Não foram poucos os tocados (ou confrontados?) pelo belíssimo Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert. Ao mesmo tempo que é carregado de arcaísmos, traz atualidade e “tipos” brasileiros que fazem de nós quem somos. Mundo Cão, de Marcos Jorge, talvez não traga a mesma sensibilidade do longa estrelado por Regina Casé – e nem pretende. O diretor explica: “Queria fazer um filme sobre a violência, mas sem precisar mostrar a violência”. Conseguiu.
E, mesmo com tantas diferenças, os dois filmes, o de Anna e o de Jorge, captam, cada um a seu modo, traços tipicamente brasileiros.
A começar pelas personagens de Mundo Cão, em cartaz nos cinemas. Tanto o protagonista quanto o antagonista são negros. Lázaro Ramos interpreta o ex-policial civil Nenê, que vive de negócios suspeitos e cria cachorros grandes e ferozes (das raças fila e rottweiler), enquanto Babu Santana dá vida a Santana, um laçador de cães que trabalha no Centro de Controle de Zoonoses e tem família, mulher (branca e evangélica, vivida por Adriana Esteves) e dois filhos.
O cenário é um bairro periférico de São Paulo. Nenê e Santana são de origem humilde e cada um deles experimenta ascensão social na vida. Negros, bairros periféricos, famílias evangélicas de classe média, um perfeito retrato da massa popular brasileira. Mas não para por aí. O futebol está bem retratado no filme como uma das alegria de Nenê e Santana.
A cor escura é recorrente, seja a cor da pele das personagens, seja a da pelagem dos cachorros e de alguns ambientes. A falta de luz, interna ou externa, pode despertar no ser humano uma violência potente, capaz de coisas inimagináveis. As paixões, se conduzidas de forma desenfreada, também geram essa força. A cor da pele idem – os negros são alvos constantes de violência apenas por serem negros.
O filme de Marcos Jorge contempla com maestria todas essas chaves: a escuridão, a negritude, as paixões e a violência. É um filme que apresenta um Brasil reformulado. Materialmente mais bem provido, espiritualmente mais abençoado por palavras evangélicas e mais escolarizado. Por baixo dessa nova fachada, no entanto, ainda somos os mesmos. Perfeitamente brasileiros.
Deixe um comentário