No embalo do jingle da campanha que celebra o “Brasil novo, o Brasil do povo, que Lula começou”, uma expectativa elétrica contagia o amontoado de jornalistas e de seres humanos que se acotovelam – e bota cotovelo nisso – no subsolo do Hotel Naoum, em Brasília.

É pouco mais de oito da noite de domingo, 31 de outubro, e até a Rede Globo e seus profetas de gravata e de tailleur tiveram, minutos atrás, de engolir a indigesta constatação: não haveria nenhuma matemática capaz de tirar de Dilma Rousseff (os mais antigos diriam: nem mesmo aquele cálculo maroto da Globo-Proconsult, que tentou surrupiar, em 1982, a eleição de Leonel Brizola para o governo do Rio) o direito de se dizer presidente do Brasil.
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Dilma Rousseff iria, em algum momento, aparecer por lá e fazer o indispensável pronunciamento à nação. Um pequeno púlpito esperava por ela, umas poucas cadeiras – e tantas câmeras fotográficas, alinhadas com suas teles vorazes, quanto se vê, por exemplo, em um desfile de haute couture em Paris.

A circunstância de que um momento como esse aconteça em um hotel – por mais que esse específico hotel guarde a tradição política de reduto de congressistas e de conchavos sussurrados ao pé do ouvido – parece reiterar aquela rabugenta ideia de que para Brasília, cidade artificial, falta o convívio público de uma ágora – o espaço simbólico onde a democracia desce ao povo e chega ao rés do chão das discussões cotidianas.

Nada disso: haveria festa sim, festança popular, com direito a palanque, bandeiras, forró e umbigada, a uns poucos quilômetros do Naoum, na Esplanada dos Ministérios – porque naquela noite o Distrito Federal haveria de festejar duplamente, tendo votado majoritariamente em Dilma (56 a 44) e também elegido, em segundo turno, com dois votos para um, o seu governador, o também petista Agnelo Queiroz.

A festa ficou para mais tarde, mesmo porque Agnelo, mulher, filho e filha acabavam de chegar ao Naoum, engolfando o governador eleito em uma confraternização tentacular de abraços e de vivas – tentáculos que, tendo sido Agnelo líder de reivindicações trabalhistas na área médica, talvez pudessem remeter metaforicamente aquelas repetidas capas da chorosa revista Veja a respeito da sinistra hidra sindical-bolchevista do Partido dos Trabalhadores.

No salão, subitamente acanhado, os jingles continuam, mas não agridem os tímpanos. Não há indícios daquela corriqueira histeria de multidões extasiadas. No máximo, um borburinho muito civilizado. Deve ser sinal de que, mesmo entre os vencedores, prevalece o senso comum de uma normalidade longamente adquirida eleição presidencial após eleição presidencial – mesmo em um pleito como este, em que adversários transtornados comportaram-se com a delicadeza da zaga do Vasco da Gama (há situações da História em que se tenta equivocadamente generalizar o ônus da violência e da baixaria; no caso do Brasil 2010, avaliando campanha por campanha e deixando de lado os surtos das torcidas organizadas na internet, quem partiu para a ignorância foi única e exclusivamente quem percebeu que iria perder).

A plateia ali, jornalistas à parte, reunia o creme do creme do que a oposição chama, com sarcasmo pejorativo – ou chamava, até então -, de “o lulismo”. Governadores, senadores, deputados e ministros de Estado, estes distribuídos pelas fileiras de cadeiras sem o rigor hierárquico das primazias protocolares. O do Turismo vinha antes do da Educação, o Planejamento estava atrás da Cultura. O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, sentou-se na quinta fila, enquanto o Ministro da Fazenda, Guido Mantega, contentava-se à discrição da nona fila, ao lado do vice-governador eleito do Distrito Federal.

Em um ambiente onde o entusiasmo pessoal pode facilmente ser confundido com a ansiedade dos cargos futuros, a elegância sossegada do ministro Mantega contrasta com as façanhas que ele poderia legitimamente alardear. Naquele momento na TV, os analistas sabichões e as analistas de longo bico capitulavam à constrangida constatação – que muitos deles teimavam até então em negar – de que a economia ia bem, apesar da recessão mundial, e de que o povo brasileiro poderia, na urna, retribuir a isso. Não deu outra.

No entanto, aqui no Naoum, trajando calça de sarja azul marinho, mocassim e jaqueta, é como se Guido Mantega quisesse se esquivar de seus próprios méritos. Tarefa que parece, porém, bastante difícil, de tanto que seu celular tocava, em mensagens de felicitações. “Obrigado, Abilio”, atende Mantega. “Olha, a vitória é de todos nós, inclusive sua, que teve a coragem cívica de declarar seu voto. Seu apoio foi fundamental”. Pelo teor da conversa, esse Abilio deve ser o Diniz, comandante do Grupo Pão de Açúcar, o qual, ante a perplexidade de seus pares atucanados, tinha anunciado seu reconhecimento ao Lula e sua esperança em Dilma.

