Cientista político e professor da Universidade de São Paulo, André Singer está convencido de que falta consistência ao pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. “Não existe nenhuma evidência de que ela tenha cometido qualquer crime, seja comum, seja de responsabilidade”, afirma Singer. Conhecido pelas análises consistentes que faz da política brasileira contemporânea e, em particular, do lulismo, o cientista político acredita que, se o impeachment se concretizar, o País corre o risco de entrar em um prolongado período de instabilidade social. “Não estou dizendo que, se o impeachment for bem-sucedido, a democracia vai acabar. Não vai. Nossa democracia está suficientemente consolidada para resistir a isso, mas vai ser arranhada.”
Para Singer, é absolutamente legítimo o desejo de uma parte da sociedade de colocar um ponto final no governo Dilma Rousseff. O que ele contesta é o uso de recursos ilegítimos para alcançar esse objetivo. Assim, o cientista político defende a mobilização dos que são contra o impeachment, independentemente da posição de cada um no espectro ideológico. Uma de suas preocupações com o futuro imediato do País diz respeito à gravidade da situação econômica, que continuaria a mesma, caso ocorresse mudança no comando do Planalto pela via do impedimento: “Espero que as piores previsões não se confirmem, mas, em um País que ainda tem desigualdades enormes, isso produz uma ameaça de caos social que não deveríamos correr”, diz. “O Brasil não deveria correr esse risco.”
Porta-voz do governo Luiz Inácio Lula da Silva entre 2003 e 2007, Singer é filiado ao PT, embora tenha participação bissexta nas atividades partidárias. Convidado a integrar o conselho de notáveis que o PT montava para ajudá-lo a enfrentar a crise, Singer preferiu atuar de forma alternativa, por achar que tem “mais contribuição a dar fora do que dentro” do partido. “No meu trabalho como intelectual, preservo a mais completa independência.” Diante do cenário turbulento e da dificuldade do partido em responder à sociedade, o cientista político acredita que até o ex-presidente Lula corre o risco de perder sua base social: “O lulismo foi tão machucado pelo que aconteceu em 2015 que pode morrer. Mas ele não morreu. O jogo ainda não acabou.”
Brasileiros – Qual a gravidade da crise?
André Singer – Tem dois pontos agudos. De um lado, a questão democrática. Do outro, a econômica. A questão democrática é que, se chegar a ter sucesso, essa tentativa de propor o impedimento da presidente da República sem uma base consistente vai criar uma instabilidade institucional no Brasil. Vai arranhar a democracia brasileira. Não equivale a 1964, porque foi um golpe militar, que instalou uma ditadura. Não vejo esse tipo de perspectiva no horizonte. Mas o que está se tentando fazer é um golpe branco, que usa uma figura constitucional existente, o impeachment, para finalidades que não são próprias.
Por que o pedido de impeachment não é consistente?
Porque não existe nenhuma evidência de que ela tenha cometido qualquer crime, seja comum, seja de responsabilidade. O que existe é a vontade de uma parte da sociedade de interromper o governo. Essa vontade é legítima. Em uma democracia, não se pode condenar que uma parte queira isso, mas usar meios ilegítimos para conseguir é algo que atenta contra a democracia. O que está se tentando fazer é uma espécie de parlamentarismo remediado. Ou seja, não gosta do governo, interrompe o governo.
Em vez de esperar a eleição seguinte?
Em vez de esperar a eleição, na qual a vontade popular pode se expressar novamente. Toda democracia tem que ter mais de uma corrente política que possa ganhar a eleição e governar o país. É normal, necessário, que em algum momento ocorra alternância no poder, mas não por um meio de natureza ilegítima. Do ponto de vista de quem está contra o
impeachment, pelas razões que mencionei, é importante que nos mobilizemos. Nossa mobilização pode preservar a democracia brasileira. Não estou dizendo que, se o impeachment for bem-sucedido, a democracia vai acabar. Não vai. Nossa democracia está suficientemente consolidada para resistir a isso, mas ela vai ser arranhada. E pior, isso pode abrir um período de instabilidade muito grave. Qualquer que seja o governo que suceda ao da presidente Dilma, caso ela venha a ser impedida, vai sofrer os mesmos problemas.
