Um País irreconhecível

 Há pouco mais de um mês de seu retorno ao Brasil, Camila Issa está apreensiva com o clima de hostilidade no País. Foto: Arquivo pessoal
Há pouco mais de um mês de seu retorno ao Brasil, Camila Issa está apreensiva com o clima de hostilidade no País. Foto: Luiza Sigulem


Uma história de horror
vivenciada em Paris na última sexta-feira 13 de 2015. Depois de uma semana extenuante, a psicóloga Camila Issa, 29 anos, foi ao encontro de amigos, também radicados na capital francesa, para jantar no restaurante Le Petit Cambodje. O encontro chegava ao fim quando o local foi alvo de um dos vários ataques terroristas deflagrados pelo Estado Islâmico em novembro último. Camila foi atingida por dois projéteis na mão esquerda e temeu pelo pior. 

A partir do episódio trágico, a paulistana só pensava em retornar ao Brasil à procura de acolhimento e segurança. No entanto, o reencontro com a pátria-mãe, há pouco mais de um mês, em 5 de março, foi marcado por um anticlímax, com a constatação de que a retração conservadora de parte expressiva da sociedade francesa é hoje visível e ascendente também no País. Algo alarmante, segundo ela.

“Fui para Paris com a sensação de que havia algo de estranho no ar por aqui e tomei um susto quando voltei. Depois de tudo o que aconteceu, eu só queria voltar para casa e ser bem tratada, mas estou bem apreensiva com o que está acontecendo. Não reconheço nem mesmo parte dos meus amigos e familiares. Por um lado, há pessoas que nunca imaginei que pudessem discutir política e estão dispostas a dialogar. Por outro, vejo muitos que não estão agindo com a razão. Pelo contrário, estão apenas pregando ódio, como se tudo se resumisse a uma disputa de torcidas rivais de times de futebol, uma guerra de bandeiras. Estou muito frágil e triste com essa névoa de violência que paira no Brasil. Hoje, tenho medo de coisas absurdas, como essa história estúpida de não poder usar vermelho. Voltei num sábado e, no domingo, parte da família veio me visitar. Um primo apareceu em casa de camiseta vermelha e meus tios logo disseram, assustados: ‘Você é louco? Como é que pode sair de vermelho?!’. Quando saí do Brasil não havia esse grau de intolerância em nossa sociedade.”

Perseverança
Na fatídica noite de terror em Paris, entre outros pontos boêmios da Cidade Luz e locais de grande aglomeração – como a área externa do Stade de France, onde ocorria uma partida entre as seleções de futebol da França e da Alemanha, e a casa de shows Bataclan, palco para o grupo Eagles of Death Metal –, ações coordenadas do Estado Islâmico deixaram um saldo de 130 mortos e, além de Camila, mais de 350 feridos.

“Logo que começaram os tiros senti uma coisa quente em meu braço. Em meio ao tumulto, vi muito sangue e pessoas caídas ao meu redor. Tomei outro tiro na mão e senti uma dor terrível. Foi então que deitei e fechei os olhos para fingir que estava morta. Ouvi novas rajadas de tiros e pensei: ‘Ainda tenho tanta coisa para viver… Não acredito que isso está acontecendo comigo, não acredito que estou morrendo’.”

Em um primeiro momento, sobreviver demandou perseverança ao longo de 40 dias de internação médica. Mas voltar a tomar as rédeas da vida normal exigirá muita determinação. Cinco meses após os ataques em Paris, Camila acaba de enfrentar a nona cirurgia em busca de recompor os movimentos da mão. Além disso, tem acompanhamento fisioterápico diário e enfrentará mais um ano de tratamento intensivo – não descartados no período novos procedimentos cirúrgicos.

Por que Paris?
A decisão de se radicar na capital francesa, em agosto de 2014, foi motivada por questões profissionais e acadêmicas. Antes de partir para a Europa, Camila atuava na Associação Amigos da Inocência, organização comunitária paulistana que acolhe órfãos brasileiros e filhos de imigrantes vindos do Haiti e da Bolívia. Na instituição, constatou excesso de solidariedade, mas também enorme carência de profissionais com formação adequada para tratar do número crescente de refugiados em nosso País, hoje da ordem de 8,5 mil pessoas.

