O Museu de Sant’Ana se apresenta como dessas pequenas joias incrustadas nas Minas Gerais. Ele ocupa o edifício da antiga cadeia, na cidade de Tiradentes, e faz jus ao que há de mais moderno em termos de museologia. A coleção foi reunida por Angela Gutierrez, que a doou ao Iphan e participou de perto da construção do museu.
Por todas as partes da exposição a imagem de Sant’Ana se multiplica: Sant’Ana Mestra, a Mãe Ancestral, evoca “o poder gerador da terra com o da mulher”; em Santas Mães, vemos os cuidados de Ana com Maria e de ambas com o menino Jesus; em Sant’Ana Guia, imagem recorrente no Nordeste, Ana toma a filha pela mão e a conduz, com “amor e segurança, no rumo de seu destino de mãe do Salvador”; na Sacra Parentela unem-se em torno de Ana, matriz geradora, Maria, José, Jesus e Joaquim. Há ainda duas outras seções dedicadas aos mestres santeiros, nas quais se veem trabalhos de artistas eruditos e populares de diversas regiões do Brasil: do Nordeste açucareiro, das Minas do ouro e da São Paulo cafeeira. É bem verdade que em São Paulo a imagem de Sant’Ana fora trazida bem cedo pelos bandeirantes e primeiros moradores que a cultuaram como elemento de salvaguarda e proteção. As “paulistinhas”, como ficaram conhecidos esses santinhos de terracota, foram difundidas nos séculos 17 e 18 pela capital planaltina, Itu, Guaratinguetá, Vale do Paraíba e Santana do Parnaíba. Há, enfim, um espaço reservado para a Fatura Negra, ou seja, para a imaginária afrodescendente, com as releituras e subversões características das manifestações do sincretismo observadas durante o Brasil escravocrata. Mas a imagem de Sant’Ana, a segunda santa mais devotada do Brasil, possui um traço bastante peculiar e inquietante: ela traz consigo um livro. Ei-la tomando a lição de Maria, que o lê, nas mãos da mãe; noutra imagem é Maria quem segura o livro para a mãe, atenciosa; noutra, as duas mantêm o olhar distante, embora o livro permaneça em suas mãos. São muitas as variantes, todas à mercê da criatividade do artista. Pouco importa, a mestra e guia tem sempre à mão um livro. A historiadora Maria Beatriz de Mello e Souza situa a origem da imaginária de Ana no século 13, possivelmente na Inglaterra. Ela coincide, é fato, com o período em que se desenvolveu no Ocidente o culto mariano. Porém, é preciso situar essas esculturas no contexto colonial brasileiro. Por que uma santa guia com um livro na mão cairia nas graças de senhores, livres pobres e escravos? Para a historiadora, a santa mestra e guia teria concretizado no imaginário das gentes a hierarquia social dominante, a saber, a figura da matriarca, da senhora branca protetora dos engenhos, das minas de ouro e dos cafezais. Outrossim, ela reforçaria a ideia da educação das moças fundada na valorização da pureza e em alguns rudimentos escolares, ou seja, boas leituras, domínio das quatro operações aritméticas e prendas domésticas.
Ocorre, todavia, que Sant’Ana conquistou a fé do povo. Como diz uma canção: “Reza, pois, pela mãe oprimida/Que tem filhos sem pão e sem lar”. Numa sociedade tão pungida, onde se mantém rígida a fronteira do Brasil que lê e o outro, resta dizer: “Sant’Ana, lede por nós”.
*Professora da Universidade de São Paulo. Autora de O Império dos Livros: Instituições e Práticas de Leituras na São Paulo Oitocentista (São Paulo: Edusp, Fapesp, 2011, 448 páginas). Prêmio Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Biblioteca Nacional, 2011; Prêmio Jabuti, 2012; e Edições e Revoluções – Leituras Comunistas no Brasil e na França (Cotia: Ateliê Editorial, 2013, 334 páginas). Para ler mais, entre na página http://bibliomania-divercidades.blogspot.com.br/
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