Por quê?
Porque a situação econômica é muito grave. Estamos passando por um ciclo recessivo poucas vezes visto nos últimos cem anos no Brasil. Espero que as piores previsões não se confirmem, mas, em um País que ainda tem desigualdades enormes, isso produz uma ameaça de caos social que não deveríamos correr. O Brasil não deveria correr esse risco. A mobilização em torno de uma saída democrática é bem importante. Um largo espectro de pessoas, que não têm nada a ver com determinadas opções ideológicas, está de acordo com isso.
Tempos atrás, quando o horizonte começou a ficar um pouco turvo, falou-se em concertação (acordo entre governo e atores sociais). Foi descartado por ambos os lados. Você já pensou nisso?
Bastante. Ao longo de 2015, sugeri muitas vezes que houvesse uma conversa, sob iniciativa da presidente da República, entre os principais líderes dos três principais partidos, ou seja, o vice-presidente Michel Temer, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Não aconteceu por vários fatores. Primeiro, a presidente está muito fraca, praticamente paralisada.
E a oposição?
Como qualquer oposição, quer aproveitar a situação para enfraquecer ao máximo o governo e as forças que o apoiam, nesse caso especificamente o PT. Da parte do PSDB, a opção por enfraquecer ao máximo o adversário se sobrepôs à possibilidade de uma conversa. Em terceiro lugar, tem a Operação Lava Jato, que cria uma espécie de indeterminação generalizada. Ninguém sabe o que vai acontecer no dia seguinte, na semana seguinte, no mês seguinte. Nos momentos mais graves é que se percebe que a política é essencial.
Mais essencial do que a economia?
Em um certo sentido, mais do que a economia. Um exemplo: algumas semanas atrás, as centrais sindicais chamaram os empresários e conseguiram produzir um documento conjunto em favor da retomada do crescimento. Esse é um passo que a política não está conseguindo dar. É evidente que as centrais e os empresários estão em campos opostos. Não obstante essa divisão, eles conseguiram se reunir e fazer uma proposta. O problema é que a política está paralisada, mais do que a economia e a sociedade.
Quem ganha com isso?
Na verdade, ninguém ganha. Tento não ser pessimista. Meu papel é ser realista, mas podemos caminhar para uma situação de instabilidade prolongada no Brasil. Isso é muito preocupante. O que está desenhado hoje, segunda-feira, dia 14 de dezembro, é a formação de um governo Temer. Ressalto a data porque a situação está mudando tão rápido que, quando a entrevista for publicada, já pode ter outra configuração. Hoje alguém poderia dizer que o PMDB está ganhando, porque está apontado como alternativa ao governo atual. Se isso acontecer, vai ser uma vitória de Pirro. As condições econômicas continuam muito difíceis. Se tentarem adotar a via ultraliberal, como estão propondo, vão dar com os burros n’água, porque a resistência social vai ser enorme.
E a ponte proposta por eles?
É uma ponte para o passado. Não é uma ponte para o futuro. Concordo que houve uma inflexão liberal do atual governo, equivocada, mas o que está se apresentando é um caminho mais radical. Eu previa que o PMDB fosse exercer o papel moderador em uma situação de crise no Brasil. O PMDB saiu com uma proposta radical e isso me surpreendeu muito.
A postura do vice, Michel Temer, também foi uma surpresa?
Completa e total. O perfil público do vice-presidente da República parecia condizente com uma força moderadora. Uma pessoa que, ao longo de sua vida pública, se pautou por posturas discretas, pela tentativa de transmitir equilíbrio, ponderação, reflexão. De repente, na hora H, em que a presidente se vê confrontada com o início de um processo de impeachment, ele não a apoia. O que a presidente fez que justifique essa ruptura por parte do vice? Temer não apresentou nenhuma razão. A carta que divulgou como justificativa do rompimento, pois na prática é um rompimento, enumera razões pessoais. Todas elas compreensíveis, do ponto de vista pessoal. O problema é que está em jogo o futuro do País. Fiquei inteiramente perplexo com aquilo.
Dilma Rousseff ainda tem condições de retomar o controle do governo?
