feito por escribas e traz um tratado sobre a agricultura, com um capítulo dedicado ao vinho e às vinhas.
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Todo esse tesouro é resultado de mais de 20 anos de incursões em livrarias antiquários ao redor do mundo, onde Reppucci garimpa raridades sem se importar com preço. Pelo menos não muito. Um delicioso hobby para se desfrutar sem moderação. Confira a entrevista.

Brasileiros – Como começou sua biblioteca vinária?
Juan Carlos Reppucci –
Comecei a gostar de vinho quando morava na Argentina, o que trouxe como consequência uma curiosidade sobre sua história. Comecei a perceber que havia literatura sobre o tema, então me interessei em me aprofundar um pouco. Sou um bebedor, não me considero um enófilo. Mas comecei a procurar alguma coisa e comprei alguns livros. O primeiro passo aconteceu em Buenos Aires. Fui a uma livraria, que hoje está meio desativada, depois disso cheguei à Livraria Antaño, da qual compro até hoje, faz mais de 20 anos. Fica em Buenos Aires, na calle Sánchez de Bustamante, em Palermo, ao lado do Shopping Alto Palermo. Vi que ali tinha alguma coisa do século XIX e comecei a me entusiasmar com a ideia de comprar algo sobre o tema.

Brasileiros – Você já tinha algum tipo de experiência com coisas antigas?
J.C.R. –
Nada.

Brasileiros – Você gostava de vinhos e começou a pesquisar sobre o assunto. Mergulhar nas raízes literárias do vinho?
J.C.R. –
Exatamente. E ver que o tema vinho era um tema tão antigo como o mundo. Não podemos falar 2 mil anos, mas 5 mil anos, quando já há provas de que o ser humano fazia vinho. Bem, aí eu comecei, viajei um pouco, sempre viajei, lembro-me de que fui a Roma, circulei pelos antiquários, comprei alguns livros. Lembro-me perfeitamente de que um senhor que vendia antiguidades, era simpático o cara, me vendeu uma litografia tirada de um livro de 1776, para você ter uma ideia. Então, ele me indicou um livreiro, eu já conhecia um livreiro antiquário em Roma, e ele me indicou um em Turim. Então, fui até Turim e gostei dele, porque era um cara que conhecia tudo e todos, e me falou de um em Paris, outro nos Estados Unidos, e aí o leque foi se ampliando.

Brasileiros – Livrarias antiquários, não de vinhos.
J.C.R. –
Sim, livrarias antiquários. Há livrarias que são mais especializadas que outras. Por exemplo, há uma livraria de gastronomia e dentro desse assunto tem um item importante, que é o vinho. Gastronomia e vinho é um casamento natural. Aí, fui atrás de livros e começaram a aparecer coisas do século XVIII, XVII e XVI. Em algum momento, apareceu um incunábulo, livros produzidos entre 1450, mais ou menos a idade da imprensa de Gutenberg, e 1500. Até 1500 são considerados incunábulos. Quando percebi que havia todo esse material, comecei a comprar. Tinha o dinheiro para isso e fui comprando. Não é um esporte barato, no final do mês você vê. José Mindlin sabia bem disso.

Brasileiros – É como vinho? Há de todos os preços.
J.C.R. –
Isso. Você tem vinho de R$ 20 e de R$ 2.000; tem livro de US$ 50 a US$ 1 milhão, mas não é o meu caso.

Brasileiros – Existe?
J.C.R. –
Existe. De € 800 mil, até mais do que isso. Tem gente que tem dinheiro, que pode e que gosta. Eu me interessei pelos livros mais antigos e mais raros. Hoje, tenho muitos do século XIX, bastante do XVIII, também do século XX. O interessante é que vi em obras do século XVI referências não só ao vinho, mas de um monte de coisas, a ciências naturais, ao estudo de plantas, e capítulos sobre vinho. Há livros de medicina que aplicam o vinho como remédio. São obras que me interessam, porque ajudam a formar não apenas a história do vinho, mas a história da civilização. Tenho vários, cerca de 20, livros de Plínio, com capítulos dedicados a vinhas e vinhos. Os livros estão escritos em latim. Plinius Secundus nasceu em Como, no ano 20 de nossa Era – mais precisamente no ano 24 d.C. – onde hoje é a Itália; ele era um observador da natureza. Tivemos muita gente assim na Antiguidade. Ele morreu no ano 79, intoxicado pela fumaça do Vesúvio. Quando o vulcão entrou em erupção, ele foi até lá para observar, para documentar e morreu. A história está documentada.

Brasileiros – A história foi editada…
J.C.R. –
Muitas vezes. Eu tenho a primeira edição, sou “enamorado” de Plínio. Um parêntese: Plínio nasceu nos anos 20 e escreveu lá pelos anos 60 ou 70. Acontece que o livro foi passando de uma geração para outra em forma de manuscritos, porque não havia outra forma de fazer. Os manuscritos de Plínio foram impressos em 1400, depois em 1476. Sei essa data de cabeça porque tenho a primeira edição.

