Da “boca” para fora

Cidade tiradentes, distrito localizado no extremo leste de São Paulo, abriga o maior complexo residencial popular da América Latina. O lugar foi escolhido e projetado pelo governo paulista para receber a população desalojada das favelas e de áreas de risco da cidade. Trata-se de uma selva de concreto, formada por Cohabs e CDHUs entrecortados por córregos a céu aberto e desmanches de automóveis.

O projecionista José Henrique Cirilo não gosta muito de entrar nos detalhes de como foi parar lá. Desde 2005, ele mora em um prédio com tinta desbotada na parede e concreto aparente. O conjunto foi ironicamente batizado “Praia de Ipanema”. Poucos vizinhos sabem que ele é dono de um tesouro de valor inestimável para o cinema brasileiro. Ao longo de sua carreira no submundo do cinema paulista, Cirilo, hoje com cinquenta e poucos anos, manteve o hábito de comprar, por vias nem sempre convencionais, rolos de filmes que deixavam as salas de cinema e tinham destino certo: o incinerador ou fábricas de vassouras. Seu acervo conta com cerca de três mil títulos entre películas de 35 mm, 16 mm, CD e VHS, muitos deles exemplares únicos ou raríssimos. No meio da sala apertada e sem nenhum conforto do apartamento, ele deixa exposta sua maior relíquia: um projetor original em perfeito estado de funcionamento. Quando bate a vontade, Cirilo escolhe um dos títulos e exibe ali mesmo, na porta branca da geladeira. A história desse personagem da cidade se confunde com a do chamado Cinema Marginal, um movimento que viveu seu apogeu entre o fim da década de 1960 e os anos 1970 na Boca do Lixo, um quadrilátero no Centro de São Paulo que, hoje, é habitado pelos noias da cracolândia, mas um dia foi a Meca cinéfila nativa.

35 mm
Foi no final da década de 1920, quando o cinema falado revolucionou a Sétima Arte, que a região da Boca do Lixo começou a ser ocupada pelo povo do cinema. As distribuidoras que chegavam ao Brasil preferiam se instalar ali, devido a uma questão estratégica: a proximidade com as estações ferroviárias da Luz e Sorocabana. Quarenta anos depois, no final dos anos 1960, havia pouco ou nenhum espaço para a produção de filmes brasileiros mais ousados intelectualmente. No auge do regime militar, a soma da censura com o começo do “milagre econômico” fomentou a produção de filmes com apelo popular. Na era pré-shopping center, as salas de cinemas dos bairros viviam lotadas. Foi nesse cenário que as ruas da Boca do Lixo viveram seu apogeu como polo de realização e distribuição de filmes de baixo orçamento. Cirilo começou a frequentar a Boca em 1970 quando estudava no Colégio Maria José, na Alameda Glete, bem perto do quadrilátero formado pelas ruas do Triunfo, Andradas, Vitória e Gusmão. Aos 18 anos, morava com o pai relojoeiro e a mãe dona de casa, na Mooca, e ia à região atrás de “mulherada”. “Tinha um monte de puteiro lá. Tem até hoje…”, diz. Graças a um amigo do seu pai, chamado José Rima, ele conseguiu o primeiro emprego na área. “Ele montava telas em todas as salas de cinema. Hoje, está com 90 anos e ainda faz isso.” O primeiro patrão foi Oswaldo Massaini, o mais poderoso produtor e distribuidor da época. O homem era uma lenda viva na Boca. “Eu era fiscal dele nas salas de cinema. O Oswaldo só comprava filme que explodia de público. Eu ficava na catraca, conferindo a renda. Depois, o Oswaldo me buscava com o chevetinho cinza dele.” A experiência levou Cirilo a submergir definitivamente na Boca.
[nggallery id=15020]

