“Uma novela de bicha”, diz Jean Wyllys sobre Velho Chico

O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ). (Foto: Luiza Sigulem)
O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ). (Foto: Luiza Sigulem)

Realizada há uma semana, no dia 9, a festa de lançamento de Velho Chico, novo folhetim das 21h da Rede Globo, que estreou na segunda-feira (14), foi marcada por polêmica. Em meio à entrevista coletiva, o autor da novela, Benedito Ruy Barbosa, disparou uma declaração bombástica: “Odeio história de bicha. Pode existir, pode aceitar, mas não pode transformar isso em aula para as crianças. Tenho dez netos, quatro bisnetos e tenho um puta orgulho porque são tudo macho pra cacete”, afirmou Benedito.

O depoimento do teledramaturgo, que supervisiona a nova atração global, escrita por sua filha, Edmara Barbosa, e seu neto, Bruno Luperi, causou furor na comunidade LGBT. No entanto, logo após a exibição do primeiro capítulo de Velho Chico o deputado federal Jean Willys (PSOL-RJ), personalidade das mais proeminentes do meio, ponderou a declaração de Benedito e saiu em defesa do trabalho do diretor geral da novela, o também cineasta Luiz Fernando Carvalho. “É uma novela para um público intelectualmente mais exigente e de amplo repertório cultural; e isto se deve menos a Benedito Ruy Barbosa, o autor, e mais a Luiz Fernando Carvalho, diretor artístico”, afirmou o deputado em uma espécie de resenha do primeiro capítulo publicada em sua página pessoal no Facebook.

A trajetória de Luiz Fernando, célebre por adaptações de grandes escritores, como Graciliano Ramos, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Raduan Nassar e Ariano Suassuna, é tema de reportagem da edição de março de Brasileiros, que acaba de chegar às bancas.

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Leia excerto da reportagem O Sertão Volta ao Horário Nobre
Jean Willys foi capa da edição 90 de Brasileiros, de janeiro de 2015, leia a entrevista na íntegra

Leia, a seguir, a íntegra da publicação de Jean Willys (o texto original pode ser lido aqui).     

Uma novela de bicha

A julgar pelo primeiro capítulo, Velho Chico é uma novela para um público cansado do caos urbano e sua (i)mobilidade, novas tecnologias da comunicação e, ao mesmo tempo, nostálgico de uma tradição cultural e seus valores já desfeitos (seja o que a viveu de fato, seja o que, dela, só tem um imaginário tecido pelas lembranças dos pais e as representações da época). Mas Velho Chico também – e principalmente – é uma novela para um público intelectualmente mais exigente e de amplo repertório cultural; e isto se deve menos a Benedito Ruy Barbosa, o autor, e mais a Luiz Fernando Carvalho, diretor artístico.

A história em si, embora não seja uma adaptação, não preza pela originalidade. Há, nela, os ecos da segunda geração do modernismo literário brasileiro, notadamente de Terras do Sem Fim e Seara Vermelha, de Jorge Amado; de Vidas Secas, de Graciliano Ramos; de O Quinze, de Rachel de Queiroz; e de Fogo Morto, de José Lins do Rego. E os diálogos escritos por Edmara Barbosa e Bruno Luperi (respectivamente filha e neto de Benedito Ruy Barbosa) estão longe da riqueza poética e filosófica da fonte em que bebem, mas também não são pobres nem banais: estão acima da média do que é oferecido à audiência da TV aberta.

Contudo, essa história está sendo contada também por um cineasta (pra mim, um artista plástico de cinema) que tem uma sensibilidade e um talento incomuns: Luiz Fernando Carvalho construiu uma novela à altura não do texto que lhe foi entregue, mas, sim, dos fundamentos literários desse texto. E, para tanto, ele foi buscar referências em riquezas equivalentes de outras fontes artísticas: a pintura, a fotografia e o cinema, etapas sucessivas do rio da representação imagética.

Há, nos enquadramentos e disposição dos elementos em cena, citação das pinturas de Carybé e das gravuras de Floriano Teixeira, mas também das fotografais de Pierre Verger. Os planos, explorando a profundidade de campo, e os cortes abruptos, às vezes secos, fazendo-se deliberadamente notar e contribuindo para uma narrativa não-linear nem cronológica, são uma referência à estética do Cinema Novo e suas influências (o Neorrealismo Italiano e Nouvelle Vague) – há, na construção das cenas, muito de Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Cacá Diegues – mas também referência à retomada contemporânea dessa estética, evidente em filmes como Tatuagem, de Hilton Lacerda. A fotografia explora luz e cores quentes, presentes não só no sol e nas feiras livres do sertão da Bahia, mas também na psicodelia do movimento hippie e da Tropicália, que, na novela como na vida, representam uma ameaça à tradição (aliás, a cena em que a empregada, vivida pela cantora e atriz baiana Denise Correia, sopra as sobras da cocaína do patrão, Rodrigo Santoro, como se fossem poeira do tempo é de uma sutil ousadia em tempos tão conservadores e reacionários quanto o que vivemos atualmente).

O elenco principal é um primor. Entre os atores, os destaques vão para Tarcísio Meira e Chico Diaz, assombrosos em termos de interpretação e entrega, com uma experiência típica dos velhos e vigor próprio dos novos. Entre as atrizes, três se destacam de maneira impressionante pelo talento com que apresentaram, em poucas cenas, as nuances psicológicas de suas personagens: Fabiula Nascimento, Cyria Coentro e Selma Egrei (embora Carol Castro esteja em sua melhor performance).

Nota-se a mão de Luiz Fernando Carvalho enriquecendo, com sua direção artística, o trabalho dessas mulheres. A personagem de Selma Egrei, por exemplo, aparece como uma mistura da Lady McBeth de Shakespeare com a Bernarda Alba de García Lorca, amarga e cruel.

Algumas pessoas de repertório cultural e sensibilidade mais estreitos talvez achem que estou “viajando” como os artistas da trupe da cantora Iolanda, mas não estou. Está tudo ali. Como eu pude notar? Ora, eu sou uma bicha de 41 anos; e bichas dessa geração que vieram do Brasil profundo e as bichas dos centros urbanos acima dos 50 anos forjaram suas identidades no diálogo entre a homossexualidade e as artes, pois só nestas e através destas essas gerações de homossexuais podiam experimentar o orgulho de ser quando em todos os outros espaços amargavam a vergonha. Não por acaso, as artes estão cheias de homossexuais. Nesse sentido, posso dizer que “Velho Chico” é uma novela de bicha, ou melhor, uma novela para bichas, para “entendidos”. Pena que Benedito Ruy Barbosa tenha tantos preconceitos em relação a nós que podemos enxergar a riqueza que pode ser feita de suas histórias. Mas Luiz Fernando Carvalho está aí para nos resgatar!

Contudo, tanto para um público cansado quanto para um público exigente, Velho Chico é uma novela para levar esses públicos a montante do rio da vida (o rio de Heráclito, aquele no qual um mesmo homem nunca se banha duas vezes, pois, a cada banho, nem ele nem as águas são os mesmos), o velho rio São Francisco como metáfora da vida que corre como água num leito, ora quente, ora fria; ora apertada, ora frouxa; ora sossegada, ora desinquieta, mas sempre requerendo, de nós, coragem.


Comentários

Uma resposta para ““Uma novela de bicha”, diz Jean Wyllys sobre Velho Chico”

  1. Até que enfim a rede globo mudou um pouco sua temática de telenovelas no horário das 21h…. já estava efadonho e chato assistir novelas repletas de gays e lésbicas. Não sou homofóbico, mas tudo tem limite .

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