Um cangaceiro na ribalta

Admirador de"Os Sertões", de Euclides, e correspondente de Dalton Trevisan, Marcelino prefere correr riscos  a escrever uma prosa frígida. Foto: Luiza Sigulem
Admirador de”Os Sertões”, de Euclides, e correspondente de Dalton Trevisan, Marcelino prefere correr riscos a escrever uma prosa frígida. Foto: Luiza Sigulem

Marcelino Freire diz que é pregui­ço­­so, mas a verdade é que o escritor pernambucano de 49 anos não para quieto. Basta uma olhada em seu pequeno apartamento na Vila Madalena, em São Paulo, para adivinhar a ebulição em sua cabeça. Centenas de livros se amontoam por todos os cantos e brigam por espaço com as mais estranhas bugigangas. Caveiras de todos os tipos se organizam num altar. Na parede oposta a uma estreita escada em caracol, alguns quadros de artistas como o argentino Léon Ferrari e o conterrâneo Jobalo dão um colorido sereno à explosão de informações ao redor.

É nesse caos aconchegante, de sabor boêmio, que Marcelino trabalha em seu novo livro, Mulungu. Tecnicamente um romance, o autor prefere, no entanto, chamar de polca-prosa, em referência tanto à dança polonesa que originou o frevo quanto à sua já proverbial economia no estilo. Será lançado em setembro, pela mesma Record que reeditou, recentemente, Amar é Crime, com adição de cinco novos contos. A Ateliê Editorial, por sua vez, acaba de publicar uma edição comemorativa dos 15 anos de Angu de Sangue, livro que marca o início da carreira e lhe valeu comparações com Dalton Trevisan, Rubem Fonseca e João Antônio. Isso porque o universo da prosa curta e longa de Marcelino, como o desses autores, tem muito sangue, humor e lágrimas e pouco adorno na escrita.

 "Amara É Crime" Marcelino Freire Record, 160 páginas. Foto: Reprodução
“Amara É Crime”, Marcelino Freire, Record, 160 páginas. Foto: Reprodução

Alto, barba cerrada e voz firme de repentista, o escritor descobriu a literatura pela mão de Manuel Bandeira. Aos  9 anos começou a frequentar o teatro, pois queria ser ator; e, aos 14, já tinha uma peça encenada no Recife. A experiência de palco se transferiu para a futura literatura, marcada pela oralidade. Veio para São Paulo em 1991, onde trabalhou por 13 anos como revisor na agência de propaganda Almap BBDO: “Entre um rótulo de água mineral e um de refrigerante, eu escrevia um conto”. Com o terceiro livro de narrativas curtas, Contos Negreiros, de 2005, ganhou o Jabuti. Mas preferiu deixar o troféu na Mercearia São Pedro, bar que costuma frequentar ao lado de colegas como Reinaldo Moraes, Xico Sá e Ivana Arruda Leite.

Criou a Balada Literária, evento literário esquema guerrilha, que vai fazer 11 anos em novembro. O homenageado, desta vez, será Caio Fernando Abreu, celebrado criador de Morangos Mofados, morto há exatos 20 anos. Até lá, Marcelino já terá lançado  Mulungu (leia trecho inédito na página 103) e editado novos autores pelo próprio selo, o Edith, além de dado oficinas de escrita criativa em espaços como o centro cultural b_arco. Homossexual arretado, político (no melhor dos sentidos) até a medula, o autor de Nossos Ossos fica furioso com injustiças – homofobia, racismo, opressão de classe – e parte para a briga se preciso: “Sou cangaceiro, ôxe! Estou mais para Dadá que para Corisco, mas sou cangaceiro!”.

Brasileiros – Você tem uma ligação forte com seus pais, né? Tem irmãos?
Marcelino Freire – São nove filhos de 14 gestações. Desses nove, faleceu um. Eu sou o caçula. Minha mãe morreu em 2010. Costumo dizer que foi ela quem escreveu meus contos. Ela tinha uma fala muito para fora, muito própria, um vexame lírico, que eu só peguei o ouvido e encostei ali, naquela agonia, naquela urgência. E meu pai era o silêncio. Na mesa, nenhuma palavra, sempre o mesmo canto à mesa, a mesma xícara, o mesmo copo e o mesmo silêncio. E minha mãe era uma atriz, tragicômica. Aí eu me aproximei do meu pai no Nossos Ossos. Depois de ter gritado durante cinco livros de contos, compactuado demais com esse vexame da minha mãe, me aproximei do silêncio do meu pai. Eu precisava pausar um pouco mais a velocidade das minhas frases para poder enfrentar um romance, não podia ficar gritando por cento e tantas páginas no ouvido do leitor, ninguém ia aguentar. Tanto é que no livro a figura masculina vem muito presente. Acho que escrevi os contos todos para poder chegar nesse livro. Eu precisaria ter gritado aquilo, ter dado aqueles vexames todos para poder me acalmar. Continuo gritando? Continuo. Mas com mais calma. Me animei tanto que fui para outro romance, outra prosa longa, essa polca-prosa.

