Um dia épico de neve fofa

Com o mapa dos Estados Unidos estampado na gravata colorida, o piloto da American Airlines, de cabelos completamente brancos e mais de 30 anos de voo, aparece no corredor do avião. Pega o microfone, normalmente utilizado pelas aeromoças, e anuncia: “Neste avião, temos o prazer de levar a bordo um passageiro que comemora um milhão de milhas. E também 20 anos de casamento. Ele e sua esposa viajam conosco. Parabéns!”.

O clima amigável criado por Mike a 20 mil pés e 30 minutos da aterrissagem, quando os cumes cobertos de neve começavam a despontar na janela, era um prenúncio da atmosfera que prevaleceria no destino da viagem. Park City, a 35 minutos de carro do aeroporto internacional de Salt Lake City, é uma pequena cidade do oeste americano, cercada pelas Montanhas Rochosas (nome da cordilheira), considerada a mais liberal do ultraconservador Estado de Utah (onde George W. Bush conseguiu sua maior vitória na reeleição em 2005). Nesta época do ano, atrai turistas do mundo inteiro, principalmente brasileiros, segundo maior público, de acordo com estatísticas do governo (o primeiro seria o inglês). A razão, além do calor humano de seus anfitriões, seria uma combinação de fatores, começando pela qualidade da neve. A presença de paredões rochosos com 3 mil m de altitude, que barram as correntes frias do Pacífico, e de um imenso lago salgado, que absorve a umidade do ar, resulta em uma neve extremamente fofa, ou powder, como os esquiadores costumam falar. Tão seca e fina que chega a desmanchar como pó no ar. Perfeita, tanto para andar quanto para cair de esqui.
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As estações de esqui na cidade de Park City foram construídas ao longo das Montanhas Rochosas em um trecho batizado pelos índios de Wasatch, que significa “passagem da montanha”. O esqui começou a ser praticado sobre as Wasatch na década de 1960, quando aficionados pelo esporte se aproveitaram das instalações – os chamados shaft elevators – deixadas por antigos mineiros para chegar ao topo das montanhas. Park City floresceu no final do século XIX como um importante polo de extração da prata. Chegou a ter 10 mil habitantes (hoje tem 8 mil). Mas, com o fim da exploração do metal, o lugar entrou em decadência e chegou a ser registrado pelo governo do Estado como “cidade fantasma”, na década de 1950, até os esquiadores chegarem. Em 1963, inauguraram a primeira estação de esqui: Treasure Mountain (Montanha do Tesouro), que mais tarde passaria a se chamar Park City.

As residências – todas de madeira – que haviam sido erguidas pelos mineiros nos anos 1860 foram restauradas e pintadas de diferentes cores (do azul bebê ao bordô), ganhando aspecto de casas de boneca. Hoje, essa região de Park City é chamada de Old Town. Para dar mais charme à cidade, um ônibus disfarçado de bonde (com a mesma “cara” dos trolleys de São Francisco) circula pelos arredores da Main Street, a rua principal onde estão os restaurantes mais badalados, galerias de arte e o teatro que abriga o Sundance, o mais importante festival de cinema independente do mundo, do ator e diretor Robert Redford – que também é dono de uma estação de esqui e restaurante de mesmo nome. Neste ano, o evento deve acontecer entre 20 e 30 de janeiro.

Incomum para regiões de estação de esqui, Park City dispõe de muitas opções de entretenimento – o que seria mais um item de sedução para os turistas brasileiros. Além de casas noturnas – como a Downstairs, que entre seu casting de DJs está a compositora britânica Samantha Ronson, namorada da polêmica atriz Lindsay Lohan -, e o bar No Name, típica atmosfera americana do Velho Oeste “revisitada”, há galerias, museus e livrarias. No melhor estilo das bookstores nova-iorquinas, a Dolly chama a atenção pelo ambiente aconchegante e pela variedade de títulos, que vão de literatura regional e mundial a livros de arte e turismo (há uma área reservada só para eles). Outros pontos de atração dessa livraria são os eventos com autores e os chocolates oferecidos na recepção, “exportados” da loja ao lado, do mesmo dono, a Rocky Mountain, conhecida fábrica de chocolate da região.