Ela tem o controle. O governo não está descontrolado. Uma coisa que deve se dizer em favor da presidente, à qual eu tenho feito muitas críticas, é que ela não parou de governar. Ela pode ter cometido erros, mas é firme. Fez opções. Não há descontrole. O que existe é um governo fraco, com dificuldades de tomar uma série de iniciativas. Não vejo no horizonte nenhuma proposta de governo forte. O próprio ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse: “Não se formou um novo bloco de forças”. É verdade.
E as manobras de Eduardo Cunha no Congresso? Elas refletem uma debilidade da própria instituição?
Sim e acho muito grave. Chegamos a um ponto inimaginável de termos na presidência da Câmara dos Deputados um parlamentar sob acusações da mais alta seriedade, com múltiplos indícios de comprometimento. Não obstante tudo isso, ele manobra por meio do poder que tem. Só agora percebemos como o presidente da Câmara é importante. Isso é uma lição que vai ficar. O Brasil não pode deixar que isso volte a acontecer.
O Brasil corre o risco de repetir o que aconteceu com o Paraguai?
Corre o risco, mas há uma diferença com Lugo (o ex-presidente Fernando Lugo). No caso do Paraguai, eles resolveram o impedimento em 48 horas. Ficou nítido que havia um processo de golpe branco. O caso brasileiro é diferente porque estamos passando por um longo processo de debate e mobilização da sociedade. Espero que termine pelo não impedimento da presidente, para que possamos prosseguir em um curso democrático para resolver a crise.
Como?
Apesar do pessimismo que a atual situação nos causa, tem um aspecto positivo. A sociedade está se politizando. O Brasil é um País onde há completa liberdade de expressão. Todo mundo pode falar e se organizar. Tanto a direita quanto a esquerda, quanto o centro. Espero que esse processo continue de maneira pacífica. Já vimos bombas no Instituto Lula. Já vimos ações de caráter violento. É muito importante agir no sentido de dissolver essa violência e mostrar que há legitimidade em todas as manifestações.
Você é militante do PT?
Sou. Não tenho uma atividade partidária constante por razões profissionais. Tenho tido muita demanda na universidade, mas, quando posso, participo de algumas atividades do PT. Procuro dar a minha contribuição. Devo dizer que estou muito preocupado, porque é a mais grave crise pela qual o PT já passou.
O que o partido fez para transformar algo que estava no positivo em algo que está no negativo?
Há dois problemas. O primeiro é que o partido não soube requalificar sua relação com a Presidência da República. No Brasil, tudo gira em torno da Presidência da República, o que é normal em sistemas presidencialistas. Isso torna o presidente ou a presidente muito forte na relação com o seu partido. Mas, por mais importante que seja, a Presidência da República passa e o partido fica. O regime democrático requer obrigatoriamente alternância no poder. Em algum momento, o PT vai perder as eleições. Tem que perder.
Seria melhor se tivesse perdido a última?
Foi muito difícil chegar a essa conclusão. Estou dizendo isso com bastante pesar, mas acho que teria sido melhor. Aí entra uma outra questão, a campanha de 2014. A presidente acabou por fazer uma campanha em que se comprometeu com determinadas coisas e não cumpriu. Isso é muito grave. E, voltando à requalificação do partido junto à Presidência, ele precisa dizer que deve ser consultado sobre as questões fundamentais. Em 2015, o partido ficou refém de uma política sobre a qual não opinou. Esse é um aspecto.
Qual o outro?
O partido não está conseguindo responder adequadamente à Operação Lava Jato. A operação é um episódio jurídico inquestionável. É também um episódio político, pelas repercussões de longuíssimo prazo. Em que pese o fato de haver observações cabíveis sobre a extensão de detenções preventivas para finalidades de delação premiada, que parecem atentar contra os direitos fundamentais, na sua orientação geral a Lava Jato é republicana. Temos que apoiá-la. De um modo ou de outro, ela está pondo a nu uma situação de desvios de dinheiro público em uma tal proporção que é preciso saudá-la.
Não cabe dizer que ela é seletiva?
