Epitáfio: aqui jaz a língua portuguesa
Tem gente que não gosta de museu. Eu gosto. Os museus em geral são solenes, generosos. Guardam, cuidam e compartilham coisas, assuntos e pessoas que merecem esse investimento pela relevância que têm para a humanidade, local ou planetária. Por isso também tendem a ser longevos.
Além dos clássicos (Louvre, Metropolitan, Masp) há aqueles que dizem respeito aos humanos que vivem num determinado bairro, que pertencem a uma etnia específica, ou de sua relação com os confins do universo.
Há outros, surpreendentes e inusitados, como o Museu da Inocência, em Istambul, idealizado pelo escritor turco Orhan Pamuk, que aplicou o dinheiro que recebera com o prêmio Nobel, em 2006, na construção de um local para guardar, na vida real, todas as referências de uma história de amor obsessivo relatada na sua ficção de mesmo nome. Karen Worcman fundou e coordena, há mais de 20 anos, o Museu da Pessoa em São Paulo, coletando, através de sons e imagens, depoimentos de pessoas comuns que celebram com suas histórias a dignidade humana. Um sentido mais nobre para a palavra celebridade.
O escritor Roman Krznaric inaugurou em Londres no ano passado o Museu da Empatia, que nos estimula a exercitar aquilo que, apesar de inerente ao pacote ser humano, vem sendo negligenciado pela voracidade da cultura (tão apressada quanto narcísica) da sociedade tecnológica de consumo: trata-se da capacidade de um sujeito colocar-se na pele do outro. Costumo pensar que quanto mais empáticos, melhor afirmamos nossa humanidade. É o que temos de melhor a oferecer. A empatia é o nosso sexto sentido e uma aliada fundamental para sonhadores da paz (“guerreiros da paz” não dá! Black Blocs?!).
Há um museu recém-nascido no Rio de Janeiro. O Museu do Amanhã. Inaugurado com pompas e circunstâncias em dezembro de 2015. Acho que podemos chamá-lo também de Museu da Soberba. Pretender capturar o futuro parece-me obra do passado. Presunçoso e patético.
Apesar da tendência à longevidade, alguns museus morrem cedo, às vezes, de forma trágica. Dois dias depois da inauguração do Museu da Soberba, morria num incêndio devastador o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, que desde 2006 oferecia a cada visitante uma intensa experiência empática com a nossa língua. A arquitetura magnífica da Estação Ferroviária da Luz, atualizada por Paulo Mendes da Rocha & Sons, e a curadoria de suas exposições sempre muito caprichadas, despertavam o sentimento de honra por pertencermos a uma comunidade de 270 milhões de falantes, em dez diferentes países. Passeando pelos 4.300 metros quadrados dedicados a ela, ficava irresistível declararmos, ao fim, amor eterno à nossa língua mátria.
Mas o Museu acabou. Oxalá ele renasça das cinzas.
O calor do incêndio aquecia meus pensamentos. Fiquei entorpecido pelo baile das labaredas e coloquei-me dentro da cena. Chegava a sentir o cheiro da fumaça e meus olhos lacrimejavam misturando irritação ocular com tristeza. As chamas se alastravam e como num filme sem som, com fortes imagens em câmera lenta, via a parede do Museu desabar e junto, um temor com potencial de paranóia: a língua também morreria.
Como costuma acontecer quando sustentamos o olhar em direção ao fogo (ou às nuvens), subitamente as chamas começaram a ganhar volume e passou a ser possível distinguir diferentes figuras: dois trovadores do século XII montados em seus cavalos chamuscados, um branco outro negro. Foram os primeiros a fugir assim que começou o incêndio. Declamavam em galego-português uma poesia provençal incompreensível. Logo em seguida foi a vez de Saci, Narizinho e a seca cadelinha Baleia, que brincavam na área externa do Museu e por isso conseguiram escapar. O nariz arrebitado, a falta de uma perna ou a magreza, respectivamente, não pareciam comprometer a fuga. Via o Desencanto inteiro de Manuel Bandeira se contorcendo enquanto virava brasa (E nestes versos de angústia rouca/Assim dos lábios a vida corre/Deixando um acre sabor na boca/Eu faço versos como quem morre). Vi também o esforço emocionante de Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares, juntos, como um batalhão bem treinado, tentando salvar o Bombeiro Civil Ronaldo Pereira da Cruz, que acabou morrendo enquanto apagava as chamas.
Foi comovente presenciar o movimento de todos eles. Como se, salvando suas próprias peles, salvassem também a nossa língua.
Apressei-me e consegui juntar-me a eles. Muitos outros fizeram o mesmo. E quando me dei conta, ombro a ombro com Dom Casmurro, formávamos uma imensa passeata de indignados gritando em uníssono: “VIVA A LÍNGUA PORTUGUESA! VIVA A LÍNGUA PORTUGUESA!”.
A manifestação bloqueou o resto do dia o cruzamento das Avenidas Paulista e Consolação.
*Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo, psicoterapeuta e coordenador do Projeto Quixote aurolescher@gmail.com
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