As portas do salão de dança ainda estão fechadas, e a educadora Sofia Paula, de 36 anos, já ensaia os passos com o primeiro parceiro ao som do choro que esquenta lá dentro. Pista livre, banda ao fundo, os dois entram rodopiando e vão formar pares diferentes a cada uma das 20 músicas da noite. A roda é de choro com pitadas de baião, maxixe, ritmos africanos, rock, fado e outras músicas populares portuguesas.
As ruas que levam até ali são estreitas, mas não são da Lapa, no Rio de Janeiro. O bairro é Alfama, o mais tradicional reduto lisboeta do fado. Foi ali que a Roda de Choro de Lisboa, formada por brasileiros, portugueses e um francês, salvou o Lusitano, clube tradicional português, de seu fim.
Se nos botecos e auditórios o ritmo brasileiro costuma ser contemplado, ali há pouco espaço para cadeiras e poucas mesas para tamborilar. O centro da atenção é a pista, disputada por portugueses desbravadores do gingado, brasileiros saudosos e estrangeiros de passagem pela cidade. É o Bailarico Gingão, festa do clube Lusitano. “O objetivo não é fazer uma roda como no Rio de Janeiro, até porque é inglório concorrer. Queremos transportar as pessoas em uma viagem musical dirigida pelo choro”, diz o português Nuno Gamboa, o violão de sete cordas da Roda.
Choro world music
A canção André de Sapato Novo, de André Victor Correa, puxa fandango português e czarda húngara (música que começa lenta, tem um ápice e depois torna-se rápida). Brejeiro, de Ernesto Nazareth, vem acompanhado de malhão português e maxixe brasileiro. O resultado é um choro com cara de world music, “universitário”, que a Roda quer levar aos festivais do gênero Portugal afora. Instrumental – a não ser por exceções como a música Jumento Celestino, dos Mamonas Assassinas, no meio de Delicado, de Waldyr Azevedo -, a banda conduz, em média, 200 pessoas todas as terças-feiras.
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O choro que salvou o Lusitano só tem bandolim e pandeiro brasileiros. São eles: Edu Miranda, criado no choro e bandolinista desde os 11 anos, está em Lisboa há 22; no Brasil, tocou com músicos portugueses de renome, como António Chainho e Pedro Joia, e iniciou a mescla de ritmos brasileiros e música tradicional portuguesa. E Alex Santos, o “Barriga”, que começou nos atabaques do candomblé aos seis anos, foi para os repiques de escola de samba aos 11, e rumou para Lisboa aos 31. Achava que haveria menor concorrência na percussão, mas encontrou músicos tão bons quanto os brasileiros.
A Roda de Choro de Lisboa ainda é composta pelo português Nuno, sete cordas, que desde 1997 toca com brasileiros e se apaixonou pelo senso de humor e o espaço de improviso no choro; Carlos “Bisnaga” Lopes, o segundo português, que herdou aos seis anos o acordeom do pai e do avô, é músico de folclore, mas estudava o ritmo sozinho em casa, e o francês Etienne Lamaison, clarinete da Roda, que foi para Portugal como primeiro clarinetista da Orquestra Metropolitana de Lisboa. Estuda a teoria do improviso no doutorado e a pratica no choro.
Além de música, há uma estratégia para animar o Lusitano. Antes do show, há duas horas de aula de dança que atraem de 10 a 20 casais por noite. Após meia hora para jantar e repor as energias, eles começam a festa.
O engenheiro de telecomunicações português Artur Armeda, de 35 anos, conheceu a Roda acompanhando a mulher, a brasileira Monica Kerr, de 29, e quis fazer as aulas. Vão há dois anos, quase todas as semanas. “Antes, havia espaço, agora é preciso se acotovelar para dançar”, diz Monica. O casal de portugueses, Casimiro Filipe, com mais de 60 anos, e Maria Teresa, que não quis revelar a idade, foi pela primeira vez para confirmar o alarido de que o bailarico era bom para dançar e aprovou.
Só não pode pedir bis. “There is an old lady who lives upstairs and she needs to rest, so we really have to stop” (“Há uma senhora de idade que vive no andar de cima e ela precisa descansar, então nós realmente temos de parar”), responde Bisnaga a pedido do público, a cinco minutos da 1 hora da manhã. Cumprir à risca o horário e conseguir 165 assinaturas em uma petição pública foram a salvação da festa após 18 intervenções da polícia, resultado da reclamação de uma vizinha octogenária que mora no mesmo prédio. “Eu entendo a idade dela, mas o choro mantém o clube. Ela foi feliz aqui quando tinha 20 anos”, diz o ex-presidente Luis Carvalho.
Salvação
Seria um fim inesperado para uma recente ressurreição. Há dois anos, o fechamento parecia iminente. “O Lusitano foi um clube de elite, onde só se entrava de gravata e era preciso ter uma história sem máculas para virar sócio, berço da conspiração de maçons contra a monarquia e espaço de convívio e de bailes”, conta Carvalho. As guerras entre Portugal e as colônias africanas, em 1964, e o fim do salazarismo, em 1974, mudaram Alfama. A população envelheceu, a vida se modernizou, as associações de bairro se esvaziaram.
Da trajetória, parecia ter sobrado somente um espelho dos anos 1930, avaliado em 45 mil euros, e a certeza de que a tinta das paredes do salão cobria azulejos antigos, madeiras centenárias e cantarias interiores – “obra de algum gênio”. Carvalho assumiu um clube moribundo, com a sede caindo aos pedaços. Pagou as dívidas e reformou chão e teto do salão. Ainda cheirando a tinta, ficou esperando algo acontecer. A banda de choro passou.
Com três anos de bailaricos, buscavam um lugar maior para onde levar a centena de espectadores semanais. Sem querer tocar em uma black box, como são definidas as boates, procuravam um salão de estilo antigo para compor o ambiente da Roda. Desde então, o Lusitano recebeu 20 mil pessoas em 140 espetáculos, foi cenário de filmes (um sobre a vida da fadista Amália Rodrigues) e novelas, e palco de festas particulares. Deixou de ser fachada e se tornou ponto turístico em uma rua que liga o Castelo de São Jorge à Igreja da Sé.
Ainda que contornadas as reclamações da vizinha e com a casa cheia, a festa oficial de 105 anos do Lusitano, no mês que vem, será pouco pretensiosa. “Uma ‘festazinha’ a gente sempre faz”, diz o atual presidente, Manoel de Sousa, mencionando um almoço para os sócios que quiserem ir. São eles e a Roda que mantêm o clube. Enquanto o choro gingar, há Lusitano – e festa toda terça-feira.
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