O Toledo é um sujeito muito bom, equilibrado. Além disso, é afável. Essas suas qualidades, admiráveis, o tornam presa fácil daqueles chegados à dominação.

Há algum tempo, ele se envolveu com uma mulher perigosa que, não por acaso, dele se aproximou. Lentamente, foi dominando o coitado. Sinistra, foi pondo a coleira no pescoço dele. Mantinha o bicho junto. Com o tempo, ele foi perdendo ar, perdendo brilho, perdendo viço. Perdendo a vida.

Uma amiga dele, vendo aquele horror, encostou o Toledo na parede. Deu-lhe um tremendo esculhambo. Ele tinha de dar um basta. O Toledo demorou, mas por fim caiu em si. Resolveu o assunto.

Essa mesma amiga o presenteou com um Shih-Tzu, para companhia. No começo foi difícil. Ela ajudava, a empregada ajudava, o cachorro foi vivendo e ele foi se afeiçoando ao bicho. Mas o cachorro não entrava nos conformes. Fazia as coisas fora do lugar. Fazia fora de hora e de maneira inconveniente. Ele logo ficou pelas tampas com o Shih-Tzu.

Contratou um adestrador. Daria comportamento ao Shih-Tzu. Foram várias semanas. O adestrador saía com o cachorro e, quando voltava, quem recebia instruções era ele. Faça isso, faça aquilo. Não fale assim, fale assado. O Toledo suspeitou que ele sim, estava sendo adestrado. E tem mais, disse o adestrador, tome cuidado, senão esse cachorrinho domina o senhor!

O Toledo ficou de orelha em pé.

Certa feita, ele chegou cansado e foi assistir a um Tarantino. O Shih-Tzu foi logo em cima dele. E brinca e morde e lambe. Sem parar. Estava impossível. Ele deu um firme não. O Shih-Tzu se afastou entristecido e logo urinou redondo-amarelo-sobre-piso-de-madeira. Ele ficou um leão, mas se controlou. Adestrado, bateu no chão e disse três vezes: Aqui não. Limpou o piso e continuou com o Tarantino. Muito violento e tenso, o filme.

E não é que o Shih-Tzu volta à brincadeira! Ele, bom coração, aceitou o cachorro no colo. Logo o Shih-Tzu estava lutando, mordendo, lambendo. Mas o Toledo queria mesmo ver o filme e deu outro firme não. O Shih-Tzu se afastou abatido e logo fez um cocô mole-sobre-tapete-branco-felpudo. Ali, bem na frente dele.

Nessa, o cachorro errou. Errou feio. Passou da conta. O Toledo se descontrolou, agarrou o bicho pelo cangote e jogou pela janela. Desses impulsos da vida, tão comuns, sempre ocultados. Voltou ao Tarantino e seguiu até o fim.

Acalmado, preparou um uísque, um lenço perfumado e encarou a limpeza do tapete. Queimar o tapete? Cortar um pedaço? Considerou várias alternativas.

Ele concluía a árdua tarefa quando tocou o interfone. O porteiro disse que, não sabia como, o cachorro dele estava em um galho da árvore da portaria. De certo era brincadeira da molecada. Ele disse: Certamente. Desceu, resgatou o Shi-Tzu e o trancou na área de serviço. Assunto encerrado.

A defenestração é uma experiência singular. Não só pela abrupta expulsão de um ambiente abrigado, mas também pela inesperada sensação do voo incerto. Além disso – o mais grave -, é praticada sem a aquiescência do protagonista principal. No caso, o Shih-Tzu.

Foi assim que o pequeno cachorro entendeu tudo em um átimo. Sem a menor necessidade de estruturar conceitos. Ficou claro que a barra ali era pesada. Pesadíssima. O Shih-Tzu deixou de lado sua vertente dominadora. Tanto é verdade que hoje está uma seda. Nunca mais causou problema. Os dois vivem juntos em perfeita harmonia.

O Toledo só lamenta ter demorado tanto para descobrir esse seu dom.


*Marcos Rodrigues é engenheiro civil, professor titular da Escola Politécnica da USP e dedica-se também à literatura.


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.