Um bunker pós-moderno na ilha de Svalbard, na desolação gelada do Ártico norueguês, abriga a Reserva Mundial de Sementes, uma espécie de arca de Noé da diversidade genética agrícola para ser usada em caso de desastre climático e outros perigos. A única nação que até hoje pediu acesso ao banco foi a Síria. Sua própria reserva, na cidade de Alepo, com variedades de trigo, fava, lentilha e grão-de-bico, está ameaçada pela guerra civil que devasta o país.
Do outro lado do planeta, ao pé do Himalaia, em Shillong – capital do estado indiano de Megalaia, no extremo nordeste da Índia, perto do reino do Butão –, o episódio foi lembrado no fim do ano passado no Terra Madre Indígena, um evento do movimento Slow Food. Com o apoio de órgãos da ONU, como a FAO e o Ifad, juntaram-se lá quase 600 delegados dos cinco continentes, entre eles acadêmicos, ONGs ambientalistas e representantes de 80 tribos de 50 países. O propósito era celebrar o conhecimento tradicional dos indígenas e suas práticas sustentáveis como a melhor defesa contra a escassez de comida, danos à natureza e riscos ao bem-estar coletivo.
“O alimento exprime a história, a cultura e a espiritualidade de um povo”, disse Winona LaDuke na palestra inaugural. Economista por Harvard, duas vezes candidata à vice-presidência dos Estados Unidos na chapa do ativista Ralph Nader, Winona é nativa americana da tribo anishinaabeg. Carismática, transbordante de energia e muito atraente aos 56 anos, ela usava um traje étnico bordado e com franjas ao pregar na tribuna contra a agricultura transgênica. Com um punhado de arroz selvagem nas mãos, descreveu o esforço para defender o alimento ancestral da sua tribo da contaminação com sementes modificadas geneticamente. Numa narrativa com pitadas de poesia, contou como as sementes esperam pacientemente no fundo dos alagados até ter condições para emergir, alimentando seu povo, que por sua vez protege as águas onde cresce o arroz.
Ao lado de colegas indígenas de países tão diversos quanto Quênia, Mongólia e Brasil, Winona passou quatro dias em workshops e experiências gastronômicas para celebrar a segurança alimentar do futuro, com base em princípios como o prazer de comer produtos locais, preparados segundo a tradição de cada região.
“Essa é uma lagarta do tipo mopane”, diz o chef Joel Basumatari, oriundo da Nagalandia, região próxima a Shillong, apontando para a lagartinha gorducha e rosada no prato. “Na nossa terra, é um refinamento culinário, uma espécie de caviar dos insetos: nos mercados, um pacotinho de 200 gramas chega a custar o equivalente a US$ 30.” Para os indígenas naga, custam nada, pois eles simplesmente as recolhem nas árvores chamadas mopanes, suas hospedeiras.
Como outros insetos, as mopanes são um aglomerado de proteína, fibras e outros nutrientes valiosos. Apesar do entusiasmo do chef Basumatari, Winona LaDuke não provou da iguaria, e menos ainda este repórter, que, no entanto, se animou, em outras ocasiões, a provar carne de cachorro na Coreia do Norte e olho de bode e fritada de tanajuras no Nordeste brasileiro. A exibição termina com um prato de outros insetos populares no interior da Índia, como uma aranha comestível, gafanhotos crocantes, abelhas e larvas de bambu. Os acompanhamentos típicos são mais comuns e apetitosos: batata-doce, tomate-de-árvore e brotos de bambu.
O arroz é o alimento de mais da metade da população da Terra – só não é mais disseminado que o milho e o trigo. Entre as experiências virtuosas aplaudidas em Shillong, uma veio das montanhas de Kalinga, nas Filipinas. Lamen Gonnay, a líder de uma cooperativa local criada para combater o uso de produtos químicos, contou como a volta a práticas indígenas tradicionais para produzir arroz orgânico em terraços cavados na montanha fez a produção aumentar. Isso permitiu a exportação de 13 toneladas métricas para os EUA no ano passado. Melhor ainda, com a rentável certificação de que se trata de “autêntico arroz ecológico de produção indígena”.
