Durante um encontro com a imprensa especializada em saúde na última sexta (26), o virologista alemão e prêmio Nobel de Medicina, Harald zur Hausen, afirmou que o fato de o Brasil ter iniciado o seu programa de vacinação contra o vírus HPV apenas em 2014 é decepcionante. “É uma pena o início ter sido tão tardio por aqui”, disse.
O virologista, que recebeu o Nobel de Medicina em 2008 pela identificação da relação do HPV com o câncer de colo do útero, em 1983, veio ao Brasil para participar da Jornada de Patologia promovida pelo A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo. As descobertas de zur Hausen foram um marco para que novas linhas de pesquisa fossem conduzidas e hoje é conhecida a relação direta do vírus HPV como fator causal de câncer de cavidade oral, pênis e ânus.
Com base em seu vasto conhecimento sobre o HPV, o virologista aconselha que no Brasil a vacinação seja também ampliada para os meninos como estratégia de prevenção de outros tipos de câncer que têm o HPV como fator de risco. Aqui, a campanha pelo SUS abrangeu inicialmente um público-alvo composto por meninas de 11 a 13 anos e, no ano seguinte, em 2015, estendeu-se para meninas a partir dos 9 anos até a mesma idade limite. Segundo o cientista, a imunização dos meninos seria uma estratégia para quebrar a cadeia de transmissão. “Meninos imunizados não passariam o vírus a parceiras ou parceiros que não tivessem sido alcançados pelas campanhas”, reforça zur Hausen.
O baixo alcance do papanicolau
Outro gargalo da política de prevenção da doença no País é a ineficiência em torno da realização do exame papanicolau. De acordo com o patologista e diretor de Anatomia Patológica do A.C.Camargo, Fernando Augusto Soares, há falhas quanto ao treinamento dos profissionais responsáveis pela coleta e interpretação do material coletado. “O papanicolau é altamente eficaz desde que bem feito e bem analisado. No Brasil, temos índice em torno de 70% de exame insuficiente para conclusão de um diagnóstico, o que é alarmante. Capacitar os profissionais é uma medida mais do que urgente”, ressalta Soares.
Em uma pesquisa divulgada em 2015, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entrevistou mulheres nas cinco regiões do país sobre a realização do exame papanicolau. O levantamento mostrou que 1 entre 4 mulheres do Norte e Nordeste entre 25 e 64 anos não realizaram o exame nos três anos anteriores à pesquisa (são as taxas mais baixas de papanicolau do país). A apuração evidenciou a necessidade de melhor difusão de informação para a população. Ao serem questionadas, 45% das mulheres que não fizeram o exame declararam não o achar necessário; 20,7% disseram que nunca foram orientadas nesse sentido e 9,7% afirmaram ter vergonha de realizar o papanicolau.
O terceiro tipo mais comum entre as brasileiras
Com mais de 16 mil novos casos esperados para 2016 (dados do Instituto Nacional de Câncer – INCA), o câncer de colo do útero é o terceiro tipo mais comum da doença entre as brasileiras, atrás apenas dos tumores de mama e intestino. A alta incidência reflete os problemas estruturais das estratégias de saúde pública para prevenção. Mundialmente, segundo a OMS, o câncer de colo do útero apresenta as maiores taxas de incidência nas áreas menos desenvolvidas e, no Brasil, este cenário também está evidenciado. Enquanto no Sul e Sudeste do país os tumores de útero representam 5% de todos os cânceres nas mulheres, a taxa sobe para 11,4% no centro-oeste e explode no Nordeste e Norte no país, onde a doença equivale, respectivamente, a 20,5% e 23,1% de todos os casos de câncer que acometem as brasileiras.
A defasagem do país também se dá em relação à vacinação contra os vírus HPV de alto risco. A vacina Gardasil, que imuniza contra os HPVs dos tipos 16 e 18 (responsáveis por cerca de 70% dos casos de câncer do colo de útero) e dos tipos 6 e 11 (que provocam verrugas genitais), entrou para o calendário do SUS em 2014, oito anos após o licenciamento da vacina em mais de 50 países. O vírus HPV é fator causal de mais de 90% dos casos da doença e é indicada para as meninas que ainda não iniciaram a vida sexual e, portanto, não tiveram contato com o vírus. Na Austrália, país pioneiro na implantação do programa de vacinação, são registradas as taxas mais baixas do mundo (5.5 casos para cada 100 mil habitantes), enquanto que a maior prevalência de câncer de colo do útero é registrada no continente africano.
Vacinação é urgente e segura
A vacinação contra os HPVs de alto risco é uma medida não apenas urgente como segura, explica Harald zur Hausen. “Ao contrário do que já foi dito, não há evidências de que cause efeitos colaterais no sistema nervoso. Isso está, na verdade, ligado à Síndrome de Guillain-Barré, uma doença neurológica que acomete determinado número de pessoas em todos os lugares do mundo. Os estudos evidenciam que a Síndrome de Guillain-Barré não é mais frequente em meninas vacinadas do que na população não vacinada”, afirmou durante a coletiva.
