São oito personagens principais em uma obra que pode ser lida como um romance policial. “O primeiro homem que sabia demais é uma mulher. Margaux.”, apresentam logo no começo da narrativa os franceses Gérard Davet e Fabrice Lhomme, do jornal francês Le Monde. Jornalistas investigativos com prestígio internacional, eles são autores do livro SwissLeaks – Revelações sobre a Fraude Fiscal do Século, que acaba de ser lançado no Brasil pela editora Estação Liberdade. Em julho de 2014, ao final de mais de cinco anos de apuração, Davet e Lhomme partilharam com um consórcio de jornalistas informações sobre 106 mil contas de potenciais sonegadores fiscais encobertas pelo HSBC Private Bank de Genebra, na Suíça, cujos depósitos somavam 180 bilhões de euros.
A estratégia de divulgar o trabalho em escala mundial em parceria com o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos foi sugerida aos jornalistas pela direção do Le Monde, por causa do volume de informações. Os donos das contas, muitas delas suspeitas de abrigar recursos de origem criminosa, se espalham por 200 países, inclusive pelo Brasil. A estratégia deu certo. Depois da divulgação do trabalho, a Suíça resistiu o quanto pôde, mas acabou por colocar fim ao segredo irrestrito que garantia aos depositantes de suas contas remuneradas. Não por acaso, partiu do Ministério Público daquele país a iniciativa de investigar contas em nome de trustes que têm como beneficiário o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara dos Deputados.
No prefácio da edição brasileira de SwissLeaks – Revelações sobre a Fraude Fiscal do Século, o jornalista Ismael Pfeifer conta que 5.581 brasileiros apareciam como titulares de contas-correntes nas listas de 2006 e 2007, em torno das quais gira a investigação no HSBC Private Bank de Genebra. Pela relação, o saldo das contas dos brasileiros era de US$ 5,4 bilhões. Em cálculos estimativos, esses US$ 5,4 bilhões poderiam gerar uma cobrança de impostos e multas de até US$ 3,7 bilhões. “Ocorre que a legislação brasileira extingue a cobrança das dívidas fiscais e a própria punição a depositantes – por sonegação – após cinco anos”, escreveu o jornalista. O livro propriamente não esmiúça as listas de correntistas, que foram retiradas do banco pelo técnico de informática Hervé Falciani, quando a serviço da própria instituição.
Margaux, a primeira dos oito personagens retratados na obra, abre o enredo no dia 6 de dezembro de 2008, em um quarto de hotel da cidade francesa de Saint-Julien-en-Genevois, perto da fronteira suíça. Especialista em comportamento, ela integra os quadros do mais célebre serviço de inteligência da França e está encarregada de avaliar a confiabilidade de um potencial informante. No quarto de hotel, Margaux interroga, junto com dois outros agentes secretos, um cidadão que se apresenta com o nome fictício de Ruben Al-Chidiack. Meses antes, usando esse mesmo pseudônimo, ele tentou em vão vender informações sigilosas do HSBC Private Bank de Genebra para a diretora de um banco em Beirute. No hotel de Saint-Julien-en-Genevois, ninguém sabia desse detalhe.
Depois de fracassar em Beirute, Al-Chidiack disparou mensagens para serviços de informação da Inglaterra e da França. Uma delas chegou à Brigada Central de Luta contra a Corrupção, situada em Nanterre, a oeste de Paris, e fez mover a engrenagem dos caçadores de fraude. Seis meses depois de um primeiro encontro pessoal, em que Al-Chidiack afirma querer entregar informações para ajudar no combate à corrupção, agentes franceses levam Margaux para avaliar o informante. Dados passados anteriormente por ele haviam se revelado verídicos – e comprometedores. Al-Chidiack, no entanto, se recusava a revelar sua verdadeira identidade, o que estabelecia um impasse nas tratativas.
Ao final de uma hora e quarenta minutos de discussão “quase estéril”, Margaux conclui que Al-Chidiack tinha informações consistentes e não queria dinheiro. Ela também consegue demonstrar ao informante que, sem revelar sua identidade, ele não teria sucesso junto aos serviços franceses. Afinal, os agentes precisam pisar em terreno firme e descartar qualquer possibilidade de atrito diplomático com a vizinha – e democrática – Suíça. Cada detalhe da conversa é reproduzido no livro, pois o encontro foi gravado pelos agentes secretos sem o conhecimento de Al-Chidiack. “Tivemos a possibilidade de conhecer o conteúdo das gravações – enviadas ao escalão mais elevado em Bercy –, de autenticá-las, além de transcrever fielmente a conversa”, registram os autores do livro. Bercy, por sua vez, é o bairro parisiense que abriga o Ministério da Economia e da Fazenda da França.
Dezoito dias depois do encontro no quarto de hotel, Al-Chidiack se revela como o técnico de informática Hervé Falciani e passa efetivamente a colaborar com os agentes franceses. Missão cumprida, Margaux, que protagoniza o capítulo intitulado “A espiã”, desaparece de cena. É o começo de uma longa e tumultuada investigação que os jornalistas Davet e Lhomme revelam em preciosos detalhes cinco anos mais tarde. Depois da espiã e do técnico em informática, eles continuam a contar os bastidores da reportagem por meio de outros seis personagens: o funcionário do Fisco, o procurador, o deputado, a fonte, o jornalista e o juiz.
A identidade da fonte, evidentemente, continua mantida em segredo. Foi ela que, do nada, entregou aos jornalistas do Le Monde um pen-drive vermelho com cópia das listas que o técnico de informática tirou do HSBC Private Bank de Genebra. Davet e Lhomme reconhecem que não foram nem um pouco originais, mas deram à fonte o pseudônimo de GP, uma referência à Garganta Profunda, como ficou conhecido o informante dos jornalistas do The Washington Post no caso Watergate, que culminou com a renúncia do presidente americano Richard Nixon em agosto de 1974.
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