(Abilio Diniz frequenta, há três décadas, as sucessivas listas de ministeriáveis dos governos dos mais diversos matizes ideológicos. Entra novamente nas especulações dos jornalistas chutadores, à espera, quem sabe, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Será um divertido paradoxo ver Abilio Diniz integrando um governo daquele partido que ele, involuntariamente, ajudou a derrotar em 1989, ao fim do episódio dramático de seu cativeiro, no qual a polícia, para simular motivação política, vestiu com camisetas do PT os sequestradores presos).

Celulares tocam, jingles atacam e a plateia do Naoum resigna-se àquela espera fatal das altas celebrações republicanas. Nesse aspecto, e só nesse, consola saber que Lula, eterno candidato a recordista de atrasos cerimoniais, não virá à festa. O Presidente está no Palácio da Alvorada, com um pequeno grupo de familiares e amigos, e elegantemente mandou dizer que “a festa hoje é da Dilma” – e que ele não pretende fazer sombra a ninguém.

Não por acaso, é esse o tema que agora contagia os comentaristas da TV. Lula fazendo sombra a Dilma, literal e simbolicamente. Ou – como virou moda agora entre os que são do contra – a dialética maldita do criador e da criatura e a fatalidade grega, ou bíblica, do rompimento abrupto e violento entre discípulo e mestre.

É, mais uma vez, a alma do torcedor se manifestando. O que se chama, no jargão das caneladas futebolísticas, secar o adversário. De repente, Lula, que até a véspera não deixava de ser o operário tosco, ignorante, incapaz, humanamente desprezível por fazer parte dessa sub-raça nordestina (alô, Paulo Francis; alô, Arnaldo Jabor), o aventureiro, o irresponsável, o falastrão, o amigo do Chaves e do Ahmadinejad, ganha os louros de “mito” e de “gênio” nas bancadas do telejornalismo da Globo.

É bom desconfiar: os elogios não vêm de graça. Adular hoje o execrado Lula é o jeitinho aparentemente malandro, mas miseravelmente rombudo, de começar, desde já, a menosprezar Dilma, estabelecendo-se, antes mesmo de ela tomar posse, um campeonatinho de competências com aquele a quem eles sempre negaram… competência.

Notáveis da República continuam chegando ao salão do Naoum e o júbilo dos abraços vitoriosos disfarça a impaciência já compreensível. Na escada que dá acesso, mal dá para notar a presença do ex-ministro José Dirceu, em pé, desacompanhado. Aquele que foi o número 2 do governo Lula, atrás apenas do próprio Lula, não se senta mais na ala VIP e deve estar se perguntando, sem esconder uma emoção marejada, por que diabos é que o destino recusa-lhe hoje a condição de protagonista. De todo modo, quando descoberto por algum repórter farejador, Dirceu diz quer não quer nada do governo Dilma: “Nem posso, nem devo”.

Protagonista, a gente diria – se houvesse um instrumento capaz de medir o afeto dos circunstantes – é hoje, sim, indiscutivelmente, o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, que nem do PT é, e sim do PSB (partido surpreendente que elegeu seis governadores, um a mais que o próprio PT). Vendo por ali figuras como Eduardo Campos, ou Marcelo Déda, reeleito governador em Sergipe, ou o Ministro Orlando Silva, que areja o ambiente do Naoum, de lá para cá, em confabulações incansáveis, com seu astral boa-praça, dá para entender por que é que, aqui, nesta celebração de vitoriosos, ninguém dispare esgares revanchistas, muito embora as pessoas se perguntem, com alguma insistência, ali pelas nove e pouco da noite, se “o Serra já admitiu a derrota”.

Não, o Serra ainda não admitiu a derrota e a Dilma reluta em aparecer para os abraços. Muita gente ali já conviveu de perto com a alma empedrada do candidato do PSDB e adivinha como ele deve estar regurgitando seus rancores. Em lugar discreto, o deputado federal Gabriel Chalita, eleito estrepitosamente pelo PSB, poderia dar neste momento um belo depoimento a respeito, ele que era um fiel quadro do PSDB de São Paulo, mas que cometeu o pecado horrível, aos olhos de Serra, de se aliar a Geraldo Alckmin.

Mas o clima definitivamente parece ser de anistia. A campanha ficou para trás e ninguém quer relembrar sequer os episódios mais sórdidos ou mais caricatos, como o do atentado da bolinha de papel na Baixada Fluminense, armação na qual nem a imponente Globo, nem um doutor reputado zelaram por sua própria credibilidade – e que caiu no folclore popular com direito a partido alto temperado de humor e ironia, da autoria de Tantinho da Mangueira e de Sergio Procópio (“Chega de ser enganador/Pois bolinha de papel/Não fere e nem causa dor”). Quem não viu ainda pode, no YouTube. Por essas e por outras é que, após votar, em São Bernardo, Lula disse que “Serra saiu menor” da campanha. Mas não foi só o Serra.