Polca-prosa? Como é isso?
Polca tem a ver com pouca, pois costumo escrever textos curtos. Também é a origem do frevo, e o livro é um espetáculo de dança. O título é Mulungu, nome de uma árvore. Vem da minha infância. Quando eu estava com 3 anos, minha família se mudou de Sertânia para Paulo Afonso, na Bahia. Lá existe o bairro Mulungu, com várias dessas árvores. Elas dão frutos muito vermelhos, usados para fazer chá. Parecem pintura. Queria enterrar meus personagens nessa árvore.

E como se dá essa dança na escrita?
Eu queria muito fazer um romance demorado, os gestos alongados, sabe? Senti que meu livro era muito escrito pela demora dos gestos, pelos alongamentos, pelo tempo suprimido. Evidentemente, às vezes o parágrafo acelera, como no frevo, mas aí volta ao seu momento de pausa. Descoberto isso, o personagem ganhou o nome de Dora, porque lembrei da música do Dorival Caymmi: Dora, rainha do frevo e do maracatu…Tem também a ver com o marido de Dora, que ela conheceu no Carnaval e a abandona quando tem o primeiro filho e volta 50 anos depois. O romance começa quando ela está dormindo, há mais de 300 anos. Tudo é assim: 300 anos, 400 anos, infinitas eras. Ela se levanta e vai atender a porta, mas até ela atender a porta eu vou fazendo cortes para o passado.

Edição comemorativa dos 15 anos de um dos livros mais conhecidos do autor, com prefácio de João Alexandre Barbosa e orelhas de Nelson de Oliveira e Marcelo Mirisola. Foto: Reprodução
Edição comemorativa dos 15 anos de um dos livros mais conhecidos do autor, com prefácio de João Alexandre Barbosa e orelhas de Nelson de Oliveira e Marcelo Mirisola. Foto: Reprodução

Você disse que teve de escrever todos os contos para chegar aos romances. Sente que houve uma evolução?
Sim, acho que a gente vai ficando mais denso. Eu não poderia começar calmo. Comecei com Angu de Sangue para gritar o que eu tinha de gritar e sair de perto. Já eram contos que eu vinha reunindo, desde o Recife. O conto que abre, Muribeca, escrevi aos 19 anos. E já é colado nessa fala da minha mãe. Que é muito teatro, são monólogos prontos. Eu fiz teatro muito tempo e quando escrevo penso em teatro. Penso numa atriz, num ator, numa palavra sendo falada, dita. Entregue para o outro. Bom, o personagem do Nossos Ossos é um dramaturgo. Agora vem a dança. Acho que eu nunca saí da ribalta (risos).

Enxergo na sua prosa muito da secura e economia do Dalton Trevisan e do Graciliano Ramos. Tem a ver? Quais leituras te marcaram?
Nós nordestinos somos muito formados por livros brasileiros e nordestinos. O primeiro romance que eu li na vida foi o São Bernardo, do Graciliano. Lembro de ter lido novo o Cão Sem Plumas, do João Cabral, que me marcou muito, um livretinho, com aquela contundência, aquela linguagem muito enxuta, muito exata.  Sou muito preguiçoso. Acho que faço muita coisa exatamente porque sou preguiçoso. Enquanto meus irmãos andavam de bicicleta, eu estava lendo Manuel Bandeira. Passava horas e horas lendo no quarto até que batiam na porta e perguntavam: “Meu filho, você está doente?”. A leitura não é sinônimo de saúde. Eu não era aquele menino que corria e pulava. Eu pulava parágrafos (risos)! O Bandeira pegou na minha mão. Os escritores pegam na mão da gente. Eu não sabia que precisava do Bandeira. Ele foi a porta de entrada para outros poetas e escritores, Joaquim Cardoso, Oswald de Andrade, Mário de Andrade. Quando você vê, já está na mão do Solano Trindade, da Cecília Meirelles, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e Hilda Hilst. Eles nos ajudam a enfrentar a vida. Quando li Metamorfose, do Kafka, aos 15 anos… Cara, me educou muito aquilo ali. Na hora do jantar eu estava entendendo tudo! Pensei: se amanhã eu acordar transformado num inseto monstruoso, quem é que vai estar do meu lado aqui nesta mesa?

