Duas décadas de transgressões

Brasileiros – Quando nos conhecemos, eu era parte da equipe da extinta revista Cenário. Vocês estavam com a montagem de Os cantos de Maldoror e comemoravam dez anos. Desde a fundação dos Satyros, muita coisa aconteceu. Agora que a companhia completa duas décadas de atividades, quais foram as principais conquistas?
Rodolfo Garcia Vázquez –
Quando apresentamos Os Cantos de Maldoror, em São Paulo, em 1999, estávamos começando a pensar em voltar à cidade. Durante dois anos (1992-1993), vivemos com ciganos, produzindo e apresentando trabalhos em muitos países, com sede em Portugal e em Curitiba. A partir de dezembro de 2000, com a nossa instalação na Praça Roosevelt, iniciou-se uma nova fase na nossa vida. A Roosevelt acabou tendo uma participação ativa no nosso projeto estético, na forma de entender o teatro e a relação deste com a cidade.

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Brasileiros – Desde essa época, sempre achei os Satyros, em postura e atitude, um capítulo à parte do teatro paulistano. Lembro-me de você dizer que na época da montagem de Noite com os Professores Imorais, vocês procuraram os teatros convencionais e deixaram as pessoas horrorizadas. Já desesperados, tentaram os teatros pornô e foram considerados elitistas. Logo, não eram aceitos nem de um lado nem do outro. Melhorou a aceitação do trabalho de vocês ou ainda há quem fique “horrorizado”?
R.G.V. –
Não sei se “horrorizado” seria a palavra certa hoje em dia, mas ainda há muita incompreensão com relação ao nosso trabalho. No meio teatral, não somos de forma alguma uma unanimidade. Na imprensa, sofremos ataques frequentes, apesar de parte dela nos apoiar muito. Nas comissões que se dedicam a distribuir verbas públicas para a cultura, estamos sendo solenemente ignorados há mais de três anos, sem uma razão clara. O público fiel que temos nos acompanha com interesse e dedicação. Tudo é muito controverso. Tanto hoje, quanto no nosso início.

Brasileiros – Certa vez, você disse que tinha o objetivo de fazer com que Os Satyros se tornassem parte da história do teatro brasileiro. Apesar de a companhia ainda ter muito a mostrar, podemos dizer que Os Satyros já atingiram essa meta?
R.G.V. –
Ainda temos muito a fazer, mas não posso negar que também temos orgulho do que já construímos. Essa ideia de fazer parte da história do teatro era um sonho que tínhamos, sonho de moleque iniciando a carreira. Durante os anos de exílio, esse sonho estava presente, mas parecia sempre distante. Hoje, temos um trabalho consistente, contínuo, sabemos que já fizemos algumas coisas, mas que ainda temos muitos desafios à frente.

Brasileiros – Confesso que nunca vi um livro tão bonito e completo sobre uma companhia teatral como essa fotobiografia da Imprensa Oficial. Como surgiu a ideia?
R.G.V. –
Estamos muito felizes com o resultado também. Na verdade, todo o detalhamento (equipes técnicas de 20 anos, elencos iniciais de mais de 50 espetáculos em várias cidades e países, etc.) foi um trabalho árduo do Ivam, de organização desse material durante todos esses anos. O Germano soube muito bem organizar todas essas informações e trazer um olhar até sentimental sobre tudo isso. A ideia foi resgatar nossa história desses primeiros 20 anos tão prolíficos, para que ficasse um registro que não se perdesse na memória. Os textos do meu blog foram escolhidos pelo Germano, para dar também algumas informações sobre nossa estética e pensamento, que continuam evoluindo e modificando.

Brasileiros – Fale um pouco sobre a importância do Alberto Guzik para a história dos Satyros.
R.G.V. –
Alberto Guzik assistiu ao nosso primeiro trabalho, antes mesmo de sermos Satyros, onde eu e Ivam trabalhamos juntos, chamado Um Qorpo Santo. Desde então, ele havia acompanhado toda a nossa trajetória, até que em 2004 o convidamos para entrar em um projeto como ator. Desde 2004, ele foi a nossa consciência, nosso parceiro, nosso amigo, nosso cúmplice, nosso pensador e pedagogo. Sua influência sobre o Satyros é visível. Foi uma grande perda para o grupo a sua morte.