Essa é uma questão delicada. Existe uma certa seletividade, tanto na escolha dos alvos quanto na divulgação daquilo que é descoberto. Até aqui, não fui capaz de detectar qual é a origem e a razão dessa seletividade. O que vejo é que ela está incidindo de maneira frontal contra o PT, também contra setores do PMDB, e o PSDB está passando praticamente incólume. Há várias indicações de que o que está aparecendo é um sistema que envolve todos os grandes partidos brasileiros. Vou dizer uma coisa que não deve ser confundida como uma condenação da Lava Jato. Ela está ameaçando e, em certa medida, destruindo o sistema político brasileiro. Alguém poderá dizer: “Se está destruindo, deve ser por bons motivos”. É possível, mas o Brasil não pode viver sem um sistema político. Precisamos olhar para essa questão dialeticamente. A Lava Jato tem um sentido geral republicano, mas, ao mesmo tempo, está destruindo o sistema político. Os partidos que aí estão demoraram muito para ser construídos e vai custar muito ao Brasil construir outros. Destruir esses partidos, como aconteceu, por exemplo, com o Partido Socialista na Itália, implica conse-
quências de muito longo prazo.
Gera Berlusconis. Aconteceu na Itália.
Pode acontecer. Com relação à questão econômica, de um certo ângulo, toda grande empresa é um patrimônio nacional. É o País que produz por meio daquelas empresas. Destruir as empresas é destruir o patrimônio produtivo do País. Que se investigue, mas com cuidado de preservar o patrimônio produtivo. O País precisa continuar funcionando. As pessoas precisam ter emprego, ter salário, poder comprar no fim do mês. Não podemos agir de modo que se diga: “Faça-se o que for necessário, depois a gente vê”. Essa é a ética da convicção que o Weber dizia (o pensador alemão Max Weber). Não funciona na política. A política responsável é aquela que sempre olha para o dia seguinte. É a liderança política, diante de uma determinada situação, fazer uma proposta, por mais difícil que possa parecer. Um pouco aquela coisa clássica do Churchill (o estadista britânico Winston Churchill), “a única coisa que eu posso oferecer é sangue, suor e lágrimas”. Naquela hora, era o que precisava dizer. É aí que se vê a presença de estadistas.
A Lavo Jato criou uma perplexidade generalizada, não só do PT, mas também em outros partidos. Ciro Gomes é a única voz que se ouve neste momento.
As lideranças ainda estão aí. Voltamos, então, à atitude do vice-presidente. Foi um choque porque, como principal condutor do PMDB e vice-presidente da República, a atitude dele é central. Outra surpresa negativa foi o fato de o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ter aderido à tese do impeachment. Ele tinha dito várias vezes que não havia base consistente para o impeachment. E essa voz tinha sido importante, porque preservava um determinado equilíbrio democrático. Houve uma série de mudanças. No começo de 2015, o jurista Miguel Reale Júnior, um dos signatários do pedido de impedimento, fez um artigo no jornal O Estado de S.Paulo dizendo que não era possível advogar o impedimento por atos cometidos em um mandato já concluído. De repente, ele assina esse pedido de impedimento dizendo que mudou de ideia. É uma série de atitudes, com todo o respeito pelos personagens, pouco consistentes.
Quais as consequências?
Isso assusta. Não acho que as lideranças principais estejam fora do jogo. Por outro lado, estou de acordo que nessa situação novos atores começam a aparecer. É o caso do ex-ministro Ciro Gomes, que se colocou diante deste novo cenário. Vejo com bons olhos. Em relação ao outro lado e ao centro também, porque me parece que a política brasileira tende a ser organizada em torno de três polos. Se essa minha análise estiver correta, o melhor que se poderia esperar é que em cada um desses polos aparecessem vozes democráticas, dispostas a encontrar uma solução, sem abrir mão dos seus interesses. A política é o terreno no qual os interesses de cada ator, de cada fração, de cada partido existem, mas, quando ela funciona bem, se subordinam a um interesse geral.
E a judicialização da política? Quando Eduardo Cunha optou pela votação secreta, a impressão que se deu é que só mesmo o Supremo para salvar a situação.
