“A vingança sempre recai na política de imigração”, diz Camila Issa

A psicóloga Camila Issa. Foto: Luiza Sigulem
A psicóloga Camila Issa. Foto: Luiza Sigulem

Sobrevivente dos atentados terroristas que assombraram Paris na noite de 13 de novembro de 2015, a psicóloga paulistana Camila Issa voltou em definitivo ao Brasil, no dia 5 deste mês, depois de quase quatro meses de tratamento e oito procedimentos cirúrgicos para recompor a mão esquerda. Camila residia em Paris, desde agosto de 2014. Na capital francesa, cursava um mestrado de Psicologia e Política na Université Paris Diderot – Sorbonne Cité. Sua pesquisa acadêmica, que será concluída no Brasil, tem como tema o drama dos refugiados.

Durante um jantar com amigos no restaurante Le Petit Cambodje, a psicóloga foi atingida por dois dos diversos tiros deflagrados por terroristas do Estado Islâmico. Naquela sexta-feira, além do restaurante, outros dois atentados, no Stade de France e na casa de shows Bataclan, deixaram um saldo de 130 mortos e mais de 350 feridos.

Para Camila, o alento de voltar ao Brasil, poder reencontrar familiares e amigos teve, no entanto, sabor de anticlímax pela constatação de que o País também se encontra em um crescente racha social deflagrado por questões políticas. Segundo ela, essa divisão é ambiente fértil para a impossibilidade de coexistência pacífica que, na manhã desta terça-feira (22), fez novas vítimas na Bélgica, com os atentados em Bruxelas, que deixaram 31 mortos e 220 feridos, novamente reivindicados pelo Estado Islâmico,.

Leia a seguir a entrevista exclusiva de Camila Issa à Brasileiros.           

Brasileiros – Depois do ataque ao Charlie Hebdo, em janeiro de 2015, você temia que Paris fosse alvo de novos atentados?
Camila Issa – Cheguei à cidade um pouco antes, em agosto de 2014, e pude perceber que as coisas mudaram muito depois do ataque ao Charlie Hebdo. Desde então, passou a haver um clima de medo nas ruas. Minha universidade, por exemplo, passou a fazer revistas diárias nos alunos e começamos a ver muitos militares armados na rua. Havia todo esse ambiente de apreensão, mas, para a maioria das pessoas, a vida continuava. Talvez por estar mais perto da questão dos refugiados, eu tinha uma preocupação maior e sabia que novos atentados eram iminentes na Europa. Algo que estava no ar.

Que lembranças você tem daquela noite?
Eu tinha saído para jantar com um amigo francês e uma amiga brasileira que estavam com outros amigos, todos brasileiros, que conheci naquele dia. Estávamos terminando o jantar, íamos pedir a conta para, depois, ir a algum bar. Eu tinha combinado de ir embora cedo, porque participaria de um congresso no dia seguinte, mas queria tomar um último drink antes de ir para casa dormir. Era noite de sexta-feira, minha semana tinha sido de muito trabalho e pensei: “Vou sair, pois mereço tomar uma cerveja com os amigos”. Quando começaram os tiros, foi tudo muito rápido. Tumulto, pessoas correndo, coisas sendo quebradas sob as mesas… Logo senti uma coisa quente no meu braço. Vi muito sangue e pessoas atingidas ao meu redor. Estávamos do lado de fora e tentei rastejar até o interior para me proteger, mas percebi que seria inútil ir para dentro do restaurante porque ele era todo de vidro. Tomei outro tiro na mão e senti muita dor. Foi então que deitei e fechei os olhos para fingir-me de morta. Ouvi novos tiros e pensei: “Ainda tenho tanta coisa para viver e fazer… Não acredito que isso está acontecendo comigo, não acredito que estou morrendo”.

Você ficou consciente durante todo o ataque?
Fiquei consciente até a chegada ao hospital. A polícia chegou assim que os tiros pararam, mas eu e outro brasileiro (o arquiteto Gabriel Sepe, que foi atingido por três tiros, e também sobreviveu) tivemos de enfrentar longa espera até a chegada ao hospital, porque havia centenas de feridos e o atendimento era organizado por ordem de gravidade. Tomei dois tiros, nenhum em órgão vital, mas também tinha de ser socorrida na hora.

