Dizendo “For the first time in São Paulo!”, o guitarrista Jeff Beck encerrou com uma mentirinha seu show realizado no dia 25 de novembro, uma quinta-feira chuvosa, para um Via Funchal abarrotado de guitarristas – de Tomati, da banda do programa do Jô Soares, a Mário Manga, ex-Premê, atual “pai da Mariana Aydar”. Era o segundo e último show da passagem pelo Brasil da Emotion and Commotion Tour, que teve estreia na véspera, em um Rio de Janeiro conturbado. A mentira fica por conta de que não era a primeira vez que Beck tocava em São Paulo. Em 1998, ao lado da guitarrista Jennifer Batten (Michael Jackson), ele literalmente sacudiu a tenda montada no Jockey Club paulistano, como havia feito no dia anterior na Marina da Glória carioca, às vésperas de lançar Who Else, o disco que consolidaria a terceira e definitiva fase de Jeff Beck. Depois de anos como guitarrista solo dos Yardbirds, Beck assume de vez o papel de guitar hero, em 1968, quando lidera o Jeff Beck Group que tinha entre os componentes o futuro Rolling Stone Ron Wood, no baixo, e um novato chamado Rod Stewart, nos vocais. Como seus pares Jimmy Page, Eric Clapton e muitos, muitos outros, Beck tornou-se uma das vítimas de Jimi Hendrix, negro americano que se estabeleceu como um Pelé em uma área em que não existiam sequer “Maradonas”. O Beck Group dissolveu-se às vésperas de tocar em Woodstock sem grande alarde.

Em 1975, Beck lançou Blow By Blow, disco afastado do heroísmo e que chamou a atenção de um público mais ligado em jazz rock e fusion. Tão inovador, norteou toda uma geração de guitarristas chatos que aderiram às inovações técnicas, sem perceber que o barato era a alma por trás dos solos. Resultou em mais prestígio e menos sucesso ainda.

A terceira etapa de sua carreira foi esboçada em Guitar Shop, de 1989. Mais precisamente na música Where Were You. Nela, Jeff apresenta uma técnica que envolve manipulação das cordas com a mão, em vez da palheta, harmônicos modificados com o uso da alavanca, efeitos de pedal de volume obtidos no próprio botão da guitarra. Tudo isso regado a muito volume, controladíssimo, um bom gosto eclético e um apuro técnico que beira a insânia. Quando fez isso com a música A Day In The Life, dos Beatles, bastou correr para a torcida (a música surgiu no disco In My Life, autotributo e despedida de George Martin, produtor dos Beatles).

Nos últimos anos, Jeff Beck tem modificado constantemente sua banda. Entre outros, tocou com a baixista Tal Wilkenfeld, uma monstrinha do jazz, linda e de apenas 24 anos, além de dois ex-bateristas das bandas de Frank Zappa, Terry Bozzio e Vinnie Colaiuta. Nessa turnê, Beck apresenta-se acompanhado pelo tecladista Jason Rebello, ex-garoto prodígio, ex-Wayne Shorter e ex-Madeleine Peyroux entre outros; Rhonda Smith, baixista e cantora, com uma década de Prince nas costas; Narada Michael Walden, o homem que substituiu Billy Cobham na Mahavishnu Orchestra, baterista do disco Wired, de Jeff Beck e, ao mesmo tempo, compositor de músicas cantadas por Barbra Streisand, Lionel Richie e Whitney Houston – a trilha de O Guarda Costas, filme da menina, assinada por Walden, é a mais vendida da história.

DISCOGRAFIA OFICIAL

Jeff Beck Group (com Rod Stewart)
Truth (1968)
Beck-Ola (1969)

Jeff Beck Group – fase II – mais R&B
Rough And Ready (1971)
Jeff Beck Group (1972)

Beck Bogert &Appice – um equívoco
Beck Bogert &Appice (1973)

Fase solo
Blow By Blow (1975)
Wired (1976)
Live With Jan Hammer Group (1977)
There And Back (1980)
Flash (1985) – outro equívoco

Com Tony Hymas e Terry Bozzio
Jeff Beck’s Guitar Shop (1989)

Trilha
Frankie’s House (1992) – seriado para
a televisão australiana

Com Big Town Playboys
Crazy Legs (1993) – tributo a Cliff Gallup, guitarrista dos Blue Caps de Gene Vincent

Fase solo II
Who Else! (1999)
You Had It Coming (2001)
Jeff (2003)
Emotion And Commotion (2010)

SET LIST

1. Plan B(Jeff)
2. Stratus
3. Led Boots(Wired)
4. Corpus Christi Carol
(Emotion And Commotion)
5. Hammerhead(Emotion And Commotion)
6. Mna Na H’Eireann
7. People Get Ready(Flash)
8. You Never Know(There And Back)
9. Rollin’ & tumblim’(You Had It Coming)
10. Big Block(Guitar Shop)
(Somewhere) Over The Rainbow
(Emotion And Commotion)
11. Blast From The East(Who Else!)
12. Angels(footsteps) (Who Else!)
13. Dirty Mind(You Had It Coming)
14. Brush With The Blues (Who Else!)
15. A Day In The Life
16. Bis1
17. I Want To Take You Higher
18. How High The Moon
19. Bis2
20. Nessun Dorma
(Emotion And Commotion)

Jeff Beck definitivamente é outro. Não tocou nenhuma música da fase rocker ou mesmo de Blow by Blow. A mais antiga foi de 1980, You Never Know (do álbum There And Back). Preferiu privilegiar os álbuns mais recentes, incluindo quatro do recém-lançado Emotion and Commotion – Nessun Dorma – ária de Turandot, ópera de Giacomo Puccini e hit de Luciano Pavarotti, fecha o show que também traz (Somewhere) Over The Rainbow, de O Mágico de Oz.

Para que se tenha uma ideia de quem se tornou Jeff Beck, basta dizer que ele toca e tocou People Get Ready, de Curtis Mayfield, música que gravou com Rod Stewart cantando, em um encontro especial. Ocorre que ele toca sem ninguém cantando, e as pessoas aplaudem ensandecidamente… seu acompanhamento. Ele sequer sola a melodia.

Chama a atenção também o número de homenagens contido no set list. Stratus, por exemplo, pertence ao repertório de Billy Cobham e a guitarra que se ouve na gravação original é a de Tommy Bolin, grande guitarrista americano, admirador de Beck, que morreu de overdose quando excursionava com seu ídolo; Corpus Christi Carol, a exemplo de Lilac Wine que não tocou, é uma canção do repertório de Jeff Buckley, cantor e ator também falecido precocemente, ambas incluídas em Emotion And Commotion; Mna Na H’eireann, que antecede o solo de Rhonda, é uma canção tradicional irlandesa ainda não gravada por Beck; I Wanna Take You Higher, do repertório de sua recente turnê com Eric Clapton, é uma música de Sly Stone, celebrizada em Woodstock (Beck tentou tocar com Sly sem sucesso, como todos que tentaram); finalmente, Jeff puxa uma guitarra Les Paul (usa Fender Stratocaster o restante do show) e toca How High The Moon para homenagear o próprio Les Paul (1915-2009), seu ídolo e designer do instrumento. Nesse número, ouve-se uma gravação original da(s) voz(es) de Mary Ford, mulher de Les Paul, o pioneiro do multi track (gravações sobrepostas).

Ninguém dorme quando mister Geoffrey Arnold Beck está na cidade.

O criador e sua criatura


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