Um lorde bom de briga

O advogado Modesto Carvalhosa ostenta, com o testemunho redundante de seus bigodes retorcidos, a expressão maliciosa de um lorde inglês que acaba de dar com os costados nos trópicos. Mas é só impressão: ele entende muito bem tudo o que está a sua volta. Há 60 anos trafega pelos salões, pelos corredores e pelos bastidores da Justiça, craque que é dos mais intrigantes litígios entre sócios e entre empresas. Hoje mesmo, está imerso na defesa dos interesses da família Gradim, sócia minoritária da Odebrecht (20,6% das ações), que acusa a família Odebrecht (62,3%) de tentar lhe passar uma rasteira ao troco de um mísero R$ 1,5 bilhão em uma empresa que vale no mínimo vinte vezes isso.

Modesto Carvalhosa é uma figura enciclopédica, de mil interesses, curiosidade aguda, humor londrino. Chega aos 80 anos a bordo de um segundo casamento, com Cláudia, e de uma vitalidade que faz tempo se espelha no exercício múltiplo de sua versatilidade. Foi presidente do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), e ali comprou empolgantes brigas. Na condição de membro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), sob o comando do mineiro Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, consolidou para todo o litoral, com o aval da UNESCO, a iniciativa que Modesto já tinha ousado tomar em São Paulo, em 1985: o tombamento integral da Serra do Mar e da biosfera da Mata Atlântica.

Uma série de homenagens espera por Modesto neste mês de março. Sua filha, Sofia, finaliza o documentário Modesto à Parte (45 minutos), sobre a desassombrada atuação do pai em vários episódios da história do Brasil de meio século para cá. Não há de faltar, claro, menção ao momento em que ele, em nome do IPHAN, conseguiu embargar um mostrengo que a influente, persuasiva Fundação Roberto Marinho pretendia fincar em plena Marina da Glória. Amigos e parceiros de advocacia preparam também um livro sobre sua trajetória jurídica. Em seu jeito sem papas na língua, Carvalhosa fala aqui à Brasileiros.

Foto Marcelo Pereira

Brasileiros – Aos 80 anos, o senhor está na linha de frente da maior questão societária em curso hoje no Brasil: a disputa da família Gradim, sócia da Odebrecht, com os controladores da empresa.
Modesto Carvalhosa – Não é só a maior hoje. É a maior de todos os tempos.

Brasileiros – No que diz respeito ao patrimônio da empresa, a Odebrecht, é o volume do dinheiro que está sendo disputado, não é?
M.C. – É briga de duas famílias que envolve bilhões de reais. Cinco bilhões? Cinquenta bilhões? Nem consigo imaginar. Estou nessa história aí como o garçom que ouve uma conversa de negócio bilionário enquanto serve à mesa. Eu sou o garçom. Ouve falar em bilhões, mas não sabe bem do que se trata.

Brasileiros – Mas o senhor sabe bem do que se trata, não é? Defende o lado minoritário.
M.C. – É uma tradição na minha vida profissional. Sempre defendi os minoritários nos meus livros e nas minhas palestras. Sou conhecido como uma pessoa que defende os minoritários. O que cria uma situação bastante irônica. Muitas vezes, os controladores de uma empresa também vêm buscar meus serviços. Ganha um sentido simbólico: o tradicional defensor do minoritário que de repente defende o majoritário vale mais do que o advogado que só defende os majoritários.

Brasileiros – E conhece as manhas do outro lado… Mas, enfim, em que pé anda a briga dentro da Odebrecht? Vai dar acordo ou a disputa vai até as últimas consequências?
M.C. – Vai para arbitragem. É o que espero. Estava prevista em contrato a arbitragem, em caso de disputa. Mas a Odebrecht resistiu. Achou que a arbitragem seria arriscada, porque, de fato, fez tudo errado, não tem razão nenhuma no que foi feito. Aí, optou por despejar o poder de uma das maiores companhias do Brasil e do mundo, nascida na Bahia, sobre o Judiciário da Bahia. Imaginou que teria uma influência enorme sobre os juízes baianos. Só que o Judiciário repeliu unanimemente as pretensões da Odebrecht – da juíza que trata o caso às instâncias superiores. Ainda tentou entrar com um recurso no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, e o Tribunal de Justiça da Bahia recusou o envio do recurso para Brasília. O placar está 12 a 0 contra a Odebrecht. É um número expressivo: das 12 medidas tomadas pela família Odebrecht, 12 foram repelidas. Vai acabar em arbitragem. Que é uma forma moderna, independente e rápida de resolver questões societárias dessa monta. Ninguém consegue usar de influência política sobre um árbitro independente.

Brasileiros – Pelo tamanho da causa, pode ser um árbitro internacional?
M.C. – Internacional, nacional, não importa. Um sujeito de notável saber não vai ser influenciado. É um sistema cada vez mais usado. O Supremo tem incentivado a arbitragem e a conciliação. O STJ também. Essa é uma causa interessante, já que pode ganhar um sentido exemplar. Começou em setembro de 2010 e continua na mídia.

Brasileiros – Só para lembrar: que outra disputa importante foi para a arbitragem fora ou dentro de sua alçada?
M.C. – A questão Bradesco versus Daniel Dantas em torno das ações da Brasil Telecom. Um caso enorme e que também está em regime de arbitragem é o do Pão de Açúcar, o Casino francês contra o Abilio Diniz, na Câmara de Comércio de Paris. É a tendência em 100% dos contratos societários hoje.

Brasileiros – Já ouvi falar em casos de conflitos em empresas de sócios judeus em que o árbitro é o rabino.
M.C. – Isso é mais ou menos recente. Uns cinco mil anos, por aí.

