Propaganda é o negócio da alma

Coluna_header_ topo Auro Danny Lecher
Em tempos de crise, muitas oportunidades aparecem. Para os mais espertos, conectados e ligeiros, sofrimentos individuais ou coletivos são chances preciosas para mais prestígio, dinheiro e poder. Vírus, bactérias e outras chagas também aproveitam esses momentos de vulnerabilidade humana para se instalar no organismo vivo e pautar sua fisiologia, levando, em alguns casos, à morte do hospedeiro. O surto da gripe H1N1 é um bom exemplo.

A propaganda é a alma do negócio. Então, os operadores do marketing de uma concessionária da BMW da cidade, espertos, conectados e ligeiros, foram capazes de criar uma campanha de vacinação contra a gripe H1N1 para os seus clientes, no fim de semana passado. O que eles não esperavam é que muito, antes dos primeiros interessados em trocar o modelo de seus BMWs, começassem a chegar, já havia clientes Monza 94, Del Rey 87, outros tantos fuscas e Brasilias, desde a madrugada. Quando os funcionários da agência avisaram que a vacinação era exclusividade para aqueles que têm o carro alemão, o clima, que já não está lá essas coisas, começou a entornar. Foram obrigados pelas circunstâncias e ameaças de quebra-quebra, a vacinar todos da fila.

No início da semana seguinte, leio a coluna do meu colega de ofício Nisan Guanaes. Ele escreve, também  quinzenalmente, na Folha de São Paulo e, sendo referência muito respeitada no universo da publicidade, ajudou-me a entender a raiz do problema.

Para poupar o meu leitorado, citarei aqui apenas o primeiro e o último parágrafos do referido texto: “A invenção da prensa de Gutenberg impactou a história humana durante séculos ao criar o melhor meio, até então disponível, para organizar e difundir o conhecimento. Hoje, inventam-se coisas assim quase todos os anos. A nuvem, o Kindle, o Netflix, o Facebook, o Twitter, o Google, o Instagram. O iPhone ainda não fez nove anos e já está na sexta geração”.

Pessoas enfrentam fila para tomar vacina em concessionária da BMW. Foto: Reprodução/YouTube
Pessoas enfrentam fila para tomar vacina em concessionária da BMW. Foto: Reprodução/YouTube

Hein? Quer dizer que para ele a humanidade conhece um  impacto comparável ao da invenção de Gutenberg  anualmente?

Acho que caberia, sim, a comparação com a internet, os outros exemplos são todos variações sobre o mesmo tema. Que noção de tempo, ritmo e importância que se dá às novas invenções? Com certeza há um exagero nesse priapismo mental.

Seguindo mais adiante, o colunista faz um elogio entusiasmado a uma campanha publicitária australiana. “A nova internet das coisas, que conecta diferentes aparelhos, foi recentemente usada de forma muito original pela montadora Lexus em campanha espalhada por várias cidades australianas. O motorista de um carro de luxo que passava por um outdoor eletrônico tinha o modelo e a cor do seu carro imediatamente identificados e recebia uma mensagem direta e personalizada do outdoor à frente: “Ei, carro tal da cor tal, nunca é tarde para mudar. Este é o novo Lexus””.  

Hein? Suponha que eu seja australiano, rico, e que dirijo meu Lexus por uma boa estrada, altas praias e paisagens, ouvindo Tom Waits, feliz da vida, e, de repente, chega uma mensagem dessas…invasão de privacidade no mínimo.

E o articulista continua: “Colocar os bens pessoais do consumidor ou mesmo o seu nome ou de pessoas ligadas a ele num anúncio, certamente aumenta a capacidade de impacto da propaganda. E impacto da propaganda é vida.”.

Peraí! Impacto da propaganda é vida? Seria esta uma frase bonitinha mas ordinária, forjada para alegrar os mais espertos, conectados e ligeiros? Ou frase de um profeta descrevendo o inexorável mundo novo? Para mim, que sou Bossa Nova, acústico, analógico e manuscrito, a frase foi como um cisco no olho.

Num esforço de humildade, Guanaes conclui: “Mas, para moldar esse impacto de forma dosada e eficiente, será preciso, sempre, a ferramenta mais sofisticada do planeta: o cérebro humano”.

Juntei Lexus com BMW e H1N1.

A ética, entendida como a virtude da justa mistura entre os seres humanos, é o que de mais evoluído o cérebro humano (a alma humana) foi capaz de inventar. Mais do que a prensa de Gutenberg, a internet, ou do que o prestígio,  dinheiro e poder.

Se a ética for mesmo mais importante do que o lucro, poderemos sonhar com a substituição paulatina, para não gerar grandes tramas, dos cursos de Marketing das faculdades por cursos mais sofisticados, de Humaniting, que ensinarão o lucro do humano, não o do meramente financeiro.

Ou propaganda continuará sendo o negócio da alma?

*Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo, psicoterapeuta e coordenador do Projeto Quixote   aurolescher@gmail.com 


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