Outra tentação para brasileiros em férias – que são conhecidos em Park City pelo gosto que possuem pelas compras – é o Tanger Outlet, um centro comercial com ponta de estoque de 60 grandes marcas, entre elas Nike, Gap, Ralph Lauren e Calvin Klein. As ofertas costumam ser generosas, como tênis da Nike por 40 dólares e camisetas da Gap por 0,97 centavos. Para quem prefere gastar os dólares com eletrônicos, o endereço é outro: Redstone. O centro comercial comporta a loja Best By, a preferida dos amantes de tecnologia.

Buraco da glória
Embora as distrações sejam muitas, a maior concorrente dos prazeres do consumo, da gula e da embriaguez é a neve. Tida como a melhor do mundo para a prática de esportes de inverno pela revista norte-americana Ski Magazine, ela pode ser desfrutada em três estações, cada uma com sua peculiaridade.

Park City, a estação que leva o nome da cidade, é a mais democrática e tem fama de familiar. Aceita esquiadores e snowboarders e conta com uma grande quantidade de pistas azuis, nomenclatura utilizada para indicar grau intermediário de dificuldade. As pistas com sinalização azul apresentam inclinação moderada e apenas alguns trechos mais íngremes. Para quem quer um pouco mais de emoção, há as “duplas azuis”. As pistas nos Estados Unidos são classificadas como verde (iniciante), azul (intermediário) e preta (avançado). Há também as duplas pretas. Já na Europa e na América Latina, existe ainda a vermelha, com grau de dificuldade entre a azul e a preta.

O interessante nessa estação é que há restaurantes entre as pistas que ficam na intersecção entre uma azul e uma preta, por exemplo, permitindo, portanto que pessoas de níveis diferentes se encontrem para um chocolate quente ou uma cerveja. Detalhe: desde julho de 2009, o antigo sistema de clube privativo e requisitos especiais para o consumo de bebidas alcoólicas no Estado de Utah, fundado por mórmons, foram eliminados. Hoje, o consumo é permitido a todas as pessoas maiores de 21 anos.

Os nomes das pistas costumam ser curiosos: Payday (dia de pagamento) trata-se de uma pista azul; já Glory Hole (buraco da glória) é uma preta.

Diferentemente da estação Park City, Deer Valley é exclusiva para esquiadores. Snowboarders não entram. “A razão dessa exclusividade é manter a atmosfera do esqui”, diz Marilyn Smith Stinson, gerente internacional de turismo e viagem do resort. Ela conta que um dos argumentos que sustentam essa exclusividade está relacionado ao barulho das pranchas de snowboard. “O contato da prancha com a neve faz um ruído muito alto comparado com os esquis”, afirma. O silêncio é uma das principais características das estações, em geral. Com ou sem a presença de snowboarders.

A rixa entre as duas “tribos” (se é que podem ser chamadas assim) existe desde o surgimento do snowboard, no final dos anos 1960 nos Estados Unidos – na época, o esporte era chamado de snurfing, contração das palavras snow e surfing (algo como “surfe na neve”). Devido ao maior contato com o solo, o snowboard requer roupas mais resistentes, portanto mais largas e rústicas. Já o esqui, com menos contato, permite um vestuário mais elegante. Mas a distinção entre os dois esportes não se limita às vestimentas; é uma questão quase filosófica. O esqui, por sua sólida história – foi reconhecido como esporte no final do século XIX, embora haja indícios de que seja praticado há mais de quatro mil anos -, teria um perfil mais aristocrático e conservador. Já o jovem snowboard, com origem em esportes tidos como marginais nos anos 1970, como o surfe e o skate, seria mais informal e liberal.

Embora ou talvez por causa dessa exclusividade – não se sabe ao certo -, Deer Valley foi eleita pelo segundo ano consecutivo a melhor estação do mundo pela Ski Magazine. O motivo de tanto prestígio seria o conjunto da obra: lifts (teleféricos) que levam do hotel ao topo da montanha, inclusive a pistas para iniciantes, pratos de alta gastronomia elaborados por chefs de renome internacional em restaurantes do próprio resort e equipe de funcionários (de instrutores de esqui a recepcionistas) que conseguem resolver todos os problemas (em suas respectivas áreas), de acordo com a revista. Além disso, o resort conta com hotéis e condomínios de luxo “pé na neve”. O que significa ter lifts à porta de casa e vista para a imensidão branca.

