Nem só de política vive a mulher (e o homem), mas de cultura também. Aliás, o lado político do homem (e da mulher) anda adormecido, apesar das pólis não pararem de crescer. O homem dorme e deixa em mãos alheias o seu destino de cidadão. E quando acorda, muitas vezes já é tarde. Talvez estejamos bocejando, nos espreguiçando após um longo sono. Saindo às ruas, reclamando da falta de vergonha daqueles que nos dirigem. Talvez…
Mas como ia dizendo antes que a política me fisgasse, nem só dela me alimento mas de cultura também, e todos sabem que Paris continua sendo um grande palco onde se cruzam criações do mundo inteiro. Estava com sede de música clássica, e abri as páginas do catálogo da sala Philarmonie que fica em La Vilette, parque moderno em que vários espaços culturais coabitam sobre um gramado gigante, cortado pelo Canal de l’Ourq. Lugar imperdível.
Descubro uma bienal de Quartetos de Corda com uma programação incrível e preços acessíveis. Pela internet é fácil comprar. Numa segunda-feira à noite me dirijo à sala de concertos sem bem saber o que lá vou escutar. Cruzo com amigos brasileiros no bar e entro como num templo naquele grande e confortável espaço de comunhão musical. Estou bem perto do palco, meio de viés, tenho a sorte de poder mudar para a cadeira do lado, vazia, e agora ninguém me impede a visão completa dos músicos.
Chega o Quarteto Arditi, que vai tocar uma obra contemporânea, encomenda da Philarmonie para o compositor Philippe Manoury. Fragmenti é o seu nome. Onze movimentos com nomes de Fúria, Passaggio, Accelerando Infinito… É um pouco como estar no meio do trânsito, vivendo estilhaços de vida, acelerações e freadas, bruscas aparições e invasões do campo auditivo. Tudo muito matematicamente construído, e portanto prazeroso, um prazer da forma, da abstração. O Quarteto Arditi dedica-se à música contemporânea, ele a promove, trabalha com o compositor. Ao final da interpretação, Manoury sobe no palco, com seus longos cabelos brancos esvoaçados e jeito de cientista maluco, habitado por notas, partituras, sons.
Depois é a vez do Quarteto Jerusalém: um primeiro violino de aparência comportada, um segundo violino bem baixote, um violoncelo elegante e alto, um altista sorridente e afável. Eles empunham seus instrumentos como se fossem suas esposas (ou esposos) e começam o Quarteto n*12 de Chostakovitch, composto em 1968, quase 50 anos atrás. Naquela época, a música já era moderna, o duodecafonismo (a gama de 12 notas e não de 7) estava instaurado e Chostakovitch brinca com ele, sem abandonar totalmente a veia melodiosa de seus mestres Mahler e Stravinsky. A obra nos carrega para um mundo em plena descoberta da distorção, um mundo que sobreviveu à guerra mas ainda está muito marcado pelo absurdo de sua sofisticação, nostálgico de certa forma daquela inocência perdida em que o do ré mi fá compunha uma harmonia perfeita, que já não pode voltar mais.
Voltando ainda no tempo, a mesma formação de músicos prepara-se para nos oferecer o Quarteto numero 1 de Beethoven, composto em 1799, logo apos a Revolução Francesa, em prenúncio à época romântica, onde a subjetividade do indivíduo passaria a ser exaltada. Logo de cara, os músicos do quarteto israelense entram em estado de graça, impecavelmente ajustados uns aos outros, numa espécie de perfeita comunhão, como membros de um só corpo, vozes que se respondem em eco, produzindo cascatas de notas que se jogam sucessivamente no mesmo rio. Não há lugar para a solidão em meio a tanta harmonia, e os músicos habitados por ela nos transmitem a perfeição da obra que toca a alma como luz batendo num ponto da paisagem.
A música começa onde acabam as palavras, disse o escritor romântico Hoffmann. Calo-me e deixo vocês escutarem aqui…
e aqui
e também: Philharmonie de Paris
*Adriana Komives, brasileira de origem húngara, 51 anos, 31 em Paris onde estudou cinema e exerce desde então as profissões de montadora e roteirista. Consultora em montagem de documentários nos Ateliers Varan, la Femis, DocNomads, ensina o ofício de montagem no Institut National de l’Audiovisuel e roda o mundo trabalhando em oficinas de realização documentária.
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