E a demora foi de quanto tempo?
Não sei precisar, mas meus amigos dizem que durou pouco mais de uma hora. Fiquei três dias na UTI. Quando saí desse estado de gravidade fui transferida para um hospital especializado em mãos. Fui internada por mais de 40 dias e tive de passar por uma série de cirurgias. Estou indo agora para a nona operação, mas decidi voltar para o Brasil e concluir meu tratamento em casa.  

E como fica seu mestrado?
Não quero mais morar em Paris. Nos três meses que fiquei por lá depois do atentado, senti muito medo. Decidi fazer um acordo com a USP para concluir o mestrado por aqui. Voltarei a Paris apenas para fazer a defesa da dissertação. Tive de pedir um prazo de dois anos para as duas faculdades, porque os médicos afirmam que precisarei, no mínimo, de um ano de afastamento total do trabalho para as sessões diárias de fisioterapia e, eventuais, novas intervenções cirúrgicas.

Do ponto de vista de quem sobreviveu a um ataque, o que pensa sobre a política europeia de combate ao terrorismo?
É um problema muito complexo e acho que as consequências são sempre piores para a comunidade muçulmana que vive na Europa. A vingança sempre recai na política de imigração e no tratamento aos refugiados. Instaura-se o medo crescente, o clima de horror e, a partir daí, vem o aumento da xenofobia e do racismo, hoje, dois dos principais problemas da Europa.

Esses problemas parecem ainda mais insolúveis depois dos ataques de novembro?
Sim, porque os lugares que foram atacados eram frequentados por universitários e pessoas que criticavam e colocavam em xeque a atual política do governo da França, de guerra ao terror. Algo que, para mim, vítima dos atentados, não resolve, não tem eficácia. Não é bombardeando a Síria no dia seguinte a um ataque que questões tão complexas serão resolvidas. Fico muito triste pela humanidade. Não tenho raiva de ninguém por causa do que aconteceu comigo. O que sinto é uma tristeza e um lamento profundo por ver o mundo chegar a esse ponto. Um das principais causas do crescimento do terror na Europa é justamente a negação da identidade. Os filhos dos imigrantes têm pouco espaço dentro de uma sociedade europeia branca. Não consigo ver uma luz no fim do túnel, porque as respostas são sempre bélicas. A ideia é sempre responder violentamente à altura.

Como tem sido o retorno ao Brasil em meio à atual crise política?  
Tomei um susto quando cheguei aqui. Nas redes sociais, eu já acompanhava o que vem acontecendo no Brasil, mas fui surpreendida com a atmosfera de violência que há hoje no País. Achei que quando chegasse aqui teria um pouco de calmaria, mas, pelo contrário, estou com muito medo de tudo que está acontecendo. Acho que quando anulamos o outro, quando negamos a possibilidade de conviver com o outro sem que ele possa divergir, sem que ele possa ter pensamentos diferentes do nosso, a democracia fica completamente ameaçada. Hoje, esta ameaça está visível nas ruas. Essa violência de discurso é muito perigosa. O momento é de respirar para tentar analisar o que, de fato, está acontecendo e tomar muito cuidado pra não entrar nesse jogo, porque estamos intoxicados.

Em um texto publicado no Facebook, exatos dois meses após o atentado, você escreveu que “as guerras não são nossas, mas os problemas são”. O que fazer diante dessa constatação?
A primeira coisa é desintoxicar-se para poder buscar espaços de respiro e construir diálogos. O mal, se é que podemos chamá-lo assim, só é possível quando a gente não tem espaços de oxigenação do pensamento, quando tudo fica paralisado. É fundamental ter a compreensão da responsabilidade que temos sobre o que acontece no mundo.

O que mudou em você desde o atentado?   
Antes dele, meu comprometimento era buscar recursos na Europa para tratar a questão dos refugiados e da imigração no Brasil, um problema crescente em nosso País que, no entanto, dispõe de poucos recursos teóricos e práticos para lidar com o drama dessas pessoas. A experiência que passei foi horrível, traumática, mas ela, ao mesmo tempo, me deu recursos para poder ajudar outras pessoas que passaram pelo mesmo, para poder fazer com que elas lidem com seus traumas e possam superá-los.


Comentários

Uma resposta para ““A vingança sempre recai na política de imigração”, diz Camila Issa”

  1. Muito orgulhoso diante de tamanha clareza de raciocínio!

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