A declaração de Harald zur Hausen sobre as vacinas é endereçada ao Ministério Público Federal (MPF) de Uberlândia, que entrou com uma ação pedindo a proibição da campanha de vacinação contra o vírus HPV em todo o país até que sejam realizados estudos que apontem os efeitos colaterais da vacina. Por meio da ação, o MPF solicita a anulação dos atos normativos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que autorizaram a importação, produção, distribuição e comercialização da vacina no país.
O tema entrou em pauta a partir de representação feita pela mãe de uma adolescente que alega, após ter recebido a vacina, ter desenvolvido diferentes sequelas. Na sequência, o MPF consultou um neurocirurgião de Uberlândia, que relatou a ocorrência em outros pacientes que haviam recebido a vacina de quadro clínicos de complicações neurológicas, como esclerose múltipla, mielites, neuromielite ótica, paraplegias, tumor de medula espinhal, lesões oculares, déficit visual, de memória e de aprendizado e também trombose venosa cerebral.
Dentre as críticas reunidas no processo do MPF, diz-se que não há dados confiáveis para afirmar que a vacina contra o HPV é realmente eficaz contra o câncer de colo do útero. O argumento é que, como a doença demora mais de 10 anos, em média, para se manifestar, os estudos que apontam dados favoráveis ao uso do imunizante teriam sido conduzidos por cientistas que receberam honorários do fabricante, em flagrante conflito de interesses.
Sobre estes questionamentos, zur Hausen afirma que nunca recebeu dinheiro de nenhuma das empresas que produzem vacinas. “Além disso, a robustez dos trabalhos deixa-me fortemente convencido de que a vacinação é muito boa”, declarou. Ainda de acordo com o virologista, como ocorre com qualquer vacina, o paciente não está totalmente imune aos efeitos colaterais. No entanto, os estudos mostram que os efeitos da vacina contra o HPV se limitam a pequenas alergias ou leves quadros de dor e vermelhidão no local da aplicação. “Nenhuma doença está ligada à vacinação, com exceção dessas alergias”, acrescentou zur Hausen.
Dentre os trabalhos de maior robustez, o mais recente está publicado na edição de março da revista científica Pediatrics, que se baseou em dados do centro nacional de controle de doenças dos Estados Unidos. Os pesquisadores analisaram a prevalência de HPV em amostras de células cervicais de mulheres entre 14 e 34 anos divididas em dois grupos: era pré-vacina (2003 a 2006) e pós-vacina (2009 a 2012). O estudo concluiu que a partir de 6 anos de introdução da vacina, houve uma diminuição de 64% na prevalência dos quatro tipos de HPV entre as mulheres com idade entre 14 e 19 anos e uma diminuição de 34 % entre aquelas com idade entre 20 e 24 anos.
As infecções e o câncer
O câncer é uma doença multifatorial, causada por agentes físicos (como a exposição excessiva aos raios solares), químicos (como o tabagismo) e biológicos que não se restringem ao vírus HPV e se ampliam para outros vírus, parasitas e bactérias. De acordo com Harald zur Hausen, 21% dos cânceres humanos são diretamente relacionados com infecções.
Segundo o virologista alemão, a maior contribuição para essa relação entre os agentes biológicos e carcinogênese é justamente dos vírus HPV de alto risco e também do vírus da Hepatite B, este último um fator de risco importante para o desenvolvimento de câncer de fígado. Não há tratamento para eliminação destas infecções, mas em ambos os casos a prevenção se dá por vacinação com proteção de longa duração. Ainda na classe de vírus, são fatores de risco as infecções Epstein-Barr humano, Herpesvirus-8, polyomavírus MCPyV, Hepatite C e vírus HTLV-1.
Dentre os demais agentes biológicos apontados pelo Nobel se destaca a bactéria Helicobacter pylori (a H.pylori), que é fator de risco para desenvolvimento de câncer de estômago. Um estudo publicado na renomada revista científica The Lancet Oncology afirma que infecções evitáveis ou tratáveis provocadas por vírus, bactérias ou parasitas estão relacionadas com um sexto dos 12,7 milhões de novos casos de câncer reportados por ano no mundo. O estudo estima ainda que as infecções provocadas pelas hepatites B e C, pelo HPV e pela bactéria estomacal H.pylori estão presentes em cerca de dois milhões de novos casos de câncer por ano, representando 18% do total da incidência de mundial de câncer. Há também evidências de que a contaminação pelo vírus da imunodeficiência humano (HIV), está associado a um risco aumentado para desenvolvimento de sarcoma de kaposi, linfoma não-Hodgkin, mieloma múltiplo, câncer de pulmão e câncer de vulva, pênis, vagina e ânus. Por sua vez, não foi observada uma relação entre este vírus e o desenvolvimento de tumores bastante prevalentes na população brasileira, casos de câncer de mama, próstata e intestino.
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