Brasileiros – Você tem oito prateleiras de incunábulos!
J.C.R. –
Este livro de 1476 é original. Em princípio, o incunábulo era uma cópia do manuscrito. Se você pegar um livro qualquer, verá que ele tem uma capa que identifica quem foi o impressor. O incunábulo não tinha isso. Este livro comprei casualmente de um senhor em uma livraria antiquário, em Torino. Esse é um livro muito importante, raríssimo. Comprei do jeito que está. Quando se compra um livro, é importante que o conjunto dele – tema, miolo – seja original. É preciso avaliar sua encadernação, como estão as margens, as imagens, porque, à medida que passam os anos, ao circular pela biblioteca e ser manuseado, o livro vai se rompendo. Às vezes, é necessário refilar as páginas, e o corte vai ficando cada vez mais perto das letras, isso desvaloriza o livro. Mas este é um livro realmente em estado muito bom.

Brasileiros – O que mais você destaca dos seus tesouros?
J.C.R. –
Tenho um livro que é muito importante, que é também incunábulo. Esse aqui (foto da página 37 que ilustra a abertura da seção 30 dias). O nome é Tractatus de Proprietatibus Rerum, também chegou exatamente como era. O curioso é que foi impresso poucos dias antes do Descobrimento do Brasil, em 17 de abril de 1500. Tem texto, figuras e capítulo dedicados ao vinho, mas fala de tudo, inclusive de anatomia. Comprei de um livreiro francês que quis comprá-lo de volta, mas falei que não vendia. Seguramente, pagaria até 40% a mais. Este livro tinha uma autorização do Ministério da Cultura da França para poder sair do país.

Brasileiros – E o que mais?
J.C.R. –
Aqui, eu vou te mostrar uma coisa incrível. Tenho o mesmo livro em duas edições: um manuscrito de 1450, o único pré-incunábulo, e um incunábulo, datado de 1490. Chama-se Il Libro della Agriculturta (O Livro da Agricultura), e é de Pietro de Crescenzi. Ele foi um agrônomo italiano que nasceu por volta dos anos de 1200 ou 1300. Esse manuscrito, de 1450, foi feito por um ou dois escribas contratados por um senhor. Escreviam duas ou três folhas por dia.

Brasileiros – É um pré-incunábulo?
J.C.R. –
Sim. É o único pré-incunábulo que eu tenho.

Brasileiros – E como você conseguiu?
J.C.R. –
Eu tropecei nesse manuscrito quando um livreiro de Torino me falou: “Tenho algo para você”. Isso aconteceu há aproximadamente 10 anos. Já o incunábulo, eu comprei em 2004. Uma coisa importante é que, os nomes que vêm da Antiguidade, às vezes, em latim, mudam. Muitas vezes, se colocava o nome da cidade onde tinha nascido junto ao nome, então, muitas vezes o nome da cidade era confundido com o nome da pessoa.

Brasileiros – E este aqui, é um incunábulo também?
J.C.R. –
Sim, um incunábulo espanhol, de 1497. O impressor é Arnaldo Guillen de Blocar, nasceu em Viterbo, na Itália, e morreu em Lion, na França. E o livro foi publicado em Barcelona, era assim. O livro fala sobre uma dieta e cita o vinho, já que na época a bebida estava relacionada à gula, consequência do excesso de bebida. Fala sobre isso, os problemas da bebedeira.

Brasileiros – Chama-se Dieta Salutes San Buonaventura, ou seja A dieta saudável do São Boa Ventura. Teoricamente, o nome do autor é atribuído a San Buonaventura. É isso?
J.C.R. –
Isso. Deve ser algum santo daquele tempo.

Brasileiros – Que maravilha! Ou seja, ele foi o impressor, o Arnaldo Guillen de Blocar, 23 de novembro de 1497.
J.C.R. –
Quero mostrar outra coisa.

Brasileiros – O quê?
J.C.R. –
Outro livro onde o vinho é mencionado é a Bíblia. Acredito que aqui é a bíblia antiga, não muito mais, 1495. O primeiro livro impresso, beleza fantástica. Esse é um exemplar muito interessante. Há muitas bíblias porque foi o primeiro livro impresso.

Brasileiros – Mas por que você diz que é interessante?
J.C.R. –
Porque tenho uma edição fac símile. Esta é uma bíblia original, de 1490. Eu quero que veja o que está aqui. Lá por 1960, nos Estados Unidos se resolveu fazer uma tiragem de mil exemplares da melhor bíblia, a que fez Gutenberg, que está na biblioteca da Alemanha. E usaram um meio mais moderno, provavelmente, fotográfico, fico imaginando que deve ser bem original, porque é uma obra de arte.

Brasileiros – Essa aqui foi feita nos Estados Unidos, ou seja, é a primeira do Gutenberg, que fez todas essas…
J.C.R. –
Sim, o Gutenberg fez. Então, depois tinha o cara que iluminava, que fazia as letras, e tem um artista que é um verdadeiro pintor. Não havia máquina que fizesse. Ele fez tudo isso. É uma edição americana de 1961, com tiragem de mil exemplares.

Brasileiros – Ou seja, também é um negócio valiosíssimo, está longe de ser incunábulo, mas está longe de não ter valor.
J.C.R. –
Eu comprei em 1997, paguei uma fortuna por esse exemplar. Não é antiga, mas é muito valiosa. Não existem mais exemplares. Eram só mil.

Cevada, levedo e muito charme


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