Outro hino ao arroz foi apresentado por um colega e compatriota de Winona LaDuke, o chef de cozinha Sean Sherman, da etnia oglala lakota, estudioso e divulgador da cozinha nativa pré-colonial americana. Com uma próspera empresa de catering estabelecida em Minnesota, chamada The Sioux Chef, Sherman pôs a mão na massa e cozinhou para convidados uma espécie rara de arroz selvagem chamado pelos indígenas de
“manoomin”. Tem um curioso sabor defumado, em contraste com o espesso molho feito de mirtilo, maçã e açúcar de bordo que o acompanha.
A realização desse animado psicodrama alimentar na Índia é oportuna. A Índia, expoente dos BRICs, é uma potência nuclear e uma democracia vigorosa, capaz de mandar um satélite para Marte. Mas, segundo o Relatório Global de Nutrição de 2015, feito em conjunto pela OMS e pela FAO, mais da metade das crianças de Uttar Pradesh, estado com população equivalente à do Brasil, é raquítica. Por falta de alimentação adequada, elas estão condenadas ao nanismo, ao déficit cognitivo e à miséria. Já no estado de Megalaia, a população, de aspecto mais mongol que hindu, grande parte convertida por missionários católicos, parece especialmente saudável e bem alimentada. A fertilidade da região e práticas agrícolas ancestrais garantem boas colheitas. De acordo com Pius Ranee, da etnia khasi e líder do Slow Food no nordeste da Índia, o que ameaça a população lá é a fuga dos jovens para as cidades. “Em busca de realização profissional, eles se desconectam da sua herança cultural. Mas é difícil assimilar o conhecimento alheio quando você abandona o seu próprio conhecimento”, disse.
O testemunho dos indígenas brasileiros em Shillong aponta na direção oposta: casos de sucesso baseados no respeito à própria cultura. Eudes Lopes Batista, graduado em Geografia e tuxaua (cacique) de uma comunidade sateré-mawé perto de Parintins, no Amazonas, administra uma cooperativa que começou produzindo 20 quilos de guaraná em pó há alguns anos. Agora produz entre seis e sete toneladas, 90% exportadas para o mercado europeu. Na Itália, o guaraná indígena é vendido como “il viagra naturale dell’Amazonia”. Outros projetos da grife sateré-mawé são o manejo das deliciosas tartaruguinhas conhecidas como “pé de pincha”, a produção de mel de abelhas melíponas (sem ferrão) e produtos medicinais, como o óleo de copaíba, antibiótico natural, e o óleo de andiroba, repelente eficaz que também ameniza dores e inchaços. A cooperativa de Eudes foi a primeira brasileira inscrita na rede mundial do Comércio Justo, o que o tem levado com frequência a viajar para feiras internacionais na África e na Europa.
O mineiro Joel Gonçalves de Oliveira, professor de Geografia e História conhecido como Joel Xakriabá ou Guahutã (“gavião preto”) na sua tribo de São João das Missões, em Minas Gerais, andou de avião pela primeira vez para fazer o trajeto de 30 horas até a Índia. O principal projeto da sua associação xakriabá da aldeia Barreiro Preto é de segurança alimentar, por meio de um banco de sementes. O banco é acessível a todos os que querem fazer uma roça de milho, feijão, abóbora, mandioca ou batata roxa, e costuma ter inadimplência zero. Mas os xakriabá são reconhecidos também por projetos de gestão territorial indígena e de extrativismo (pequi do cerrado, embu, cajuzinho) e de cozinha tradicional xakriabá (feijão catador com farinha de mandioca e torresmo, canjiquinha com feijão e abóbora, couve e coentro).
