Desde Jorge Luis Borges as definições do livro se tornaram desnecessárias. Vazias de poesia. Desprovidas de senso crítico. Deve-se duvidar do intelectual que se propõe a estabelecer uma conexão honesta entre o objeto, a palavra e seus sentidos. No limite, assume-se que a questão tem apenas função retórica. Trata-se, enfim, de um falso problema. Pois todo mundo sabe o que é um livro – talvez cada um o saiba à sua maneira.
A ideia-livro – ou livro-ideia? – se tornou tão poderosa que o exercício de sua desconstrução não destitui o objeto de seu significado original. Ou de sua função original, como ocorre em muitos casos. Todos sabem que o e-book não corresponde necessariamente ao livro. Porém, considerando que sua função primordial é a leitura, ninguém tenta dissuadir as pessoas e todo o vigoroso mercado midiático de que aquilo, afinal, está longe de ser um objeto de papel dobrado. Também um livro-objeto, ou um livro de artista, ou uma escultura de livros apenas mantém sua identidade original porque contém “mil palavras” ditas ou subentendidas. Mas a unidade mínima, a sua concretude, esta, se perdeu. Restou apenas a ideia-força do livro – objeto de leitura ou de múltiplas leituras.
Assim é a arte de Gustavo Piqueira. O livro está lá, na sua concepção original. O livro sempre esteve ali, desde o momento da escrita. É bem provável que o livro seja a um só tempo o ponto de partida e o de chegada de todo o processo criativo desse grande artista. No entanto, quando se completa a volta, o que surge não tem absolutamente a mesma rigidez das dobras de papel. A ideia-livro se converte, então, em discurso, enquanto a palavra toma acento na função-livro. É um caminho tortuoso, dir-se-ia, quase uma contradição.
Em Lululux a estrutura narrativa não se enquadra no retângulo da página. Antes, um jogo de jantar (des)constrói a figura desse personagem deveras curioso, não raro vazio como um copo, mas que preenche seu tempo entre postagens na internet, cursos e pensamentos nada profundos – o personagem é vazio, vale frisar – relatados antes de dormir. Lux Moreira se situa naquela zona desconfortável em que o luxo deve virar lixo. Pois, afinal de contas, o livro de Piqueira pode ser consumido e descartado. E, se a ideia de se descartar um livro contradiz a sua natureza perene, não é menos verdade que, diante de um mercado editorial tão eclético, a percepção de que muitos livros são descartáveis não deve ser descreditada. Quem lê tudo isso?
É nesse ponto que o livro-jogo-de-jantar, de Gustavo Piqueira – este novo empreendimento cultural da Casa Rex, em parceria com a Lote 42 – coloca em xeque a tensão entre conteúdo e continente. O personagem Lux Moreira é dado aos pensamentos fáceis da autoajuda, às imagens vazias da televisão, às frases feitas das redes sociais. Nada que não esteja nos livros quadrados das melhores livrarias. Mas, então, qual é o diferencial do livro de Piqueira?
Nas mãos de Piqueira o livro vira arte, artesanato, indústria.
E as palavras… o que são as palavras diante de um livro-objeto? (Ver o livro na pág. 113.)
*Professora da Universidade de São Paulo. Autora de “O Império dos Livros: Instituições e Práticas de Leituras na São Paulo Oitocentista” (São Paulo: Edusp, Fapesp, 2011, 448 páginas). Prêmio Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Biblioteca Nacional, 2011; Prêmio Jabuti, 2012; e Edições e Revoluções – Leituras Comunistas no Brasil e na França (Cotia: Ateliê Editorial, 2013, 334 páginas). Para ler mais, entre na página http://bibliomania-divercidades.blogspot.com.br/
Deixe um comentário