Ponto de partida. Cidade de Goiás. Sexta-feira, 9 horas. Caminho pelas ruas de pedra dessa vila histórica listada como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Seu casario colonial simples se expõe sem pudor à luz e ao mormaço.
Eu me propunha a conhecer a cidade sempre com o pensamento nos poemas e livros da escritora e poetisa Cora Coralina (1889-1985) que ali viveu. Sobre essa mulher incomparável, o poeta Carlos Drummond de Andrade deixou uma fala preciosa: “Dá uma alegria na gente saber que no coração do Brasil existe um ser chamado Cora Coralina”. Então, era ela o motivo da minha viagem e foco da matéria que eu pretendia escrever.
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Enquanto me dirijo para sua casa-museu à beira do Rio Vermelho, uma cena me chama a atenção: na pracinha em frente à igreja Nossa Senhora da Boa Morte, sob uma frondosa árvore, várias mulheres de diferentes idades estão sentadas, bordando e jogando conversa fora. Nada demais. Coisas de uma cidade do interior. O que eu não poderia imaginar naquele momento é que, logo a seguir, seria surpreendido por um encadeamento de revelações.
Ponto de encontro. Nove mulheres, nove histórias. Todas entrelaçadas em um mesmo bordado. Na cabeça de Milena Curado, 35 anos, sobravam sonhos. De família quatrocentona da cidade, queria provar sua habilidade nos bordados que aprendera com a mãe Maria e com a avó Vanda, abrindo uma loja de criações. Utilizaria algodão cru, que remete à roupa dos escravos, bordando nele os versos de Cora Coralina. Em pouco tempo, a loja estava bombando e Milena precisava de mais gente para trabalhar. “Onde eu conseguiria mão de obra especializada? Identifiquei que na Agência Prisional da cidade havia uma cela feminina com quatro mulheres”, relembra. Ela viu inclusão social onde para muitos só há restos. Iniciava-se, assim, dois anos antes, o Projeto Cabocla.
Ponto de transformação. Teria de ser tudo bem alinhavado. Oficinas para o ensino qualificado, monitoradas pela mãe e por ela; conscientização profissional, pois não poderiam arcar com atrasos nas encomendas; e dedicação. Mas nada disso seria possível se não obtivessem permissão para entrar na cadeia. Foi quando o jovem diretor da Agência Prisional, Eduardo de Souza Adorno, 28 anos, abriu as portas para o Projeto. “O papel da administração penitenciária mudou. Já não se limita a vigiar os condenados, visa, sobretudo, a capacitá-los para viver em sociedade. Percebi que as ideias de Milena vinham de acordo com as nossas, quando ela entrou e de pronto perguntou: ‘Têm mulheres aqui?’. E me falou de seu projeto”, explica Adorno. E Milena é grata: “Sem o Eduardo não ia conseguir nada. Ele não criou nenhum obstáculo”. Mas faltava agora o mais importante. “Será que elas topariam?” – Topamos! – em uníssono as presidiárias responderam na lata. “E a mil por hora queriam mais detalhes”, recorda Curado.
As famílias das detentas tinham de arcar com suas necessidades básicas, pois o presídio só provia o essencial, ou seja, três refeições diárias. Com o Projeto, passaram a ganhar e, mais, começaram a mandar dinheiro para casa. Sem esse resquício de convivência e sem os afazeres, provavelmente seriam vencidas pelo tédio ou por alguma coisa pior. Não faziam nada, só assistiam à televisão e brigavam umas com as outras, como mais tarde relataram.
Milena não vê sua atividade como doação ou voluntariado, mas como intercâmbio. “Dou a elas uma qualificação, forneço todo o material que elas precisam e pago assim que elas me entregam as peças. Quanto mais produzem, mais recebem.”
O Projeto também foi bem aceito pelo juiz da comarca que, vendo o resultado e a motivação dessas mulheres, reconheceu esse trabalho para remissão de pena. A cada três dias trabalhados, um dia a menos na prisão.
As histórias vão se sucedendo, e com elas meu preconceito voa em estilhaços. Tia (algumas não querem dar o nome e se identificam por apelidos), presa por tráfico, é a mais velha das ex-presidiárias que ainda hoje se reúnem na pracinha, ao menos uma vez por semana, para bordar junto com as companheiras. Ela responde como Cora Coralina, que não gostava de revelar a idade: “Posso dar umas dicas”. E despachada vai falando: “O Projeto já existia quando fui presa, e aprendi com as meninas e com a Milena. Havia muito companheirismo. Eu dependia dele para minha sobrevivência e até hoje dependo desse trabalho, pois consigo uma boa renda.