A juruna paraense Marineide Camizão, filha e neta de reputados curandeiros, lembra-se da primeira Coca-Cola, da primeira bolacha e do primeiro sapato. Tudo aconteceu no mesmo dia, por obra e graça da comitiva do presidente Garrastazu Médici, quando ela tinha 11 anos, na inauguração da rodovia Transamazônica, em 1973. Hoje viúva e mãe de um topógrafo e um estudante de Direito, Marineide é cozinheira de mão cheia na aldeia Boavista, entre Altamira e Vitória do Xingu, no Pará. Tem participado de discussões sobre segurança alimentar no Brasil, mas à Índia foi convidada depois que seu filho mais novo, Amaury, que a acompanhou, colocou no Facebook sua receita de farinha de banana. Marineide quase perdeu a viagem a Shillong porque não tinha dinheiro para a taxa do passaporte, mas, uma vez lá, brilhou.
O gran finale de Shillong foram as visitas às aldeias khasi da região, com direito a almoço com os indígenas e danças tradicionais, e um festival gastronômico multiétnico aberto à população. Nele, havia desde comida da etnia buriati do lago Baikal, na Rússia, até acepipes dos pigmeus de Uganda. A juruna Marineide cozinhou em dobradinha com um jovem chef hindu de origem khasi, Artet Kharsati: ele preparou carne de cordeiro com especiarias picantes indianas e verduras locais, enquanto Marineide fez um típico grolado amazonense (massa puba cozida com castanhas trituradas e manteiga), tapioquinhas e a sobremesa que logo se esgotou, mingau de macaxeira.
Alguns dos pratos provados no festival poderiam entrar num hipotético guia Michelin Slow Food: peixe defumado com arroz indígena, carne de porco defumada e cozida em folha de bananeira, tudo banhado por abundante vinho de arroz em copos de bambu. Para quem não dispensa sobremesas, bastava uma colher do raríssimo mel produzido pelos indígenas que vivem nas montanhas Ghast Ocidentais, que correm em paralelo com o litoral indiano do Mar da Arábia, biosfera na lista do patrimônio da Unesco. A base dessa preciosa commodity local é um arbusto chamado kuringi, que floresce só uma vez a cada 12 anos. São flores azuis, que parecem descer em ondas pelas encostas da cordilheira. O sabor do mel lembra melaço, mas muito mais suave, e sua cor é bem mais escura, quase preta. Delicioso.
Rebeldia séria
Esse espírito festivo de congraçamento está no DNA do Slow Food, desde o episódio que lhe deu origem. Em 1986, quando o McDonald’s anunciou que abriria sua primeira loja na Itália ao lado das escadarias barrocas da Piazza di Spagna, em Roma, o jornalista Carlo Petrini – a partir de então capo incontestado do movimento – e um grupo de colegas, amigos e intelectuais, veteranos de 1968, se rebelaram. No dia da inauguração, instalaram mesas na praça diante da lanchonete e serviram aos passantes pratos de autêntica pastasciutta romana, acompanhada de vinho branco popular, mas genuíno de Castel Gandolfo.
Ao ser formalmente constituído como associação, três anos depois, em resposta à difusão do fast food e outros hábitos frenéticos da nossa era, o Slow Food levantou a bandeira tipicamente italiana do direito ao prazer de comer e do convívio inteligente em torno da boa mesa e do bom vinho. A suma teológica do movimento, hoje presente em 160 países e com mais de um milhão de associados, é a defesa do alimento bom, limpo e justo. Ou seja, comida gostosa, não modificada geneticamente e com preço acessível, mas capaz de remunerar adequadamente os produtores.
“O projeto Terra Madre, criado há dez anos, e depois o Terra Madre Indígena fizeram o Slow Food mudar de pele”, disse Petrini à Brasileiros, em Shillong. Na prática, ao criar e reunir periodicamente uma vasta rede de produtores de alimentos que defendem a agricultura, a pesca e a pecuária sustentáveis e a biodiversidade, o movimento perdeu sua imagem inicial radical-chique e ganhou consistência. “A biodiversidade não é opção, é o seguro para a nossa sobrevivência no planeta. E quem garante a biodiversidade são os pequenos produtores, não as multinacionais”, diz Petrini. “Se não valorizarmos o trabalho das mulheres no campo e o patrimônio alimentar dos indígenas, não se pode falar de sustentabilidade e é melhor começar a construir a arca, antes que chegue o dilúvio.”
