São muitos os imbróglios que travam debates mais prolíficos sobre a descriminalização e a legalização da cannabis sativa. O desafio começa porque qualquer discussão qualitativa vai precisar ultrapassar os lugares confortáveis do a favor ou contra, da esquerda ou da direita, do conservador ou do moderninho.
Talvez com mais debates sobre o tema, como o que foi realizado na Casa do Saber nesta quarta-feira (2), dê para sair das crenças vinculadas a cada um desses rótulos e chegar mais perto de um objeto real, com implicações reais. Segurança, pobreza, racismo, saúde, moral, autonomia do indivíduo e, no limite, indústria, capitalismo e publicidade. Não há um debate só sobre maconha. Há um debate sobre tudo isso.
A complexidade é tanta que o resultado histórico dessa discussão, infelizmente, tem desembocado no imobilismo. Hoje, a possível descriminalização ou não do consumo da cannabis no Brasil está nas mãos do Supremo Tribunal Federal. O último julgamento foi em setembro de 2015. O terceiro ministro a votar, Teori Zavascki, pediu vista e o processo foi interrompido. É necessário que todos os 11 ministros votem e, por enquanto, não há previsão para a retomada dos julgamentos.
Enquanto isso, fala-se muito, avança-se pouco. Para todos os lados. A pergunta que fica é como avançar e encontrar um ponto em comum para que esse debate possa ser mais proveitoso para todo mundo? Afinal, a percepção inicial é que parece interessante para muitos setores que algumas mudanças sejam colocadas em curso…
Do ponto de vista de quem quer o controle da maconha, já há o uso indiscriminado de variedades de procedência duvidosa, com altas concentrações de substâncias cujos efeitos não foram totalmente mapeados pela ciência.
E, sob o olhar de quem quer a legalização total, a proibição atual promove insegurança, estigmas –e também drogas ruins, misturadas sabe-se-lá-com-o-quê. “Com amônia e xixi”, como frisou o escritor e ator Gregório Duvivier. “Ou xixi de gato”, como emendou a jornalista Barbara Gancia.
Duvivier e Barbara foram dois dos convidados do debate nesta quarta (2). Não era uma discussão qualquer. A iniciativa faz parte do “Comunica que muda”, da agência nova/sb. O projeto busca qualificar a discussão sobre temas polêmicos. Nesta fase, nove universitários foram convidados a criar uma campanha sobre a descriminalização da maconha. Eles devem informar de forma sedutora, porém, embasada; e comunicar de forma direta, mas com o cuidado de não ser simplista.
Difícil, né? Os universitários terão um desafio imenso. Mas, talvez, eles possam começar de um ponto em comum na discussão. Em meio a tantos entretantos e ressalvas, o consenso entre os presentes era: ninguém deveria ser preso pelo uso. Mesmo para quem atesta os malefícios da droga, a pessoa estaria fazendo mal a si própria e ser presa por isso não faz muito sentido.
Pedro Abramovay, advogado que estava entre os convidados, recorreu à história “A Bela Adormecida” para ilustrar esse consenso e o que considera o absurdo do proibicionismo:
“Em determinada altura da história, a rainha foi amaldiçoada por uma fada, que disse que a princesa iria se ferir no dedo de uma roca aos 18 e dormir por muitos anos. E o que o rei e a rainha fazem? Mandam queimar todas as rocas do reino. A princesa nem sequer chegou a conhecer uma roca. Eis que aos 18, ela vai lá e se fere em uma e…. olha só, a maldição se concretiza”, conta Abramovay que, em seguida, provoca: “Não seria mais fácil ter falado pra menina que as rocas existem, mas que ela deveria manter distância por esse e por aquele motivo?”
Longe das preocupações de belxs-adormecidxs e da classe média, outros jovens sentem na pele os efeitos da criminalização. Para além do consumo, há a violência policial perpetrada dentro das favelas contra usuários, como exemplificou outro convidado da mesa, Renê Silva, criador do Voz das Comunidades e morador do Complexo do Alemão (RJ).