Mais recente produção de Marcelino, esta novela foi editada e produzida pela mítica Mariposa Cartonera, no Recife. Foto: Reprodução
Mais recente produção de Marcelino, esta novela foi editada e produzida pela mítica Mariposa Cartonera, no Recife. Foto: Reprodução

E qual foi sua conclusão?
Olha, minha mãe aqui vai estar comigo até o fim; meu pai, eita cidadão bom; mas aquela prima não presta não, entende (risos)? Jean Genet! Jean Genet me educou na transgressão, na sexualidade, na alegria, na tragédia, no improviso. Fui a lugares que nunca imaginava que pudesse ir com esses escritores e artistas todos. Já estive na Bahia porque Dorival Caymmi me levou muito antes de eu estar lá.

Suas histórias sempre envolvem situações de crime, morte, violência, com ”criaturas da deriva social”, como disse o João Gilberto Noll: o padre pedófilo, a travesti, o velho moribundo… De onde vem tudo isso? 
Costumo dizer que o livro que eu mais leio é a rua. Tem conto que escrevo de ouvido, ouço uma frase na rua e vou descobrir o que é que aquilo está pedindo. Vou costurando esses gritos, essas ladainhas, por aí. Igual minha mãe, que, quando estava muito aperreada, falava, falava e falava. É só dar uma voltinha, pegar um ônibus. Tem um conto no Amar é Crime, Liquidação, que surgiu de uma frase que eu ouvi: “O sofá é meu”. Eram duas pessoas brigando por um sofá na rua. Aí, pronto, como vai acabar essa história? Eu escrevo então para compactuar, entender os absurdos à minha volta. E muitas vezes começo a escrever do nada e na metade descubro que é uma travesti, que é um velho sendo espancado. É a palavra que me diz quem está gritando. E eu vou guiado por esse improviso, a cidade me dá o mote.

Lembrei do conto, em Angu de Sangue,  da mendiga que oferece a filha, todo feito em diálogo.
Esse conto, O Caso da Menina, eu não sabia como começar. Tentei escrever em terceira pessoa, em primeira pessoa, e nada. Quando veio aquele “quer?”, eu disse: nossa, o conto começa aí. E adoro escrever conto-diálogo, é como um jogo em que você precisa construir um embate.  Drummond tem um conto que é um pai chegando num restaurante e oferecendo uma criança. E começa com “quer?”. Eiiitaaa! Eu comecei do mesmo jeito do Drummond! Não conhecia, fui ler, é outra coisa. Por isso dedico o conto ao Drummond.

Alguns contos, por outro lado, são menos “realistas”, vêm mesclados com pesadelo, alucinação, loucura…
Eu gosto muito de perder no jogo. Acho que escrever é perder. Por isso gosto dos diálogos, em que você vai perdendo e montando depois, para dar dinâmica viva àquilo ali. Muitas vezes, quando estou escrevendo e vejo que uma coisa está indo demais para um lado, então pego uma picada para reencontrar o caminho mais adiante ou para perdê-lo de vez. E essas alucinações vão aparecendo.

E esse lance com o jogo de palavras?
Gosto de botar umas palavras dentro das outras: cidade ácida, bale ralé, angu de sangue. O Nelson de Oliveira me chama de concretista do agreste. Quando você lê uma palavra no meu texto, ela não está apenas ali, está em movimento. Daqui a pouco vem um par sonoro dela. Costumo dizer que não trabalho com rimas, trabalho com ímãs, um sistema magnético. Tem gente que termina de ler “A Cidade Ácida” (conto do Angu de Sangue) e diz que ficou bêbada, porque eu recrio o estado do personagem cortando as sílabas.  Bêba.Do. Des.Falecer. É uma espécie de mosaico sonoro. Posso ter a história melhor que for, mas preciso encontrar essas formas e sons. Eu mais componho do que conto a história.

