No início deste mês, o jovem paulistano Gustavo Mascarenhas Camargos Silva, 19 anos, deu início à vida universitária. Graças a um incidente inesperado, no entanto, seu rendimento no curso de Arquitetura da Escola da Cidade foi abruptamente reduzido. Com uma fratura exposta no polegar direito e um rompimento dos tendões, ele dedica-se a um tratamento fisioterápico para que possa recompor os movimentos da mão. Fato que ao longo dos próximos seis meses vai privá-lo de exercitar um pré-requisito da arquitetura, o desenho.
Gustavo foi uma das 28 vítimas da ação policial orquestrada pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Estado de São Paulo para repreender a segunda manifestação contra o aumento das tarifas do transporte público, ato realizado na avenida Paulista em 12 de janeiro último. Validado três dias antes, em ação conjunta do governador Geraldo Alckmin (PSDB) e do prefeito Fernando Haddad (PT), o reajuste elevou o custo dos bilhetes de ônibus, trem e metrô de R$ 3,50 para R$ 3,80. Desde a véspera da vigência, o Movimento Passe Livre (MPL) deu início a protestos semanais com o propósito de revogar o aumento.
Gustavo participava do ato quando foi atingido por estilhaços de uma bomba de efeito moral. “Houve muito tumulto, perdi meus amigos de vista e várias bombas explodiram ao meu lado. Foi então que percebi que meu dedo estava todo estourado. Uma moça amarrou um pano para estancar o sangramento, mas naquele momento eu estava mais atordoado com o gás lacrimogêneo do que com o ferimento”, relembra.
Mãe de Gustavo, Ana Amélia Camargos, advogada e professora de Direito da PUC-SP, também falou à Brasileiros sobre a ação policial daquela terça-feira em que, além do efetivo da PM, a SSP destacou homens de esquadrões especiais, como Rota, Força Tática e Tropa de Choque, para fazer uso da técnica de “envelopamento”, caracterizada pela contenção e repressão dos manifestantes em um cordão policial.
“Quando nos encontramos, a primeira pergunta que Gustavo fez foi: ‘Mãe, estamos em uma ditadura?!’. É revoltante pensar que muitos morreram e foram torturados para que tivéssemos liberdade e agora, em pleno ano de 2016, o governador Alckmin, que foi eleito pelo povo e se diz democrata, não consiga mediar o direito à livre manifestação.”
Uma semana depois do episódio na avenida Paulista, Ana Amélia encontrou Alexandre de Moraes, o secretário de Segurança Pública do governo Alckmin. Afirma ter sido muito bem recebida. No entanto, faz balanço inócuo da visita. “Ele passou o tempo todo justificando a violência policial. Em nenhum momento pediu desculpas ou reconheceu os excessos da polícia.” Dias após o encontro, Ana Amélia acionou seu advogado, Pedro Serrano, para mover um processo contra o governo estadual.
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A repercussão negativa da violência policial registrada naquela terça-feira foi expressiva. Entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Anistia Internacional condenaram a estratégia utilizada para conter os manifestantes. Em entrevista à repórter Manuela Azenha para o site de Brasileiros, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, Martim de Almeida Sampaio, afirmou que expedientes ilegais foram utilizados na operação. “O Manual de Contenção de Distúrbio Civil da PM define que a repressão deve evitar violência física e possibilitar rotas de fugas. O que vimos foi exatamente o contrário disso. A ação foi contra a Constituição Federal e os acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário.”
Nos dois protestos subsequentes a SSP parece ter recuado da tática de repressão ostensiva. Porém, a mesma normalidade não foi conferida ao Quinto Grande Ato Contra o Aumento. Realizado em 21 de janeiro, a partir do Terminal Parque Dom Pedro II, o protesto foi encerrado na Praça da República com uma operação tão violenta quanto a do dia 12 e um número de feridos ainda maior, 33.
