Na arte como na vida, há controvérsias

"A Democracia é divertida" - obra de Joseph Beuys
“A Democracia é divertida” – obra de Joseph Beuys

“A democracia é divertida”. Foi o que escreveu, à mão, o icônico artista Joseph Beuys na fotografia que o retrata caminhando tranquilamente em meio a olhares atentos de policiais. A imagem captura o momento em que o artista e professor deixava a sala da reitoria da Staatliche Kunstakademie, em Dusseldorf, na Alemanha, em 1972, após a intervenção policial que o expulsou, juntamente com seus estudantes, do local que haviam ocupado para protestar contra uma política que visava a limitar o acesso aos cursos de Belas Artes.  

A foto está em exposição na Galeria Bergamin & Gomide, na mostra sugestivamente intitulada Nada a Ver com Arte,  que relembra a obra do artista, que afirmava que “tudo que existe sob o sol é arte” e que “todo homem é um artista”, atribuindo caráter altamente democratizante à atividade artística. Em seu texto curatorial, Jacopo Crivelli Visconti,  aponta para uma interessante coincidência: exatos 30 anos depois da morte do artista, em 23 de janeiro de 1986,  os últimos alunos que se mobilizaram contra o plano de reestruturação da rede de ensino, no Estado de São Paulo, deixavam as escolas, após uma ocupação de quase dois meses. Embora seja provável que os estudantes brasileiros não tivessem conhecimento da atuação, ou mesmo da existência, do artista alemão, a casualidade faz pensar o quão atual ainda é o legado do artista, e o que podemos aprender com Beuys em 2016?

Emergindo no cenário artístico da Alemanha do pós-guerra, Beuys acreditava num conceito expandido de arte e desenvolveu a teoria da escultura social, que unia prática política e estética, afirmando que todos os aspectos da vida deveriam ser abordados de forma criativa e que a vida em sociedade é uma espécie de escultura que deve ser moldada coletivamente.  Outra foto exposta na Bergamin & Gomide é paradigmática dessas ideias: nela Beuys aparece andando em direção à câmera. Sobreposta à foto, pode-se ler a frase,  escrita à mão: “a revolução somos nós”. Como afirma Visconti,, a imagem representa a união  indissociável entre as ideias de marcha e revolução, sintetizada na questão do movimento, termo que representa o cruzamento simbólico entre o social (movimentos sociais) e o artístico (movimentos artísticos-estéticos). Em outro cruzamento estético-político-ecológico, Beuys teria ainda ajudado a fundar o Partido Verde alemão,  pelo qual se elegeu ao Parlamento Europeu, além de conceber o projeto-obra 700 Eichen (7000 carvalhos), para Documenta de Kassel, que consistiu no plantio de 7000 árvores, cada uma acompanhada por uma estela de basalto.

Em um momento no qual artistas brasileiros se unem em manifestos políticos pela defesa da democracia (leia mais) e também na produção de cartazes (leia mais) para as manifestações sociais que tomam às ruas do Brasil, a ressonância da obra de Beuys com a realidade atual brasileira é novamente inegável, suscitando questionamentos acerca do papel da arte e dos artistas na transformação do contexto social e político imediato – especialmente em tempos de crise, como no pós-guerra alemão que Beuys viveu, e no quase-guerra brasileiro atual.

​A notória biografia de Beuys é​ também marcada por contradições, como sua filiação ao pensamento exotérico de Rudolf Steiner -​ fundador da antroposofia, pensamento místico-filosófico com nuances consideradas racistas ​-​, e sua ligação ao nazismo, reafirmada na biografia Hans Peter Riegel lançada em 2013, no qual o autor afirma que Beuys nunca se afastou do passado nazista, tendo apenas “retocado” dados de sua vida. A pergunta inevitável é portanto se haveria espaço para​ (in)coerências entre discurso e obra no campo da arte. Poderia um artista cuja produção e pensamento tem como centro de gravitação a transformação social e a democracia, ter de fato apoiado o regime autoritário de Hitler? E caso de fato o tenha feito, qual o efeito desse posicionamento sob seu legado? Significaria necessariamente um esvaziamento da potência de sua obra e pensamento?

A questão é inesgotável, e sempre estará presente em alguma medida no campo da arte, reaparecendo mais fortemente em contextos de crise como o presente. Assim é que a carta das artes visuais em defesa da democracia, tem gerado dissidências e desacordos, espelhando dentro do meio artístico, a polarização vista nas ruas do país, e reacendendo o debate sobre o papel da arte e do artista na sociedade. É seguro dizer que todo artista lida com circunstâncias históricas e políticas de modo sensível, mas que alguns preferem dar mais espaço à subjetividade enquanto outros priorizam a reflexão acerca de fatos políticos concretos. De uma forma ou de outra a arte tem sempre que ser produto de seu tempo. ​A questão não é obviamente simples, entre a postura pessoal e a profissional;  entre o discurso e a prática;  entre a arte e a vida;  os cruzamentos, as nuances e os deslocamentos são tão variados quanto a própria produção artística contemporânea. Acima, de tudo o que é importante, nesse momento de polarização, é que o embate entre posicionamentos distintos se dê através do diálogo, da abertura ao outro e porque não, da poesia.

Leia também: O que pensam os artista na crise?


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