“Como psicóloga desse abrigo, primeiro convivi com crianças brasileiras que foram afastadas de suas famílias, mas logo começaram a surgir filhos de refugiados que também estavam passando por experiências horríveis. O que fazer para ajudar essas crianças foi uma questão que se colocou na minha prática profissional.”

Em Paris, Camila decidiu cursar um mestrado de Psicologia e Política, com ênfase na escalada dos refugiados na Europa, na Université Paris Diderot – Sorbonne Cité. Com o imprevisto trágico daquela sexta-feira, sua pesquisa acadêmica será agora concluída na Universidade de São Paulo – USP. Antes da volta abrupta, Camila teve a chance de estagiar no Comede (Comité Médical Pour Les Exilés), entidade criada no Chile para prestar apoio a vítimas das ditaduras latino-americanas dos anos 1970, que, hoje, atende exilados asiáticos e do Leste Europeu.

“Em Paris, ouvi relatos muito duros. Histórias de guerra envolvendo jovens, adultos e crianças. Conheci muita gente que, além de ter de abandonar os filhos ou a família inteira, tinha de enfrentar o enorme estresse do processo de asilo, que demora cerca de dois anos e atende apenas 30% dos exilados. Os outros 70% voltam para casa ou permanecem ilegais, trabalhando no mercado negro.”

A experiência profissional prévia ao atentado e a superação do episódio trágico vivido por Camila acentuaram a dimensão humana que há na luta dos expatriados por reinserção social. “É um problema complexo, muito grave e cíclico, porque as consequências do terrorismo são sempre piores para a comunidade muçulmana que vive na Europa. A vingança sempre recai na política de imigração e no tratamento aos estrangeiros ilegais. Instaura-se o medo crescente, o clima de horror e, a partir daí, vem o aumento da xenofobia e do racismo, hoje, dois dos principais problemas da Europa”, diz.

Brasil em paz
Para Camila, que resistiu à face mais cruel do extremismo, superar o momento de racha social no País exigirá de nós, para além do respeito às diferenças, a compreensão de que apostar na possibilidade de coexistência pacífica é o melhor atalho para, juntos, atingirmos interesses comuns. “Em tese, todos somos contra a corrupção. Uma vez reconhecido esse propósito comum, é preciso reconhecer também que, mesmo que a gente discorde, o desabafo de muitas pessoas é legítimo. Não é só a elite branca que está se queixando. É preciso tomar muito cuidado para não valorizar o ‘nós contra eles’, um discurso perigoso, que só alimenta o ódio de classes”, diz.

Desinformação
Camila acredita que a sensação de que estamos no olho de um furacão e ainda viveremos um longo período de incertezas é inequívoca. Mas, segundo ela um alento em meio à atual tormenta, novos focos de resistência social têm surgido e são eles que renovam a crença em dias melhores. “A meu ver, os mais jovens é que estão apropriados para discutir o futuro político do País. Veja o que foi a luta dos secundaristas de São Paulo para não terem suas escolas fechadas. Algo inimaginável. Temos que lutar com a mesma garra desses meninos. Se a gente ficar na melancolia, tudo continuará estagnado. Podemos ficar uma vida apontando o que há de errado e de ruim no nosso País, mas também não podemos achar que vamos mudar tudo de um dia para o outro. Existe hoje no País muita desinformação, muito ‘achismo’, e é preciso lembrar sempre que existem juristas, jornalistas, cientistas políticos, historiadores, professores, psicólogos e economistas, e eles precisam ser ouvidos por cidadãos de todas as classes sociais. Temos de procurar recursos informativos realmente efetivos para entender a realidade em que vivemos. O Facebook, por exemplo, é um espaço de difusão do pensamento democrático, mas também é um propagador de muita desinformação nociva. As pessoas precisam fugir desse lugar-comum.”

Retração mundial
Na semana em que a reportagem de Brasileiros encontrou Camila, novos ataques, realizados em 22 de março e também reivindicados pelo Estado Islâmico, ocorreram em Bruxelas. No aeroporto internacional da capital belga e na estação de metrô de Maelbeek, homens-bomba deixaram 32 mortos e mais de 230 feridos. 

