O estado de exceção e a Lava Jato

Fornazieri: a conduta do Judiciário já era enviesada contra as minorias. Foto: Divulgação
Fornazieri: a conduta do Judiciário já era enviesada contra as minorias. Foto: Divulgação

O conceito de “estado de exceção” com uso generalizado na contemporaneidade emergiu das reflexões do pensador italiano Giorgio Agamben, justamente num livro denominado Estado de Exceção. A rigor, pode-se dizer que o conceito se firma a partir da confluência de dois movimentos: um primeiro movimento denominado amplamente de “ativismo judicial” ao qual se somam medidas excepcionais no plano jurídico-policial, decorrentes das ações de combate ao terrorismo que vieram a ganhar envergadura a partir dos atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos.

Medidas excepcionais que extrapolaram as fronteiras norte-americanas se espalharam para a Europa e para várias outras partes do mundo. Nesse rol da excepcionalidade se juntaram medidas de combate ao narcotráfico, ao crime organizado em sua generalidade e à própria corrupção. A crescente jurisdicionalização (levar todas as questões aos tribunais) dos conflitos sociais e políticos, com uma agressiva intromissão do Judiciário nas esferas de ação precípua do Executivo e do Legislativo, é uma tendência recente que também afirma o caráter excepcional de atuação judicial numa constante usurpação do que determinam a Constituição e as leis.

Agamben diz que “as medidas excepcionais encontram-se na situação paradoxal de medidas jurídicas que não podem ser compreendidas no plano do direito, e o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”. Essas medidas excepcionais não configuram uma legislação especial, mas uma contínua aplicação de medidas judiciais não escritas que se produzem a partir de uma interpretação discricionária dos agentes que aplicam a lei.

Conceitualmente, ele define: “O estado de exceção é, nesse sentido, a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em que uma pura força de lei realiza (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa. Desse modo, a união impossível entre norma e realidade, e a consequente constituição do âmbito da norma, é operada sob a forma da exceção, isto é, pelo pressuposto de sua relação. Isso significa que, para aplicar uma norma, é necessário, em última análise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção. Em todos os casos, o estado de exceção marca um patamar onde lógica e práxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real”.

Desta forma, o estado de exceção deve ser entendido como um movimento em ato que anula a fixidez da estrutura jurídico-constitucional do Estado de Direito. A teoria constitucional norte-americana do Estado de Direito, particularmente emanada dos textos dos Federalistas Alexander Hamilton e James Madison, assenta a pedra angular de que os direitos civis e de liberdade dos indivíduos são o supremo fundamento da Constituição. “República” significa a garantia desses direitos. A vontade fundante do representado consistiu em instituir o poder do Estado para que esses direitos fossem garantidos. Nem o legislador, nem o magistrado supremo, nem o funcionário judicial ou qualquer outro funcionário podem agir contra esses direitos. Eles devem ser sempre agentes da garantia desses direitos.

Assim, há um claro limite para a ação dos agentes públicos: a Constituição. No sistema de equilíbrios, freios e contrapesos, o maior freio dos três poderes é a Constituição. Mas, em sendo a Constituição vontade manifesta do representado fundante, ela mesma é limitada. Limitada pelos direitos civis e de liberdade dos indivíduos. O conceito de Estado Democrático de Direito nasce desse entendimento, o que significa a noção de poder do Estado limitado e de Constituição limitada pelos direitos. Decorreu daí as contemporâneas noções de “cláusulas pétreas”, no seu aspecto de que nada pode ser aceito, emenda constitucional ou qualquer outra coisa, que viole os direitos e garantias individuais.

Se é certo que o Estado de Direito já vinha sofrendo as vicissitudes antes da atual crise política pela indesmentível conduta parcial e enviesada do Judiciário contra os pobres, contra os negros, contra as mulheres e outras minorias, com a operação Lava Jato a violação do Estado de Direito elevou-se a estatuto de estado de exceção judicial na própria esfera da atividade política. Este estado se configura pela violação sistemática e politicamente orientada de direitos e garantias individuais plasmados na Constituição e nas leis, vinda da parte do Ministério Público e do juiz Sergio Fernando Moro.

Os valores constitucionais que brotaram das trágicas experiências dos regimes totalitários e da Segunda Guerra estabeleceram de forma indiscutível a primazia da proteção do ser humano e das várias dimensões de sua dignidade. Depois de instalada a operação Lava Jato, o Estado de Direito vem sendo sistematicamente violado. Em nome do combate à corrupção constroem-se justificativas genéricas e politicamente orientadas para promover mais de 100 conduções coercitivas, para manter prisões ilegais, para prender e soltar ao sabor da vontade arbitrária dos procuradores e do juiz Moro. A Lava Jato foi transformada numa fábrica de conduções coercitivas, de pressões psicológicas ilegais sobre presos e, por isso mesmo, de produção de delações premiadas de duvidosa credibilidade.

No Estado de Constituição em movimento do Ministério Público Federal e do juiz Moro tudo é possível. Se a lei escrita e a Constituição atrapalham os objetivos políticos dos agentes do Estado, danem-se as leis e a Constituição. Existe a hermenêutica para fazer valer a lei não escrita e a Constituição não escrita. Quando a hermenêutica se apresenta na forma da vontade arbitrária dos agentes públicos em substituição às leis e à Constituição é porque já não há garantia das liberdades e dos direitos. Todos correm riscos. Da hermenêutica judicial à hermenêutica policial existe apenas um fio muito tênue.

A violência ilegal do Estado quer arrombar as portas da legalidade para apresentar-se com uma face legal. Os que protestam contra o estado de exceção judicial ou andam de roupa vermelha correm o risco de serem agredidos pelas massas embestadas em nome do supremo líder, Sergio Fernando Moro. 

*Aldo Fornazieri é professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo


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