Já há 35 mil brasileiros participando do Slow Food, segundo Georges Schnyder, publisher da revista Prazeres da Mesa e presidente da Associação Slow Food Brasil, braço institucional do movimento. Muitos fazem parte das chamadas Comunidades do Alimento, que reúnem produtores artesanais – de queijos da Serra da Canastra, em Minas Gerais, e de embutidos de Santa Catarina, por exemplo – e os conectam com o mercado consumidor. Outros militam na Arca do Gosto, projeto que listou até agora, no mundo, mais de duas mil espécies vegetais ou animais sob risco de extinção. Em São Paulo, há pelo menos 15 restaurantes servindo pratos com produtos na lista da Arca, entre eles Brasil a Gosto, da chef Ana Luiza Trajano, Lá da Venda, da chef Heloisa Bacellar, e Espaço Zym, da chef Claudia Mattos. Claudia oferece, por R$ 38, almoço com brownie salgado de babaçu e taioba. Além do babaçu, meia centena de outros produtos foi colocada na arca brasileira, entre eles a fruta-símbolo da Mata Atlântica, o cambuci. “Os valores do Slow Food são a alternativa ao modelo alimentar dos países desenvolvidos, baseado em agricultura intensiva e produtos industrializados”, diz Schnyder. “Já está demonstrado que esse modelo não é bom, nem limpo, nem justo.”
O nosso bunker
Há alguns anos, os índios krahô, da região do rio Tocantins, passaram a cultivar milho com sementes melhoradas fornecidas pelo governo federal. Mas deu errado: em vez de mais milho, passaram a produzir menos, porque a nova espécie, teoricamente mais produtiva, era também mais exigente no seu cultivo. Na crise da escassez, os índios mais antigos se lembraram de que alguns pesquisadores tinham coletado amostras das sementes tradicionais da tribo para conservar em “geladeiras”. Foi quando um profissional da Funai procurou a Embrapa para saber se essas amostras estavam nas câmaras frias de conservação da empresa. Os índios foram até a Embrapa e identificaram suas sementes. Levaram uma parte e, no ano seguinte, trouxeram sacos com grande quantidade de milho, certos de que seus netos, em caso de necessidade, terão onde resgatar novamente suas sementes. Essa história, contada por Juliano Pádua, curador da coleção de base da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, é um bom exemplo da importância da conservação para a segurança alimentar.
A Embrapa mantém no Brasil 134 bancos que conservam 700 espécies vegetais. Universidades e organizações estaduais de pesquisa agropecuária mantêm outros, menores, ao lado de pequenos bancos comunitários espalhados pelo País. O último relatório da FAO sobre recursos genéticos diz que, no Brasil, a Embrapa detém 50% do germoplasma conservado e outras instituições, os outros 50%. As instituições de pesquisa buscam conservar não só as variedades tradicionais e obsoletas comercialmente, mas também os parentes silvestres das espécies cultivadas. Esses parentes são plantas não domesticadas, muito rústicas, com baixíssima produção, mas que podem conter no seu genoma genes que conferem características de grande importância, como resistência a pragas e doenças e valor nutricional. Essas espécies podem contribuir para a inserção de características importantes do ponto de vista agronômico às espécies já melhoradas. Seria como fazer um upgrade nas variedades comerciais. Já os bancos comunitários conservam sementes de variedades locais que são cultivadas há várias gerações, inclusive por comunidades indígenas.
A chamada coleção de base da Embrapa, em forma de sementes, é conservada a -20º. Outras espécies são mantidas vivas e alimentadas em tubos de ensaio. E está sendo implantada a coleção criogênica, com gemas, borbulhas e outros materiais propagativos conservados em nitrogênio líquido a -180°C. Com essas três tecnologias, pode-se, potencialmente, conservar qualquer espécie vegetal, privilégio hoje .
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