Imagens de sírios esquálidos, sitiados e sem acesso a comida e medicamentos, se espalharam pelo noticiário mundial nesta semana. Os depoimentos assombrosos dão conta de que muitos foram obrigados a se alimentar de cães e gatos. Na falta desses, de grama. No inverno e sem vegetação, vivem, ou melhor, morrem à base de água e sal.
A população está em meio ao fogo cruzado entre o Estado Islâmico, também chamado de ISIS, e das forças do Bashar Al Assad, presidente da Síria. Além disso, há diversos grupos que lutam contra o governo sírio, mas que também são alvo do grupo terrorista, como o Exército Livre da Síria.
Segundo o jornal Al Jazeera, estima-se que 400 mil pessoas estão sitiadas no país. Para a historiadora e especialista em Oriente Médio, Arlene Clemesha, não há perspectiva de que uma solução seja alcançada para essa população. “O principal meio seria através do Conselho de Segurança da ONU, se aprovasse uma intervenção humanitária. Mas o mundo parece ter desistido e enterradosuas esperanças. É uma situação calamitosa. Um crime contra a humanidade o que está acontecendo”.
Segundo Arlene, as potências que decidiram intervir na guerra da Síria, como Estados Unidos e França, não estão guiados pelo interesse humanitário: “Cada país tem a sua agenda política”. Diz também que o Estado Islâmico é impossível de ser derrotado apenas militarmente: “Uma derrota militar do Isis não derrotaria o fenômeno, a ideologia, as causas que levaram ao seu surgimento, que são profundas no Oriente Médio e vêm de dezenas de anos de intervenções”.
Leia a entrevista com a historiada abaixo:
Revista Brasileiros – O que mudou na Síria desde que os EUA e a França decidiram entrar na guerra ao Estado Islâmico?
Arlene Clemesha – A guerra da Síria passou por alguns momentos-chave. O primeiro foi a transformação da revolta pacífica da população em uma guerra civil através da repressão violenta do regime de Bashar Al Assad, presidente da Síria, contra a população. O segundo foi o ingresso do Hezbollah para socorrer Al Assad quando este começou a sofrer derrotas para o recém-formado Exército Livre da Síria. Ao mesmo tempo, grupos radicais islâmicos sunitas da Síria se inseriam na guerra civil causando terríveis derrotas para os grupos originais, com o Exército Livre da Síria e organizações de base da população. O momento seguinte é quando a coalizão liderada pelos Estados Unidos inicia bombardeios mais intensos na guerra da Síria, com o objetivo de conter o ISIS e enfraquecer Al Assad ao mesmo tempo. Enquanto isso, no Iraque, diferentes forças lutam contra o ISIS, sem a desejada coordenação entre elas e com boa dose de desconfiança, como ocorre entre as milícias iranianas, o exército iraquiano, e algumas lideranças sunitas regionais que não aderiram à organização terrorista. Os curdos da Síria, no início, procuraram manter-se alijados da guerra civil, mas acabaram ingressando na luta contra o ISIS, junto com os curdos do Iraque, ao ponto de se tornarem uma das principais forças no terreno de combate à organização terrorista. Finalmente, pode-se dizer que o terceiro momento-chave foi o ingresso da Rússia, em apoio ao regime de Assad, histórico aliado regional.
Os radicais islâmicos são contra o Assad também?
São contra o Assad, contra grupos não radicais como o Exército Livre da Síria, e, de fato, contra todo e qualquer grupo que faça resistência a seu projeto expansionista de poder absoluto na região.
Para combater o Estado Islâmico, essa coalizão liderada pelos EUA acaba apoiando o Assad?
Não. Um dos motivos do impasse sobre o terreno é que não há uma unidade de estratégia ou de ação. Não há dois lados, há vários atores em guerra. Assad combate tanto o ISIS como organizações populares e o Exército Livre da Síria, cometendo irrefutáveis crimes de guerra, como o bombardeio da população civil com armas químicas. Já a coalizão liderada pelos Estados Unidos entra na guerra para combater o ISIS e supostamente apoiar os opositores “não-radicais” contra Assad. Mas não há uma unidade de agenda sequer entre os integrantes dessa coalizão. A Turquia, um dos integrantes da coalizão, executa ataques contra as Unidades [curdas] de Proteção Popular (YPG), não obstante o fato das YPG serem uma das principais forças combatendo o ISIS. A Jordânia apoia o programa americano de treinamento de combatentes, cujo destino final tem sido, por vezes, a deserção para as fileiras do radicalismo. Outros aliados regionais têm sido incapazes de parar o afluxo de combatentes e fundos para apoiar organizações terroristas.