Marilene, 20 anos, em regime semiaberto, diz que o bordado caiu do céu e com ele sustenta a filha de dois anos. “Gosto de bordar a história da minha cidade. Foi assim que conheci Cora. Lendo seus livros e procurando algum motivo para colocar no bordado. Não conhecia nada da escritora, pois não tive acesso aos seus livros. Hoje… ‘eu sou a menina da rua de pedra… e minha vida é quebrando pedra e plantando flores’. Agora, não quebro, não planto, estou bordando”, brinca a romântica Marilene, recriando alguns versos da poetisa. E demonstra que já leu muitos livros da querida filha vilaboense ao completar: “Cora conta a sua história e ela parece falar da gente”.
Ponto de entusiasmo. De todas as ex-presidiárias reunidas à sombra da árvore, uma me chamou mais a atenção. Tânia Sabino de Oliveira, 32 anos. Demonstrou confiança e autoestima a ponto de dar seu nome completo e não se incomodar com sua publicação. Essa morena bonita, presa, acusada de ter mandado matar o marido e o enteado, é considerada inocente pelo Ministério Público, aguardando julgamento em liberdade, estava em desespero na prisão e vivia tão deprimida que a família começou a esperar pelo pior. “O Projeto foi uma salvação de vida. Eu achava que ia morrer e queria isso, pois tinha muita vergonha. Tinha saído da faculdade, vinha de uma família onde não precisava nem pregar botão e fui presa. Acordava chorando, não havia consolo, pois minhas colegas também estavam com os olhos vermelhos de tristeza. O bordado surgiu para mim como um renascimento. Meu dia, depois disso, era outro junto com as companheiras de cela. Ninguém mais tinha raiva à flor da pele. Havia competição para ver quem fazia melhor, trocávamos ideias quanto às cores e desenhos. Havia camaradagem. Dávamos nosso trabalho a quem mais estava precisando de dinheiro”, assim, Tânia sintetiza seus dias na cadeia durante um ano. Foi por meio do bordado que essa ex-presidiária se reintegrou à sociedade. Seu trabalho é reconhecido pela excelência e hoje, atuando por conta própria, participa de feiras e eventos com seus bordados. E foi mais longe: exerce também sua profissão de terapeuta e dá aulas de bordado para crianças sem inclusão social. Está, como relata, vivendo o melhor tempo de sua vida.
Ponto de espera. De seus bons resultados, o Projeto possibilita o contato humano, a compreensão sensível que nenhum programa governamental, por mais bem planejado e incrementado que seja, poderá dar. E prepara o duro caminho de volta à sociedade. Isso fica evidente quando visitamos a única detenta, naquele momento, na Agência Prisional da cidade: Val, 31 anos, reincidente no tráfico, aguarda julgamento.
Em sua cela recém-pintada de cor rosa forte, ela nos recebe alegre, mas o verdadeiro motivo dessa alegria era rever Milena. Ainda está preparando seu look. Não quer mostrar seu rosto, tem vergonha e se esconde atrás dos cabelos. Tudo está em ordem e limpo em seu quarto 3 m x 3 m, com banheiro incluído. Colchão no piso, roupas empilhadas com capricho, um violão encostado na parede e muita linha e tecidos para serem bordados. “Meu único vício é meu bordado”, garante Val, enquanto pega o violão. Embora apreensiva com o julgamento, ela se diz confiante e demonstra entusiasmo em relação a seu trabalho. “O que me encanta com meus bordados é a oportunidade de sonhar, de juntar dinheiro para rever minha filha de sete anos que mora em outro Estado e não sabe que estou presa. Hoje, arco com seus estudos e envio ainda ‘alguns’ para minha mãe”, afirma Val. Ao nos despedirmos, ela retoma o bordado. Mais um verso de Cora Coralina: “Recria tua vida, sempre, sempre”. Em tempo: no dia 15 de agosto Val recebeu autorização, por bom comportamento, de aguardar a sentença em liberdade.
Ponto partilhado. Com o resultado do Projeto junto às detentas, mulheres de presidiários, e eles próprios, quiseram se incluir no programa de Milena. É o caso de Deosina, 43 anos, e de Devanira, 35 anos, que se mudaram para Goiás, onde ficariam perto de seus maridos. Quanto aos presidiários Volney (hoje em regime semiaberto), Valmir, marido de Deosina, e Tiago, todos três quebraram a pecha de boiola e, como dizem, “bordando de atrevido”, também fazem parte do programa. É quase impossível falar da prisão em tom sereno e indiferente. Corre-se o risco de chocar partidários e adversários de uma estrutura seguramente ineficaz, mas que também parece imprescindível. Que ninguém bote o dedo em riste sem antes conhecê-los melhor. Por fim, aqui fica meu testemunho de que uma viagem pode quebrar preconceitos e recriar o futuro. Eu vi, ninguém me contou.
Ponto final.
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