Já no The Canyons, terceira estação de esqui da cidade, há lifts que levam o esquiador – ou o snowboarder, aqui bem-vindo – diretamente do estacionamento ao topo da montanha. Mas a grande novidade, inaugurada nesta temporada, é a orange-bubbled lift, cadeirinhas cobertas – ou seja, com proteção contra vento e neve – com assento aquecido, primeiras da América do Norte. O orange refere-se à sua cor, laranja, que pode ser vista de longe, muito longe.

Ligado a essa estação está o Waldorf Astoria, o mítico hotel norte-americano que abriu neste inverno sua filial em Park City (apesar de a estação ainda estar fechada nas primeiras semanas da temporada, o hotel já contava com um grande número de hóspedes. O Waldorf Astoria – que em sua matriz em Nova York é conhecido por receber astros de Hollywood e líderes mundiais – pode ser um “programa de domingo” para turistas na cidade. O restaurante Spruce, do hotel, oferece um sofisticado brunch (35 dólares por pessoa) e dispõe de um SPA com diversos tipos de massagens, muito procurado no day after – dia seguinte ao esqui, quando o corpo todo dói.

Onda verde
A comunicação entre as três diferentes estações de esqui de Park City é feita por meio de um ônibus gratuito e ecologicamente correto – movido a biodiesel. A mentalidade “verde” predomina no local. Os lifts são movidos a energia limpa (eólica) e as máquinas de neve – segundo Deborah Lewis, diretora dos serviços para o turista de Park City, equipamentos que contribuem para colocar “mais cobertura no bolo” – utilizam água reaproveitada.

O centro olímpico – os Jogos de Inverno foram realizados em 2002 na cidade – fica um pouco afastado da Old Town, a cerca de 20 minutos da Main Street, pois as instalações foram construídas em terrenos cedidos pelo governo. A Olimpíada de Inverno deixou um belo legado: o museu do esqui, totalmente interativo, onde é possível entender as modalidades por meio de máquinas de pinball e sentir a adrenalina de descer pirambeiras em vídeo projetado em uma grande tela, e a pista de bobsled, esporte em que quatro pessoas percorrem dentro de uma espécie de trenó uma estreita pista de gelo em alta velocidade. Na temporada de férias (dezembro a março), a pista fica aberta ao público. Isso significa que por cerca de 200 dólares dá para ser uma dessas quatro pessoas – e passar por uma experiência olímpica. A diversão – 1.500 m de pista percorridos a 120 km/h – dura 60 segundos.

Muita neve, pouco frio
Para aproveitar a abundante neve de Park City, que geralmente não vem acompanhada de vento (a média da temperatura fica entre 2 ºC e 0 ºC, o que é considerada razoável para esquiar), há muitas alternativas de diversão ao ar livre, como ringue de patinação sobre lago congelado, montanha russa ao longo da montanha nevada e snowtubbing, espécie de tobogã. Mas quem já tomou gosto pelo esqui e ou pelo snowboard e não pretende sair das pistas deve reservar energia, pois algumas delas ficam abertas até as 21 horas. A atmosfera remete às noites iluminadas de surfe no Arpoador.

Pode parecer exagero, mas a maioria que se arrisca pelo esporte tende a se tornar adicto. Prova disso são alguns personagens que povoam as montanhas de Park City, como George Sees. Conhecido como Jr. ou Sundance, ele faz um trabalho voluntário como guia de montanha – aquele que leva esquiadores e snowboarders de nível avançado para conhecer as melhores pistas – desde que se aposentou. Hoje com 64 anos, Jr., que nasceu em Budapeste (Hungria) e se naturalizou americano, era piloto de avião e atuou na Guerra do Vietnã. “Eu pilotava um caça F-4 Phantom a partir de um porta-aviões. Foi uma experiência como nenhuma outra que já tive, nem antes nem depois da guerra”, diz. Ele conta que escolheu fazer um trabalho voluntário em Park City porque gosta de viver nas montanhas. “Este é meu terceiro ano. Adoro esquiar aqui”, afirma. Assim como Jr., “sir” Stein Eriksen também pode ser visto nas colinas de Wasatch. Atual diretor de esqui de Deer Valley, Eriksen é uma lenda do esporte, considerado o pai do esqui livre (acrobático). Aos 83 anos, o medalhista de ouro olímpico esquia por prazer. Em Park City, não é preciso muito para usar a expressão, comum entre esquiadores e snowboarders, de que “o dia foi épico”. Mesmo se não houver a tão esperada neve fofa.


Deborah Giannini viajou a convite da American Airlines SkiClub

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