Não obstante os EUA negarem que sua estratégia seja de mera contenção ao ISIS, as informações que nos chegam de dentro revelam que nem os bombardeios americanos nem o programa de treinamento ou apoio logístico que até o momento foram postos em prática seriam capazes de alterar decisivamente a correlação de forças locais e trazer uma vitória para a luta anti-autoritária, contra Assad e contra o ISIS ao mesmo tempo. Para não mencionar os efeitos conhecidos e esperados de tamanha fragmentação de forças sobre o terreno e dentro da própria coalizão.
Finalmente, derrotar o extremismo islâmico que tem no ISIS seu principal representante depende de mais do que uma vitória militar no eixo Síria-Iraque. O ISIS pode não ser um Estado plenamente constituído, mas é bem mais do que um grupo ou organização. Trata-se da expressão organizada de certa ideologia extremista islâmica, que é reflexo, ou, pode-se dizer, cuja propagação foi potencializada por problemas profundos que a Síria e o Iraque, a região como um todo, vêm sofrendo há bem mais de uma década.
O principal alvo da coalizão é o ISIS, e não a queda do Assad?
Como estávamos falando, não se pode fazer essa afirmação. Se houvesse um principal alvo no ISIS, o panorama da guerra seria, pelo menos, mais claro e transparente. As forças em jogo são várias e cada uma tem uma agenda própria. A Turquia, por exemplo, tem se mostrado mais preocupada em derrotar os curdos que lutam há várias décadas pela independência nacional, o que poderia significar para a Turquia a perda de uma porção relevante de seu território. A intervenção da coalizão liderada pelos Estados Unidos não chega sequer a reunir seus membros dentro de uma estratégia unificada de combate.
Quando os EUA falam na guerra ao terror, pelo menos no campo simbólico, dizem lutar contra o ISIS, não?
No campo simbólico, a mensagem passada é que a guerra é contra o ISIS. Mas não é só do ISIS que se trata, porque a Al Qaeda continua atuante em toda a região, vários outros grupos estão presentes, não só no Oriente Médio, mas no norte da África, regiões da Ásia, e há questões internas de longa data. Seria um erro colocar toda a ênfase no ISIS, já que outros grupos, de diferentes países, da Nigéria à Indonésia, tem inclusive declarado adesão ao ISIS. Ou seja, não se trata de um só grupo e o problema não se resolve por meio da ação militar pontual na Síria e no Iraque.
De que maneira se resolve, então?
Através de várias medidas conjuntas de médio e longo prazo que passam por, segurança, estabilidade, desenvolvimento e democracia, apoiando as forças internas que há muito tempo lutam contra o autoritarismo. Uma derrota militar do ISIS não derrotaria o fenômeno, a ideologia, as causas que levaram ao seu surgimento, que são profundas no Oriente Médio e vêm de dezenas de anos de intervenções. O contexto de surgimento do ISIS foi, claramente, a intervenção dos EUA em 2003 no Iraque. Mas as insatisfações que sua ideologia deturpada angaria remontam aos acontecimentos do início do século XX, do período de fragmentação das terras árabes do Oriente Médio em mandatos traçados e determinados em reuniões fechadas da Liga das Nações, a predecessora da ONU.
Então na sua opinião o mundo não deve tomar nenhuma atitude pontual para combater o ISIS?
Pelo contrário, todo apoio deve ser dado àqueles que estão lutando pela emancipação política, após décadas de autoritarismo na região. Para não mencionar a necessidade, desde 2011, de uma intervenção humanitária comandada pela ONU, mas que nunca chegou.
Isso não seria considerando um apoio militar? Apoiar os grupos que estão em guerra?
De fato, no contexto de guerra como o que temos hoje, qualquer apoio passa por alguma forma de engajamento militar. Inclusive a proteção humanitária. O desejável, e lamentavelmente isso não aconteceu, teria sido o apoio à revolta pacífica da população ainda nos primeiros meses de 2011, e assim mesmo isso poderia implicar na criação, por meio militar, de uma zona de exclusão aérea. Quando Assad começou a massacrar a população, nada foi feito. O Conselho de Segurança da ONU, mediante o veto da Rússia, ficou paralisado. Alguns países se silenciaram em função de velhas relações de amizade com o regime sírio. Outros, alegando que a Síria de Assad representa a resistência no Oriente Médio contra o imperialismo, apoiaram o regime enquanto reprimia à bala e cometia torturas contra sua própria população. Cada um tinha seu motivo para não defender a população da Síria. Uma intervenção de caráter humanitário e não de mudança de regime, aprovado pelo Conselho de Segurança da ONU, naqueles primeiros quatro meses da primavera árabe, teria possivelmente sido a melhor saída para trazer uma rápida estabilização do panorama local e promover negociações diplomáticas entre as partes. Uma vez que a revolta foi –propositalmente, por parte do regime- transformada em guerra civil, tampouco apoiou-se efetivamente a revolta, com as armas e recursos necessários. O Exército Livre do Síria, grupos armados de resistência, e milícias curdas alegam jamais terem recebido o apoio necessário. Boa parte dos grupos populares da Síria foi derrotada antes, ou até dezembro de 2012. Sobrando grupos cada vez mais radicais, e aí o surgimento do ISIS.