“Eu não sou consumidor, mas tenho muitos amigos ao meu redor que são, e eles reclamam o tempo inteiro da discriminação e da violência da polícia. A gente mora numa favela, onde a polícia bate e prende arbitrariamente, e isso faz com que o jovem queira fumar escondido e ir para outros ambientes não tão seguros.”
Também morador do Rio de Janeiro, Gregório Duvivier disse ter sentido um pouco dessa violência… “apenas uma parcela do que o morador da favela, certamente, deve ter passado mais vezes na vida”:
“Quando eu tinha 14 anos, tive a péssima ideia de fumar um baseado no Aterro do Flamengo. E isso é uma má ideia porque é uma área com muito assalto e muita polícia. Você tem que torcer para ser assaltado porque, aí, você perde menos dinheiro. No meu caso, não tive essa sorte. Fui abordado por policiais que torturaram a gente por algumas horas. Fisicamente e psicologicamente. A gente não tinha dinheiro pra pagar pra sair. A gente andava com R$ 2 na carteira. A passagem era R$ 0,70 na época.
Levei um soco no peito. Caí no chão. Eles diziam que a gente ia passar o resto da vida em Bangu, que a gente ia morrer, que iam estuprar a gente, que na cadeia eles estão loucos por bunda de maconheiro. Essas coisas que só a a criatividade da Polícia Militar do Rio de Janeiro pode inventar. Depois de toda essa tortura, os policiais convenceram a gente a ir na casa de um de nós. Seguraram os nossos documentos e esperaram no carro. A gente subiu no apartamento. Os pais desse meu amigo estavam na sala. Não podíamos falar nada do que estava acontecendo. Passamos direto. E aí, no quarto, a gente colocou tudo o que esse meu amigo tinha na mochila, play station, DVDs, o tocador de DVD, dinheiro trocado… e entregamos aos policiais, que riam da nossa cara.”
Um outro efeito da criminalização e da complexidade do tema também resvala para a mídia, que, como disse na mesa a jornalista Barbara Gancia, tende a ser mais conservadora. Barbara conta que há um buraco na imprensa sobre o tema que, por exemplo, não cobre informações sobre os efeitos da maconha no organismo. “A imprensa cobre muito bem o noticioso, como as novas políticas no Uruguai, por exemplo, mas o pai que está desesperado com seu filho não deve saber nem por onde começar.”
Quais são as divergências desse debate?
Mais informação e descriminalização seriam os pontos comuns entre os especialistas nesse debate, mas a partir daí, eles cessam –pelo menos, na mesa presente, bastante diversa. O psiquiatra Valentim Gentil, professor titular de psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, por exemplo, é contra o “liberou geral” e aponta para a necessidade de um debate mais qualitativo sobre o tema, que leve em consideração evidências científicas.
“Há uma desproporção enorme entre o conhecimento disponível e a intenso debate. Se você entra no Google e digita cannabis sativa, marijuana ou maconha são mais de 90 milhões de ocorrências, mas se você vai no PubMed [ferramenta de busca de estudos clínicos) são apenas 22 mil”.
Segundo ele, além dessa desproporção, muitas pessoas usam informações falsas para neutralizar resultados desses poucos estudos já feitos. O médico também manifestou preocupação com o aumento de concentração de THC (uma das substâncias da cannabis ativa, conhecida pelo seu efeito psicotrópico) em algumas variedades da erva. “Há evidências de associação na esquizofrenia em jovens que fazem uso frequente da droga. E, mesmo assim, isso é complexo, porque esquizofrenia não é uma só doença, são várias – o uso frequente da erva seria o gatilho para um gama de psicoses.”
Já Gregório Duvivier frisou que o ponto de vista da ciência não é o único olhar possível sobre a questão. Ele diz que a visão do usuário é privilegiada e deve ser levada em conta.