O provável motivo de mais esse banho de sangue foi a prisão, quatro dias antes, de Salah Abdeslam, apontado como um dos mentores dos ataques de novembro de 2015 em Paris. Dias depois, entre a Sexta-Feira Santa e o domingo de Páscoa, o Estado Islâmico ceifou outras 32 vidas e deixou mais de 80 feridos na cidade de Alexandria, no Iraque. Em Lahore, no Paquistão, o grupo talibã Jamaat-ul-Abrar foi além no número de vítimas e no quesito crueldade: deixou um saldo de 72 mortos e mais de 300 feridos, entre eles muitas crianças, uma vez que o ataque suicida foi deflagrado no estacionamento de um parque de diversões. 

Em Bruxelas, durante ato de amigos e familiares em homenagem aos 32 mortos de 25 de março, um grupo de jovens de extrema-direita, muitos deles alinhados com a ideologia neonazista, vociferou palavras de ordem contra os muçulmanos e exigiu vingança à altura. Pacífico, e certamente detentor da consciência de que extremismos religiosos são praticados por minorias, o grupo de cidadãos solidários aos mortos imediatamente debandou do local.

Para Camila, a ascensão dessa extrema-direita hidrófoba é um fenômeno incontestável não só na Europa, onde ela é fomentada pelo impacto da crise econômica e a diáspora causada por conflitos no Oriente Médio, mas também nos Estados Unidos, onde Donald Trump, pré-candidato republicano à sucessão de Barack Obama,  defende a construção de um muro na fronteira entre os EUA e o México.

Perda da essência
Outra constatação que tem provocado tristeza à psicóloga é a sensação de perda gradual de uma das características mais admiradas do nosso País, o respeito à diversidade étnica que levou à percepção mundial de que, nós brasileiros, temos a sorte de pertencer a uma nação generosa, que a todos acolhe. “Em Paris, conheci pessoas que chegavam aos pedacinhos, trazendo histórias de terror, de violência e desrespeito aos direitos do homem, que iam para a França com uma só expectativa: sobreviver. Quase todas tinham o olhar aterrorizado do sobrevivente Quando elas percebiam, pelo sotaque do meu francês, que eu era estrangeira e dizia a elas que sou brasileira, essa expressão, de temor no olhar, mudava e um sorriso se abria. Nosso País é muito querido. Certa vez em Paris, um taxista me disse que amava o Brasil. Disse a ele: ‘Mas, se nunca foi para lá, como é que o senhor pode amar o Brasil?!’. Ele respondeu: ‘Moça, me diga o nome de um país que seja inimigo do Brasil… Simplesmente não existe!’.”   

Desintoxicação
A experiência traumática que viveu em Paris só fez revigorar a crença humanista de Camila. Para ela, é possível ponderar e até mesmo perdoar o gesto de quem, movido por ódio cego, atenta contra a vida do outro por questões ideológicas ou religiosas.

Para aqueles que pretendem perseguir o mesmo grau de elevação, ela aconselha. “A primeira coisa é desintoxicar-se e buscar espaços de respiro para, depois, construir diálogos. A experiência que passei foi horrível, traumática, mas me deu recursos para que eu possa fazer com que outros lidem com seus traumas e possam superá-los.”

Camila diz não ter o dom da futurologia para prever os possíveis desdobramentos da crise política que assola o País. No entanto, afirma que um retrocesso do processo democrático está em curso. “Fiz questão de tirar meu título aos 16 anos para poder votar no Lula. Quando ele conquistou o primeiro mandato, fui para a avenida Paulista comemorar e vivi um dos dias mais especiais da minha vida. Um dia marcado pela esperança de que a partir dali as coisas iriam mudar, e elas, de fato, mudaram. Acho que houve avanços sociais inegáveis nos últimos 14 anos. Também não posso negar que eu e meus familiares estamos hoje decepcionados com o PT. Mas  temo pela democracia e pelo ódio entre as pessoas. A intolerância é um fenômeno mundial, mas não podemos entrar nesse jogo. É fundamental compreender nossa responsabilidade sobre o que acontece aqui e no mundo.” 


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