Para Pablo Ortellado, professor doutor do curso de Gestões de Políticas Públicas da USP e autor do livro Vinte Centavos: a Luta contra o Aumento (Editora Veneta, 2013), a repressão a eventuais atos de vandalismo cometidos por “mascarados” – narrativa, segundo ele, reincidente nos grandes veículos da mídia impressa e televisiva – é mera cortina de fumaça em defesa de interesses corporativos: “Querem criminalizar movimentos sociais com pautas legítimas, como a luta do MPL e a dos secundaristas, que também sofreram com a PM no final de 2015”.
Nos atos de janeiro, a aprovação midiática às táticas de repressão também foi embasada com o argumento da SSP de que os manifestantes têm de informar antecipadamente à PM o itinerário das marchas. Medida inconstitucional, segundo a OAB, e rechaçada por Luísa Cytrynowicz, 20 anos, uma das porta-vozes do MPL. “Consideramos um retrocesso deixar a polícia e a SSP determinar qual é o trajeto das manifestações. É um retrocesso não só para a gente, como movimento, mas para todos os outros que se coloquem na cidade.”
MÁSCARAS QUE CAEM
Desde junho de 2013, e principalmente a partir dos protestos contra a Copa do Mundo de Futebol do Brasil de 2014, a ação dos black blocs tem desconcertado veículos de imprensa e, consequentemente, a opinião pública. Há algum tempo a expressão “mascarados” também vem sendo utilizada para identificar, de forma genérica, manifestantes vestidos de preto com os rostos cobertos com camisetas ou lenços negros. Ex-black block, Paulo (nome fictício) conclui neste ano o curso de História na USP. Desde o final de 2014, não vai às ruas para fazer linha de frente nos protestos. No entanto, ele acredita que a participação de black blocs nas manifestações é um fator irreversível. “O grande problema é que as pessoas compram o discurso da mídia. Chegam até a acreditar que os black blocs vão constituir uma espécie de exército alternativo, mas não fazem ideia de que se trata de uma tática e não de um movimento. Desde quando surgiram, nos anos 1980, em países da Europa, como Alemanha e Polônia, os black blocs têm dois objetivos: proteger os manifestantes da repressão policial e destruir fachadas de edificações que sediem símbolos do capitalismo, como bancos privados e as grandes montadoras norte-americanas de veículos que também estão em nosso País.”
Entre os “mascarados”, a despeito de não serem mencionados pela PM e não chegarem à esfera da opinião pública, também é patente a presença regular de integrantes do Movimento Anarco-Punk. Surgidos em São Paulo no início dos anos 1990, os anarco-punks são, em grande parte, jovens e adolescentes criados à margem, nas periferias da cidade, que também se opõem ao capitalismo, mas, como no Anarquismo do início do século 20, pregam a total ausência de governo.
No final de janeiro, a Polícia Civil de São Paulo divulgou o resultado de uma investigação realizada ao longo dos últimos 24 meses, com depoimentos de mais de 300 suspeitos. As conclusões? Não há ligações entre black blocs e MPL, e os praticantes da tática tampouco possuem ações articuladas, fato que impediu o Ministério Público de indiciá-los no Artigo 288-A do Código Penal, que tipifica a formação de quadrilha.
Em nota enviada à redação de Brasileiros, a SSP afirmou que, nos protestos de 2016, houve 16 ocorrências de dano qualificado ao patrimônio e foram apreendidos sete artefatos explosivos, além de seis armas brancas. Ainda segundo a nota, o treinamento para a atuação da PM nas manifestações leva em conta os atos anteriores e a probabilidade de violência e práticas criminosas. A técnica do “envelopamento”, segundo a nota, é responsável pela redução da necessidade de emprego de técnicas mais violentas. A SSP informou ainda que, entre 2013 e 2014, a Corregedoria da PM instaurou 18 inquéritos para apurar as condutas de policiais. Do total, 12 foram arquivados pela Justiça Militar, quatro foram encaminhados ao Ministério Público e dois estão em andamento.
Até o fechamento desta edição, seguia a luta contra o aumento. Em 2015, devido à baixa adesão aos protestos, o MPL recuou. Irredutível como em 2013, quando derrubou o reajuste, promete agora não sair das ruas.
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