“Eu falo do ponto de vista do usuário que, pra mim, é um ponto de vista privilegiado. É bom conhecer as coisas de forma empírica. Eu conheço a maconha com o meu próprio corpo, assim como a maioria das drogas. É um lugar privilegiado de se falar porque eu vi a maconha fazendo bem para a minha vida e de muita gente ao meu redor. Eu fumei maconha aos 14 anos pela primeira vez. Escrevo a minha coluna toda a semana, vivo bem. Uso de forma recreativa. Minha vó fumou maconha a primeira vez aos 79 anos. Ela estava ansiosa e ainda bem que encontrou um médico que disse que ela precisava de cannabis mesmo. Ela teve uma velhice maravilhosa, voltou a compor, pulou de asa-delta…”
Outra usuária, Barbara Gancia, diz ter tido uma experiência diferente da de Gregório. Alcoolista em recuperação há quase 9 anos, ela conta que sua dependência era cruzada – ela fazia uso de maconha e, no fim da dependência, de cocaína também. E, embora o vício de Barbara fosse majoritariamente do álcool, ela afirma que a maconha funciona como um gatilho para uma recaída, deixando-a mais fragilizada.
“Eu falo como alguém que consome sala de autoajuda para continuar a minha trajetória de sobriedade e não recair. Sou membro dos Narcóticos Anônimo desde 1988. Não tenho saudade de nada disso. Os 12 passos do AA dizem que você não pode usar nenhuma substância. Eu, se eventualmente vou fumar maconha, tenho que ter muito cuidado. Quando você volta, acontece algo no seu metabolismo, que as células falam…opa, vamos parar de produzir dopamina, e aí fica muito difícil de parar. “
E o diálogo, como fazer? O que você faria?
Em meio a tantas divergências e opiniões, ainda era preciso encontrar uma campanha. Esse foi o desafio proposto pelo debate. Então, para ajudar os universitários a destrinchar o tema, o jornalista Caio Túlio Costa, mediador da mesa, fez uma provocação para os presentes. “Eu quero saber de vocês o que vocês iriam fazer se fossem Ministro das Comunicações no dia da legalização/descriminalização?”
Seguem as respostas:
“Primeiro, eu ia fumar um pra comemorar. E ia dizer que estamos trabalhando para que todos usem drogas melhores”
Gregorio Duvivier, humorista, roteirista e escritor.
“Eu ia explicar a fiscalização do lado da oferta, de como o governo vai fiscalizar tudo isso. Ia divulgar a criação de uma agência e ia citar todos os membros que fazem parte dela.”
Barbara Gancia, colunista do jornal Folha de S. Paulo, atualmente é também uma das apresentadoras do programa Saia Justa, do canal GNT.
“Ia comunicar sobre os efeitos. Ia dizer para não fumar se você tem menos de 21 anos e mais de 45 anos. Ia dizer para não usar altas concentrações. Também divulgaria o seguinte: se você sentiu paranoia ou teve qualquer efeito ruim, não use mais. Você é vulnerável”.
Valentim Gentil, professor de psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP.
“Ia dizer que acabou o liberou geral para todo mundo. E ia frisar que, quem está do lado do controle, não pode estar do lado da não legalização.”
Pedro Abramovay, advogado e ex-Secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e da Secretaria Nacional de Justiça do Governo Federal.
“Eu me preocuparia em informar a polícia e ia comunicar a todos os órgãos para que parem a violência na periferia”
Renê Silva, criador do Voz das Comunidades e morador do Complexo do Alemão.
Mas para além da campanha, o diálogo dá pra avançar?
Talvez o avanço do debate seja o de encontrar um ponto em comum em meio a opiniões divergentes. Digamos que, por exemplo, o psiquiatra Valentin queira o controle do uso por jovens, o advogado Pedro Abramovay queira a descriminalização, o Gregório queira fumar o dele em paz, a Barbara queira parar e o Renê queira segurança.
Em qual cenário daria para contemplar mais ou menos esses anseios, deixando de lado todos os rótulos e lembrando que na democracia nem sempre todo mundo tem o que deseja e que, muitas vezes, só cedendo é que dá para se ter um pouco?
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