Clandestino
O ponto de encontro de cinéfilos e cineastas da Boca era o mitológico restaurante Soberano, onde os negócios rolavam soltos. Era lá que os produtores recrutavam equipes, escreviam roteiros, trocavam ideias e decidiam, entre uma cerveja e outra, o futuro do Cinema Marginal brasileiro. Entre os frequentadores assíduos estavam Walter Hugo Khouri, Carlos Reichenbach, Zé do Caixão e Rogério Sganzerla. “No andar de cima, funcionava a distribuidora do seu Borghetti. Ele era dono do Cine Éden, que era muito visado pela censura. Um dia, ele quebrou e ficou com um monte de filme em casa”, lembra Cirilo. Naquele tem-po, cópias de grandes produções podiam ser compradas com facilidade no mercado negro, por meio de funcionários de distribuidoras, como a Paris Filmes. Quando havia rolos excedentes – e sempre havia – ou quando o filme saía de cartaz nos principais cinemas, os longas tinham dois destinos: ou iam para o incinerador ou acabavam em fábricas de vassouras. Cirilo então se aproximou de Borghetti, com a intenção de alugar alguns de seus filmes “encalhados” para fazer sessões em circos. O negócio deu certo e ele então passou a distribuir filmes para o interior, outros Estados e até para o Chile. Acabou comprando a produtora e entrando definitivamente para o ramo. “Eu comprava até filmes, como o King Kong, no mercado negro. Não faltava dinheiro naquela época. Na Boca, ninguém ficava duro.” Em outra frente, Cirilo começou a investir também na produção de filmes pornográficos. “A gente comprava duas latinhas de negativos de filmes com atrizes famosas, como Eva Wilma, e fazia uma edição em cima. Pegava duas pistoleiras da boca e mandava elas fazerem uma conjunção carnal. Depois, misturava as cenas do filme com as nossas e transformava em um belo pornô.” Foi assim que a pornochanchada Cada um Dá o que Tem, que tinha muita cena picante, mas sem excessos, se transformou no pornô No Calor do Buraco. “Tem até filme com o Juca Oliveira fazendo pornô”, diverte-se Cirilo. “A gente gravava com as meninas em um hotelzinho da Boca chamado Scala.”

A decadência da Boca
Muitos demoraram a perceber que a febre dos filmes pornográficos era o primeiro sinal do fim dos anos de ouro da Boca. Com a difusão do videocassete, a popularização da televisão e, posteriormente, as sucessivas crises econômicas, as salas de exibição foram se esvaziando gradativamente. Os cinemas do Centro sobreviveram, mas às custas de se converterem em redutos de prostituição. Em 1989, Cirilo sentiu o baque. Para conseguir pagar as contas no fim do mês, começou a trabalhar como projecionista nos Cine Cancan e Moulin Rouge. “O pornô acabou sendo o assassino dos cinemas. Depois, veio o VHS e as salas passaram a ser dominadas por putas e travestis.”

Ele conta que um novo mercado surgiu graças a essas circunstâncias. “As atrizes dos filmes ficavam ali na sala, fazendo programas. A gente gravava alguns filmes ali mesmo.” Durante todo esse tempo, nas épocas de vacas gordas e magras, Cirilo nunca deixou de comprar ou ganhar filmes. “Quando a (distribuidora) Havaí fechou, eles iam entregar o prédio e me chamaram lá. Ajudei a desmontar tudo e ganhei 500 cópias de uma vez.” Seu acervo conta com clássicos como Menino da Porteira, com Sérgio Reis, e o polêmico Amor Estranho Amor, o filme que Xuxa conseguiu tirar de circulação. “A história desse filme é curiosa. A Xuxa andava muito com o Pelé, que era amigo do Massaini. Foi assim que ela topou participar do filme.” No longa, a Rainha dos Baixinhos seduz um garoto menor de idade. Da Boca, Cirilo foi para o SBT, onde foi um dos câmeras do mitológico programa Aqui e Agora. Atualmente, vive de bicos, mora em Cidade Tiradentes e procura um destino digno para seu acervo. A Cinemateca de São Paulo se interessou pelo material, mas ele não aceitou as condições impostas. “Eles querem tudo como doação. Você acha o quê? Dar de graça para os caras? Tem filme ali que paguei caro.” Seu sonho é montar um centro cultural no bairro. Talvez seja mais fácil sua história virar um filme.

O novo cinema brasileiro em praça pública


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.