Por que mesmo com a intervenção dessas potências, que dizem lutar em prol da liberdade, dos direitos humanos, vemos 400 mil pessoas sem acesso a comida e medicamento na Síria?
Justamente por esse problema de agendas políticas próprias de cada país da coalização. Se você tivesse uma agenda unificada dirigida para um fim humanitário, a essa altura, talvez fosse possível resolver essa situação no prazo de alguns anos.
Vou lhe dar um exemplo. Durante a Segunda Guerra Mundial, os judeus da Europa foram levados em massa aos campos de concentração, onde morriam de inanição, doenças e trabalho forçado. A partir de 1942, começou a solução final. Alguns campos de concentração e trabalho forçado foram transformados em campos de extermínio. As potências em luta, França e Inglaterra, e depois os EUA, sabiam da existência dos campos de concentração e extermínio. Por que não bombardearam as estradas de ferro? Estavam combatendo o regime nazista, mas seus interesses de defesa nacional não incluíam cálculos ou esforços humanitários de salvar os judeus, que aliás eram em boa medida tidos como cidadãos de segunda categoria onde quer que se encontrassem. As potências de hoje também não estão na Síria por interesses humanitários – cada um tem seus interesses e suas agendas políticas. Os EUA gostariam de derrubar o Assad devido principalmente a sua aliança com o Irã. A zona de influência iraniana no Oriente Médio cresceu muito na última década e por mais que os Estados Unidos tenham um importante acordo nuclear com o Irã, não são amigos nem aliados – a não ser possivelmente em ações ou táticas pontuais. Ou seja, os EUA tem interesse em uma mudança de regime na Síria que enfraqueça o eixo Irã-Iraque-Síria. E assim vai. Para nenhum dos países envolvidos na Síria, o objetivo dos combates passa pela da proteção à população civil. Pelo contrário, as denúncias dos órgãos de defesa de direitos humanos apontam para a prática de punição coletiva da população. Notadamente, o regime sírio tem sitiado vilarejos e cidades inteiras que concedam abrigo a uma facção inimiga, seja qual for. A prática constitui uma grave violação das leis de guerra e tem sido responsável por boa parte da fome calamitosa que acomete a população da Síria. Assim foi com a tragédia humanitária no campo de refugiados palestinos de Yarmuk, e agora, com o mais recente escândalo de Madaya.
Mas quando os EUA dizem que combatem o ISIS, não é uma questão humanitária? Para salvar os civis das atrocidades do grupo terrorista?
De fato a luta contra o ISIS se apresenta como uma luta por fins, em última instância, humanitários e de toda a humanidade. Os atores regionais nessa guerra lançam mão desse argumento. Os EUA lutam contra o ISIS, assim como a Rússia. Onde que está a grande diferença entre eles? No apoio ao Assad, e, nos demais grupos que combatem ao mesmo tempo em que combatem o ISIS. Então a agenda deles não é a mesma de forma alguma. As armas que vão passar, os combatentes que serão treinados, os locais bombardeados, é tudo diferente. Em última instância, e muito lamentavelmente, não é só o ISIS que comete atrocidades contra a população local.
Qual o interesse dos EUA em combater o ISIS se não há um fim humanitário e se o grupo também é contra o Assad?
Se o Assad é um inimigo, o ISIS é uma ameaça. Regionalmente falando, o ISIS constitui hoje uma ameaça aos principais aliados dos EUA na região –Arábia Saudita, Israel, Jordânia e assim por diante. Segundo, trata-se de um grupo terrorista que já cometeu e pode voltar a realizar atentados na Europa e nos EUA.
E qual a perspectiva para a população síria, que se vê em meio a tanto fogo cruzado? De onde pode vir a ajuda que ela precisa?
Não vejo perspectiva a não ser pela garantia de estabilidade na região para abrir uma fase de negociações político-diplomáticas que pudesse dar lugar a um novo regime de união nacional. Este teria imensos desafios pela frente, a começar pela luta contra o ISIS em ambas as frentes: militar e ideológica, exaurindo as bases materiais e extraindo o fermento ideológico que hoje nutre grupos radicais como o ISIS. Mas o mundo parece ter desistido disso e em vários aspectos a luta contra o ISIS repete os erros da velha guerra contra o terror da era Bush. Parecem enterradas as esperanças. É uma situação calamitosa. Um crime contra a humanidade o que está acontecendo.
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