O empurra-empurra prenuncia que, enfim, Dilma chegou. Dá para sentir o frenesi que vem do lado de fora do Naoum. A irrupção da candidata eleita faz brotar no palco algumas flores exóticas: o ator José de Abreu vai ficar por lá, em deambulação nervosa, e o senador capixaba Magno Malta, com uma camisa preta bordada com seu atual tema fixo (“Diga não à pedofilia”), logo irá se posicionar de forma a que as câmeras não o esqueçam jamais.

O tailleur bege, pálido, de Dilma Rousseff sugere, de cara, intenções pacificadoras que ela, a gente logo verá, irá reafirmar no discurso cautelosamente escrito e minuciosamente amplo. Aí, sim, o salão explode e até o ministro Celso Amorim descumpre as encouraçadas praxes do Itamaraty e demonstra, por um nítido ainda que curto momento, que diplomata também sabe exprimir alegria.

O ministro Mantega desliga o celular insistente no mesmo momento em que Dilma chama ao palco a senadora eleita Marta Suplicy. Governadores eleitos e o think tank da campanha do PT (o ex-ministro Palocci, o ex-prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel, o deputado José Eduardo Cardoso) também se posicionam. Aparece, em comitiva, o PMDB, o vice Michel Temer, trazendo o ex-presidente José Sarney a tiracolo.

Enquanto se arranja a coreografia, um cacho de senhoras e senhoritas embandeiradas mergulha a nova presidente em um amplexo coletivo. Não há como não notar a beleza serena da deputada Manuela d’Ávila, do PC do B. Ela foi a mais votada no Rio Grande do Sul e é conhecida por sua aguerrida militância, mas, desculpem, o sorriso dela merecia estar em anúncio de “Listerine”. Marta Suplicy fica próxima a Dilma, em um modelito apropriadamente vermelho e definitivamente elegante, como que a dar a senha para as primeiras palavras de Dilma, a do orgulho de ser mulher e de, agora, ser presidente. “Sim, a mulher pode”, diz ela, parodiando Barack Obama.

Dilma nem precisava ter consultado Marta – que exerceu a prefeitura de São Paulo sob um indecoroso bombardeio machista – para saber que o preconceito já está à espreita, ali na esquina. De certo modo, ela terá pela frente o mesmo ambiente hostil que esperava por Lula em 2003: desconfiança, desconfiança, desconfiança. Lula gosta de lembrar: “Eu tinha de matar um leão por dia”. Mas, por sua condição de mulher, dá para prever que Dilma terá de enfrentar diariamente não um leão, mas uma manada de brutas feras. No Ministério, pelo menos, ela já passou por um estágio educativo.

Dilma, no discurso, estende um tapete de concórdia e entendimento, compromete-se com a democracia e com a liberdade e até diz que, embora tenha ficado triste durante a campanha com as grosserias da imprensa, o jornalismo crítico é inatacável. Defende a irrestrita escolha de crenças e de cultos. Os ateus e agnósticos talvez possam se ressentir da ausência de uma menção: já que o Estado é supostamente laico, liberdade também para os descrentes, por que não? Mas, enfim, como a campanha de Serra, na aliança com o que há de mais trevoso da ultradireita religiosa, botou Dilma sob suspeita nesse quesito, deixa para lá.

(Ao entrar em campo, aos 44 minutos do segundo tempo, para, recrutado pelo bispado conservador, vir atemorizar os eleitores brasileiros com as chamas do inferno, Bento XVI expôs sua intocável infalibilidade de Papa aos arranhões da derrota terrena. Já o abençoado candidato José Serra, que as pessoas supunham não ser exatamente um carola de carteirinha até se imporem as contingências do segundo turno, deve ter sido brindado pela súbita visita do Espírito Santo e, acometido da ânsia recordista de beijar santinhos, imagens e medalhas, pelo menos pode agora se consolar com a certeza de que, sejam quais forem seus pecados e pecadilhos, será abrigado no Reino do Céu.)

Dilma fala por 15 minutos, não mais. Emociona-se ao agradecer a Lula. Tem de disfarçar as lágrimas, na estratégica pausa para o copo d’água. A plateia que gritava “Dilma, Dilma” vai à loucura com “Lula, Lula”. Dilma retoma o fio da meada. Diz que não vai se acanhar de bater à porta do seu mentor atrás de sábios conselhos. Reitera: “A sabedoria de Lula”. Fora o Ferreira Gullar e o João Ubaldo Ribeiro, por sinal nordestinos, até os mais ferozes desafetos de Lula talvez assinassem embaixo.

Uma coisa a futura presidente (ela insiste perigosamente com a versão: presidenta) parece já ter aprendido: a arte de se safar das aglomerações sufocantes, mesmo as amigas. Terminado o discurso, recebe rapidamente cumprimentos pelo que passou e sai correndo para cuidar do que ainda virá. A festa continua no Naoum. José de Abreu dança com as companheiras embandeiradas. Citando seu personagem no Caminho das Índias, elas gritam “Pandhit, Pandhit“. Ele baila. Mais um sinal da normalidade (quase escrevi: banalidade) da vida republicana: até a militância do PT assiste às novelas da Globo.

Brasil elege Dilma Rousseff


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