Não é tanto judicialização da política, mas o fato de que estamos vivendo no Parlamento uma situação excepcional. Um presidente da Câmara dos Deputados com as características do atual é raro. A decisão do Supremo foi para pôr um limite em uma situação que estava ficando completamente desregrada, que é um presidente da Câmara manobrando sem eira nem beira. E nos dois campos, entre os contras e os a favor do impeachment, tem muita gente dizendo: “Isso não dá”. Então, não vejo tanto uma judicialização da política, mas uma intervenção do Supremo, para colocar limite. Esse é, de fato, o papel do Supremo. São as instituições funcionando. E um outro aspecto que não mencionamos, que é a força da opinião pública.
Como que ela se manifesta?
Existe uma tese famosa de Jürgen Habermas (o filósofo alemão, no livro Mudança Estrutural da Esfera Pública) dizendo que no capitalismo moderno a opinião pública foi destruída. Eu até diria que ele tem razão, mas o fato é que sobrou alguma coisa que lembra a opinião pública do século 19, que tinha muito mais peso do que a atual. Hoje no Brasil as instituições não conseguem passar de um determinado ponto de absurdo, porque a opinião pública se manifesta. Não quero com isso dizer que ela tenha capacidade de salvar o País porque não tem. No que diz respeito à atuação do presidente da Câmara, a opinião pública praticamente se uniu: “Isso é inaceitável”.
Qual o impacto de tudo o que está acontecendo na imagem do ex-presidente Lula?
Ainda é cedo para dizer. Há um problema que ainda não temos como aferir, que é a possível perda da base social que ele construiu entre os mais pobres. Essa base era sólida, mas está ameaçada pela política econômica deste governo. O lulismo foi tão machucado pelo que aconteceu em 2015 que ele pode morrer. Mas ele não morreu. O presidente Lula tem muitos recursos na manga. Entre outras coisas, o governo da presidente Dilma está de pé. É fraco, mas é um governo. Isso faz muita diferença. Então, as ameaças que pesam hoje sobre a sustentação política do ex-presidente Lula são enormes, mas o jogo ainda não acabou. Não devemos tirar conclusões precipitadas.
Há pouco tempo, Lula contou que o grande medo dele ao assumir a Presidência era acabar como Lech Walesa (sindicalista que se tornou presidente da Polônia, mas só teve 1% dos votos na última tentativa de voltar ao posto). Ele ainda corre esse risco?
Tinha esquecido dessa menção, que é muito boa. Ele corre o risco sim, mas quero insistir que o jogo não terminou. Como que é aquela frase? O jogo só termina quando acaba. O ex-presidente Lula está sob intensa ameaça, mas está jogando. Ele tem recursos próprios, no sentido de uma liderança popular forte. Ele tem influência sobre o governo.
Há também um desgaste dos políticos como um todo?
Uma parte da sociedade está vendo tudo isso com os olhos de “que se vayan todos” (movimento durante a crise argentina de 2011 que culminou com a renúncia do presidente Fernando de la Rúa). Só que isso não é viável. A política tem que continuar existindo. Alguém vai dirigir o País. Mesmo que venha alguém de fora do sistema político, ele vai virar um político. É assim que funciona.
Haja vista Berlusconi na Itália.
Por exemplo. Tem uma parte da sociedade no “que se vayan todos”, que é um impulso compreensível, mas irracional. Isso não vai acontecer. De novo aquela frase velha, mas muito apropriada: “Os que não gostam de política são governados pelos que gostam”. De qualquer forma, quando precisa escolher, o eleitor analisa as alternativas. Ele tem uma maneira de entender o grande quadro. Foi o que aconteceu em 2014. Os eleitores optaram por Dilma porque tinham medo de que as conquistas obtidas na última década se perdessem.
Esse risco persiste.
É justamente o problema que estamos vivendo. O interessante para o Brasil seria que a alternância de poder se desse de tal maneira que as conquistas fossem preservadas. Essas conquistas são o grande mérito do lulismo. Elas são de interesse geral, mesmo para a classe média antipetista. Por quê? O Brasil não vai controlar a onda de violência se não diminuir a desigualdade.
Na Argentina e na Venezuela houve mudança no governo. Isso pode ser um movimento?
