Renovação democrática

Foto: Lula Marques/Fotos Públicas (20/12/15)
Foto: Lula Marques/Fotos Públicas (20/12/15)

Muito se tem discutido sobre a mudança do ministro da Fazenda. A pretexto de Levy e Barbosa, critica-se a chamada nova matriz macroeconômica ou o ajuste fiscal, a depender da posição política do debatedor. Reencena-se, assim, o debate entre desenvolvimentistas e monetaristas no Brasil, já quase secular. Nessa toada, toda responsabilidade pela calamidade atual é atribuída ou ao primeiro governo Dilma ou ao ajuste de 2015. Já a crise política, resultado de profunda crise de hegemonia em curso, é vista ou como um assunto paralelo ou, no máximo, como sintoma da crise econômica.

Em meio a tanto som e fúria, alguns processos são pouco abordados ou mal compreendidos. Em primeiro lugar, uma vez mais o Brasil volta-se para dentro de si, dando as costas à América Latina, subestimando o imenso paralelismo entre os nossos destinos políticos e econômicos e os dos nossos vizinhos. O ciclo de alta dos preços das commodities foi a base de sustentação da chamada maré rosa que, na passagem dos anos 1990 para os anos 2000, levou ao poder Lula, Kirchner, Chávez, Morales e Correa, entre outros.

A desaceleração da economia chinesa levou então à reversão do ciclo que, no caso da economia brasileira, teve início em setembro de 2011. A isso se somou a gradual reversão da política de afrouxamento monetário implementada pelos EUA, que vem provocando turbulência nos mercados de moedas desde 2013 e desvalorizando o câmbio de várias economias periféricas. Resultados eleitorais recentes na Argentina, na Bolívia e na Venezuela não podem ser entendidos sem se levar em conta esse contexto econômico internacional.

Isso não significa dizer, é claro, que a política econômica doméstica é irrelevante. Desacertos do primeiro governo Dilma, como a aposta nas desonerações e a desaceleração do investimento público, têm evidente responsabilidade pelo modo como a crise chegou ao Brasil. Já a política de 2015, incluindo violento corte dos investimentos públicos, restrição ao acesso ao seguro-desemprego, choque de tarifas e aperto monetário, não poderia ter vindo em um momento menos apropriado. Não é por outra razão que a economia brasileira está entre as que mais tem sofrido os efeitos da desaceleração internacional.

Em segundo lugar, e ainda mais importante do que o contexto internacional, é necessário notar que a relação entre a crise econômica e a crise política tem sido mal compreendida. Ainda que a desaceleração internacional e o ajuste fiscal expliquem parte do colapso econômico em curso no Brasil, a sua profundidade só se justifica à luz da crise política. O efeito mais direto é a paralisia de alguns setores que têm um peso grande na economia brasileira, notadamente o de petróleo e o da construção civil, congelados pela Operação Lava Jato, a qual vem revelando, em meio às suas ambiguidades, a interpenetração inescusável e já muito antiga entre interesses privados e o aparato estatal.

Mas ainda que o curto-circuito no sistema político-partidário produzido pela Lava Jato seja um evidente determinante da crise política que irrompeu no ano passado, uma análise mais profunda deve reconhecer que a crise já vinha sendo gestada há alguns anos. A baixa porosidade à participação popular do sistema político criado na redemocratização foi se tornando cada vez mais insustentável à medida que a sociedade brasileira ganhava heterogeneidade e complexidade. Uma das contradições do projeto político que foi hegemônico na última década, liderado pelo PT, foi acelerar a transformação da sociedade brasileira sem, ao mesmo tempo, adaptar o sistema político. Retirou-se milhões de pessoas da pobreza, expandiu-se enormemente o ensino superior, criou-se milhões de empregos formais, mas as portas do sistema político-partidário seguiram praticamente fechadas à grande maioria.

Junho de 2013, prenhe de ambiguidades ideológicas, trouxe à tona o descompasso entre os conflitos na base da sociedade e sua representação pelo sistema político. Esse descompasso viria então se combinar com a desaceleração da economia e a guinada pós-eleições da política econômica para produzir uma crise de hegemonia de grandes proporções. Sem projeto político viável no horizonte, o sistema político-partidário girou em falso ao longo de 2015, assistindo atônito à derrocada da economia.

Como a crise econômica tem, portanto, uma raiz mais profunda na política, sua solução não pode deixar de passar pela política. A única alternativa capaz de permitir que a reorganização política em curso na base da sociedade possa se expressar institucionalmente é, para emprestar uma formulação de Carlos Nelson Coutinho, uma “renovação democrática do conjunto da vida brasileira”. Na sua ausência, qualquer projeto político vai requerer níveis crescentes de repressão para se estabilizar.

Sem essa renovação democrática, quaisquer impulsos desenvolvimentistas tendem a ficar restritos aos limites observados na última década. Em condições externas favoráveis, alguns avanços foram possíveis. Porém, quando o contexto internacional se modifica e a continuidade do desenvolvimentismo requer transformações mais profundas nas estruturas socioeconômicas, eles rapidamente enfrentam oposição e são abandonados. Foi o que se viu desde a primeira eleição de Dilma. Mudanças mais profundas na economia brasileira não foram detidas por falta de “vontade política” ou fragilidade técnica dos formuladores.

Em outra transição de ciclo político, há quase quarenta anos, Coutinho argumentou que “o valor da democracia adquire para nós [uma] dimensão mais profunda (…) quando elevamos à consciência o fato de que o regime de exceção vigente é ‘apenas’ a expressão atual – uma expressão extrema e radicalizada – de uma tendência dominante ao longo da história brasileira. Refiro-me ao caráter elitista e autoritário que assinalou toda a evolução política, econômica e cultural do Brasil, mesmo em seus breves períodos ‘democráticos’.”

A renovação democrática que se seguiu, a despeito de suas fragilidades, legou-nos uma sociedade muito mais plural do que aquela do início dos anos 1980. Mas seu potencial transformador parece estar atingindo seus limites, em um momento em que vemos a reafirmação da tendência elitista e autoritária. A única forma de resistir a essa tendência é avançar rumo a uma nova renovação democrática. Como sugeriu Marcos Nobre, agora que o ciclo da redemocratização chega ao fim, a democratização deve começar.

*Professor do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e pesquisador associado do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP).


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