Imagino, então, que você leia o que escreve em voz alta, para testar essas formas e sons.
Ah, não há dúvida. Rezo o que eu escrevo. Falo para todos: reze! O poema, o romance, o conto. Rápido, como quem diz o terço. Se alguma coisa emperrar, tem de mudar. Tenho uma preocupação constante com o ritmo. Se pegar qualquer poema do Bandeira ou um texto do Guimarães Rosa, você é capaz de rezá-los. Aliás, esses escritores todos rezavam por nós (risos)! E quando um escritor não reza por nós? É quando ele está cheio de coisinhas, cheio de explicação para dar, quando está com medo, quando não está com fé. Aí fica aquela coisa demorada, você não se sente acompanhado do ritmo. Se começa com não obstante, se vem com muita conjunção, pretérito mais que perfeito, estivera, pulara, colara, aí não caminha.

Sua escrita é meio sincrética, né?
Muito! Adorei, vou guardar isso aí. Vou contar a meu pai Xangô (risos).

Em volta do original da capa de Lourenço Mutarelli, Marcelino montou em sua casa um altar de caveiras as mais variadas. Foto: Reprodução
Em volta do original da capa de Lourenço Mutarelli, Marcelino montou em sua casa um altar de caveiras as mais variadas. Foto: Reprodução

Muitas vezes parece teatro, como você já disse.
As pessoas levam muito meus contos para o teatro. Aqui em São Paulo tem um grupo de Taboão da Serra, bastante premiado, chamado Grupo Clariô de Teatro. Eles fizeram o espetáculo Hospital das Gentes. Tem no Recife o Coletivo Angu de Teatro. Eles montaram Angu de Sangue e Rasif. E agora estreia no dia 9 de abril, no Recife, Nossos Ossos. Me pediram para fazer a dramaturgia. Mas  nunca escrevo para teatro. Sofri para caramba. Eu já tinha dito tudo que  tinha para dizer no romance. Eles foram me ajudando e fiz. É um grupo muito consistente. O teatro me fascina muito. É um sonho antigo meu que volta. Queria muito ser ator. Fui escrevendo umas peças e aos 14 já tinha peça montada no Recife. Mas aí descobri que não tinha carpintaria para ser dramaturgo e tinha muito pudor para ser ator. Mas quando escrevo meus livros, eu penso em teatro. A escrita tem de convencer enquanto palavra dita, projetada.

Mudou alguma coisa na sua vida ganhar o Jabuti pelo Contos Negreiros?
Meu Jabuti está na Mercearia São Pedro, deixei ele lá no bar. Teve até solenidade de entrega. O Jabuti é um prêmio muito importante, mas eu não posso me sentir um jabuti. A pessoa ganha o prêmio e acha que chegou lá. Chegou lá onde? Por isso eu faço a Balada Literária. Acho que sou mais político, mais atuante fazendo a Balada do que escrevendo. No sentido de fazer alguma coisa para que a literatura se movimente, para que as pessoas se encontrem, para a mediocridade deixar de reinar um pouquinho. Agora mesmo saí daquele projeto Quebras (quebras.com.br), em que visitei 15 cidades brasileiras fora do eixo. Eu chegava e coordenava uma oficina de literatura de três dias, para quem quisesse. Fui para Boavista, Palmas, Macapá, Teresina. Conheci escritores e poetas extraordinários. Era uma reedição das viagens do Mário de Andrade, só que no Instagram (risos). Eu trouxe alguns deles para a Balada Literária. Trouxe o Bruno Azevedo, do Maranhão. Tem um grande poeta de Belém, indicado pelo Milton Hatoum, o Antonio Moura. Eliseu Braga, de Porto Velho. Débora Arruda, de Aracaju. Foi o projeto da minha vida, me animei muito fazendo.

Já que você mencionou, outro aspecto forte na sua obra é esse, o político.
Eu escrevo porque sou covarde. Não tenho coragem de tocar fogo na própria roupa e sair correndo que nem tocha humana. Aí digo: o que eu posso fazer? Escrevo agoniado, tem coisas que eu não me conformo. Mas corro muito o risco de ser panfletário, de um livro meu virar um discurso, a bandeira de uma ONG. Estarei falido se isso acontecer. Se o leitor não percebe as nuances, se não percebe que o texto trabalha com ímãs e não com rimas, se não percebe o humor, a ironia, pode virar discurso, bandeira. Não gosto de escrever apontando o dedo. Estamos no mesmo barco a caminho do mesmo abismo. Mas prefiro correr esses riscos a escrever frígido. Gosto de fazer o que esses poetas que a gente citou aqui fizeram comigo. Eles me acordaram, me balançaram, me cutucaram. Kafka me deu um puxavanco, como dizem no Nordeste. Aí eu tento fazer a mesma coisa. E, para fazer isso, sou mesclado dessa revolta, desse olhar enviesado.