Tivemos um ciclo de governos de centro-esquerda na América do Sul. Parece que esse ciclo está chegando ao fim, no sentido de que a crise econômica internacional dificultou o prosseguimento desses processos. Diante desse novo quadro, os setores progressistas têm que se rearticular. A presidente Dilma tentou um caminho de uma maneira ousada, por meio da nova matriz econômica, que procurei mostrar no artigo Cutucando Onças Com Varas Curtas. Ela teve muita coragem de fazer mudanças em favor da reindustrialização do País, buscando uma aliança forte com os setores industriais.
Por que não deu certo?
Ninguém sabe. Uma hipótese, mais de natureza política, é que a burguesia industrial brasileira tenha se assustado. Talvez tenha ocorrido no período 2011-2014 algo parecido, guardadas todas as proporções, com o que aconteceu em 1964. Ela fez uma série de intervenções pontuais por meio do Estado, como reduzir os juros e regular de maneira mais republicana o setor energético. Pode parecer irônico, mas vou citar o professor Fernando Henrique Cardoso, que escreveu um livro que considero clássico, Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico no Brasil. Ele diz que a burguesia industrial brasileira sempre tem um movimento pendular. Ela empurra o Estado na direção de posições mais ousadas porque ela depende dessa intervenção, mas quando o Estado faz o que ela pede, ela se assusta e tira a escada.
Em relação à sociedade, como vê as manifestações de intolerância política, até mesmo de ódio, em diversos pontos do País?
É o resultado de três coisas. Tem um fenômeno de base. A classe média brasileira se acostumou com a sociedade dividida em estamentos, na qual algumas pessoas têm direito a certas coisas e outras não. Na Índia, há divisão por castas. No Brasil, a divisão não está estabelecida em lei, mas é real. Isso só ficou claro quando o lulismo mexeu no extrato inferior, quando foi lá embaixo e começou a puxar essas pessoas para cima. Não puxou tanto, mas foi o suficiente para incomodar os que estavam em cima. A segunda coisa é que esse sentimento foi potencializado pelos meios de comunicação, que amplificaram a ideia de que quem estava fazendo essas mudanças era despreparado, incompetente e, no fim, corrupto. A terceira vertente desse quadro ocorre a partir do mensalão. Há uma espécie de massacre sobre o PT. Nunca se viu na história do Brasil um período tão prolongado, considerando o mensalão e depois a Lava Jato, em que um mesmo partido é sistematicamente acusado de ser o responsável por um imenso esquema de corrupção. Somando essas três coisas, tem uma reação, quase de pele, da classe média tradicional reacionária, que julga estar em uma cruzada santa contra pessoas que estão roubando o Brasil. Temos que desmontar isso. A política do ódio não funciona, leva à destruição mútua.
O que o PT precisa fazer?
O PT deveria apresentar respostas mais consistentes à Operação Lava Jato. A Lava Jato é uma monumental narrativa, uma espécie de novela que vai sendo atualizada dia a dia com novos fatos. Se o partido não contrapuser uma narrativa igualmente consistente, fica inteiramente vencido. E o partido não está conseguindo responder à altura.
No ano passado, você não aceitou participar da comissão de notáveis que o PT estava montando para ajudar o partido a sair da crise. Por quê?
Achei que eu tinha mais contribuição a dar fora do que dentro. Sou militante do PT, um militante bissexto, mas não quero fugir aos meus compromissos. No entanto, no meu trabalho como intelectual, preservo a minha mais completa independência, porque é o papel que o intelectual tem que cumprir. O intelectual não é político. Não sou político. Não discuto cargo, não preciso de voto, não quero voto, não quero falar em nome de ninguém.
E cita Fernando Henrique.
Cito Fernando Henrique com toda tranquilidade porque o meu papel não é o do político. Em certo sentido, o papel do intelectual é o oposto ao do político. O político, por definição, não pode falar tudo o que pensa. E não deve. Mas o intelectual pode e deve. Alguém tem que dizer as coisas. Como entendo a atividade intelectual dessa maneira, dou uma contribuição melhor fora do que dentro de um conselho desse tipo. I
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