Brasileiros – Desde sua primeira edição, há mais de uma década, a Satyrianas só cresceu. Atualmente, dá para se fazer um balanço dessa história e avaliar sua importância no cenário cultural de São Paulo?
R.G.V. –
Difícil dizer o que significa a Satyrianas. Nos últimos anos, muitos textos e trabalhos surgidos na Satyrianas acabaram indo para os palcos, o que significa que antecipamos e provocamos produção teatral através das Satyrianas. É quase inacreditável pensar que um evento que havia surgido como uma celebração da resistência do teatro perante o panorama cultural, tenha se firmado como uma festa de proporções carnavalescas, tendo no ano passado contado com mais de 50 mil espectadores. A cidade precisa de festa, de arte, e a Satyrianas é o momento em que tudo isso se encontra.

Brasileiros – Qual a importância de o evento ser finalmente incluído como parte do calendário oficial do Estado de São Paulo?
R.G.V. –
Isso nos dá força e responsabilidade. A força de poder negociar com órgãos públicos, moradores da região e órgãos da imprensa. Não somos (mais) um bando de artistas loucos que quer fazer uma festinha, mas artistas que celebram o teatro com apoio oficial do Estado. Também aumenta nossa responsabilidade. Hoje, a Satyrianas também é uma responsabilidade nossa com relação à cultura paulista. A sociedade espera a Satyrianas acontecer, ano após ano, com o mesmo espírito de inovação, alegria e liberdade.

Brasileiros – Quais as novidades que o evento apresentou neste ano?
R.G.V. –
Tivemos a tenda Cenamix, com espaço para produções teatrais que gostariam de se apresentar nos palcos da Satyrianas e não encontram espaço. Tivemos também o Ouvi Contar com teatro em domicílio, nos apartamentos da Praça. Outra novidade foi tenda Feminix, abordando questões femininas.

Brasileiros – Fale um pouco sobre o Ouvi Contar e a parceria entre a Cia. Os Satyros e a SP Escola de Teatro.
R.G.V. –
É uma parceria orgânica, pois Os Satyros estão diretamente ligados ao projeto da SP desde o início. O curso de dramaturgia da SP, coordenado por Marici Salomão, é um dos mais inovadores na cena teatral e terá impacto sobre a cena dramatúrgica nos próximos anos. Dar a possibilidade aos dramaturgos de experimentarem seus textos na Satyrianas, através do Ouvi Contar, foi uma das iniciativas mais bonitas da Satyrianas deste ano.

Brasileiros – Manter a frequência de um evento como o Satyrianas não é fácil. Como funciona o processo de organização e busca por novos parceiros e colaboradores?
R.G.V. –
Sempre tentamos não engessar o processo. O projeto começa a ser pensado com seis meses de antecedência, mas é produzido com força total nos últimos dois meses. A maioria dos artistas que participam, pensam na festa, na celebração, e oferecem seus talentos para participar de forma parceira. Isso dá sempre muita vida a todo o evento.

Brasileiros – Desde que a Cia. Os Satyros instalou-se na Praça Roosevelt, é notória a importância do grupo para a revitalização daquela região. Qual o papel de eventos como Satyrianas para os debates sobre a reurbanização e a revitalização do Centro?
R.G.V. –
A revitalização do Centro é algo fundamental se a cidade pretende manter-se saudável. Como ter uma megalópole tão gigantesca de forma articulada e viável sem um centro poderoso e provocador de novas formas de envolvimento urbano e social.

Brasileiros – Dado o sucesso obtido pelo evento, você acha que um dia o Satyrianas pode crescer a ponto de romper os limites da região central e passar a acontecer em diversos outros pontos da cidade como acontece com a Virada Cultural?
R.G.V. –
O evento já acontece fora da área central. Nos últimos três anos, vários parceiros estão entrando na Satyrianas com suas programações. Este ano, tivemos o Espaço Periferia Invisível (Vila Císper) e o Espaço Pombas Urbanas (Cidade Tiradentes), ambos na Zona Leste.


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