A homossexualidade também é uma temática bastante presente nos seus contos. Tem até um chamado “União Civil”, no Amar é Crime.
Fui educado sexualmente, sentimentalmente, sociologicamente, como cidadão e como homossexual pela literatura. A literatura me disse tudo, curou as minhas dúvidas, organizou minhas feridas, me deu todo esse chão. Fiz questão de abrir o Amar é Crime com aquele poeminha de amor concretista, dizendo: olha, estou aqui, gosto de outros homens; e aí, vai brigar? Pega a faca que eu puxo a peixeira, sou cangaceiro, ôxe! Estou mais para Dadá que para Corisco, mas sou cangaceiro (risos)! Mas ser homossexual em Sertânia é muito fácil, pois o próprio nome diz: algum Tonhão quis ser Tânia (risos). Minha mãe e meu pai sempre foram muito solidários, respeitavam, eram aliados. Quando me via nos jornais, minha mãe dizia: “Só de saber que meu filho não saiu numa página policial, ô glória (risos)”!

Apesar da cor violenta, que se distingue na paisagem nordestina, o mulungu dá frutos cujo chá, dizem, combate o estresse. Foto: Reprodução
Apesar da cor violenta, que se distingue na paisagem nordestina, o mulungu dá frutos cujo chá, dizem, combate o estresse. Foto: Reprodução


Mungulu – Décimo Movimento

Depois de o marido morto, o que fazer com o corpo? Já sabia. Custe a infinitude que custasse, não o deixaria sobre os refugos, fezes, lixo. Não que ele não merecesse, mas era sagrado encomendar o diabo ao diabo. Embrulhá-lo para o outro mundo. A casa ficaria limpa de vez, o serviço fechado. E aí, sim, eis que ela voltaria aos aposentos, de onde nunca deveria ter saído. Mãos ao trabalho, Dora, mãos ao trabalho. Lá na frente você descansa. Se for demorar mais do que se demora, virá a putrefação. Os ossos cinzas. Pôs-se a correr, então, na velocidade da sombra.

O marido ficou miúdo, dobrado para dentro da mesa, um caramujo. Pensou que um pé de vassoura o recolhesse. Mas onde escondeu os instrumentos do campo: enxada, pá, roçadeira? Lembra-se que vendeu aos trabalhadores. Todos embora. Deu as moedas que tinha. E os tratores. Rendas e roupas aos agricultores. Viu-os partir, no caminhão de cana. Fechou as janelas, cultivou, por uma semana, as poucas plantas. Não cuidou da febre. O coração é o chefe da solidão. É ele quem diz, é ele quem manda. Dora, não há mais o que ficar meditando. O marido a ponto de feder. Daqui a instantes, lagartas porão seus ovos, as aranhas os novelos. Ficará impraticável puxá-lo pelos cabelos. Os dedos do pé. Vai, mulher, é urgente este enterro.

Gostaria de ser um raio, um automóvel. Mas velha e humilhada o destino nos deixa. Na vagareza, no andar a custo, no passo incerto. Cadê a passista que era? Na dança herdada da capoeira. Luta ligeira. Essa que desvia das irregularidades do calçamento. O declive das pedras. Ela, majestosa. No meio da troça, única. Quem dança imita a vida torta, com a perna corta, risca o chão com a faca. Foge da pobreza. Feito um bêbado que se equilibra no copo de cachaça, enfrenta as avenidas cheias. Um macaco que se enreda pelos galhos. Um epilético em voo raso, à procura do que resta de si, gravitacional, pelo chão. Especialista e individualista que era a dançarina na escolha rápida de onde executar o desvio, a inclinação. Guinada à ribanceira. Encontrar o fim do labirinto brincando. 

Dora, entretanto, sente o peso. O marido é uma tonelada de desprezo, descaso, mau-caratismo. O marido é a soma de muitos maridos. Uma corja de boçais. Frios e fingidos. É o que ela puxa consigo. Em esforço excomunal. Como se, com a sombrinha na mão, mais do que um formigueiro de gente, enfrentasse, valente, um vendaval.


Comentários

Uma resposta para “Um cangaceiro na ribalta”

  1. Avatar de Kléber Santos
    Kléber Santos

    Excelente entrevista. Sabemos do homem, do artista e da obra. Saímos com o gosto de uma estética criativa e combativa. Queremos mais.

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