Brasileiros – E o Papa? Ninguém nunca se lembrou de chamar Sua Santidade para uma arbitragem entre católicos?
M.C. – Você já viu isso? (rindo) Na minha longa carreira de advogado, só participei uma vez do que chamam de conciliação de rabino. Um caso seriíssimo. O rabino era da família Feffer.

Brasileiros – Max Feffer?
M.C. – Daniel Feffer, acho. O rabino tem autoridade absoluta. Os conflitos na colônia judaica geralmente são tratados assim. Ancestralmente. Há milênios. É uma forma de conciliação. Hoje, no Brasil, a conciliação está sendo implantada pelo Conselho Nacional de Justiça. E também incentivada pela ministra Nancy Andrighi, no STJ. O ministro Asfor Rocha também é a favor. No Tribunal de São Paulo, há muitos anos se aceita a conciliação.

Brasileiros – Agiliza a Justiça, não é? E dispensa muito papel.
M.C. – É um sistema mais rápido e informal. Participei de uma arbitragem interessante. Éramos dois árbitros, eu e um outro. Chegaram as partes. Gente importante. E os advogados, antipáticos pra caramba. Vi aquilo e falei: “Vamos tirar o paletó, gente”. Quebrou a empáfia, o formalismo.

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Brasileiros – Por que os processos duram anos no Brasil? Excesso de burocracia?
M.C. – O problema não está no detalhe, está no todo. Sob o ponto de vista do serviço público, o Brasil é um país colonial. O exercício do poder público é absolutamente arcaico e corporativista. O juiz, por exemplo, tem o direito à inamovibilidade. Não pode ser removido a não ser que queira, não pode ser demitido. Isso vem da colônia. Como aqui era um território absolutamente inóspito, os juízes vinham de fora. Daí a expressão: juiz de fora. Os juízes vinham de Portugal protegidos por esses três requisitos: inamovível, irredutível e absolutamente não podia ser demitido. Para o resto da vida. Nenhum país desenvolvido tem uma tradição assim. Nos Estados Unidos, os juízes são eleitos e têm mandatos. Depois de algum tempo, vão embora. Aqui são essas figuras que não precisam dar satisfação a ninguém. Criam uma noção corporativa de autobenefícios. É um poder. Não é que “Poder Judiciário” seja apenas uma designação constitucional. Ele é um poder mesmo. As pessoas se sentem poderosas. Não têm nada a ver com a necessidade de atender o interesse público na hora de proclamar as sentenças. Estão aí pelas solenidades, os rituais da toga e a politicagem interna. Grupos que se odeiam, entende? Um é candidato a presidente, o outro entra com mandato de segurança. E trabalham pouco. Os juízes, pode-se dizer que trabalham um pouco mais; mas os desembargadores não trabalham nada. Vivem indo a congressos, a simpósios, seminários, cursos no exterior, férias de dois meses, licença prêmio. Que mais? Nojo. Sabe o que é nojo?

Brasileiros – Nojo?
M.C. – Licença-nojo é o seguinte: quando morre um parente, você fica uma semana em casa chorando por ele. Coisa das Ilhas Gregas, daquele filme Zorba, o Grego, com as carpideiras… Há uma série de benefícios, rendimentos fabulosos, auxílio moradia, auxílio isso e aquilo. É a mesma coisa que se vê no Poder Legislativo: nada a ver com o compromisso de prestar serviço público. Nenhuma ligação com a população e seus interesses. Todos querem o poder. Meu partido reivindica um Ministério. Sai um ministro corrupto, entra outro político. O Brasil, na política, está no estágio das Capitanias Hereditárias. O Brasil não é de Terceiro nem de Primeiro Mundo, é um país colonial. As instituições são coloniais. O Poder Executivo ainda tem de batalhar, de quatro em quatro anos, para manter o poder. No Judiciário, ele é vitalício.

Brasileiros – Essa briga do CNJ com o Supremo está nesse contexto? Uma disputa pela transparência e prestação de serviço no Judiciário ou a questão é a suspeita de corrupção em um e outro caso?
M.C. – Em todo o mundo civilizado, democrático, na vigência do estado de Direito, existe um controle externo das atividades de cada poder. O Poder Executivo tem de se explicar ao Tribunal de Contas, certo? O Legislativo é cobrado pelo eleitor. O Judiciário não tinha um controle externo, mas havia essa demanda, vamos dizer, internacional da criação de um controle externo do Judiciário para o Brasil ser admitido como um país de ranking internacional aceitável. Aí, criou-se o Conselho Nacional de Justiça. Acontece que o CNJ, por alguma razão, virou uma entidade muito ativa. Não só na questão da fiscalização de juízes, como também no plano humanitário. Ao decidir mergulhar nas penitenciárias, como fez. Tem gente presa há dez anos e sem nenhum processo. O Judiciário não julga e fica lá o sujeito mofando dez anos no presídio porque bateu no carteiro. O CNJ foi lá e tirou gente que não devia estar. E faz uma série de coisas ligadas ao interesse público de prestação jurisdicional. Prestigia a arbitragem. O controle da moralidade no Judiciário é uma entre essas outras atividades. Mas há uma resistência enorme. Os magistrados têm vitaliciedade. Nunca foram tocados. Então, como pode vir agora um sujeito fiscalizar a atividades deles? Não admitem. É como um feudo do século 12 na Normandia, chega o rei da França com seu exército e diz que agora o território também é jurisdicionado também por ele, o rei da França. “No meu feudo você não entra”, diz o outro. O feudo é meu tribunal.

Brasileiros – Então não é uma briga pessoal de uma corregedora Eliana Calmon com uns tantos magistrados.
M.C. – A questão é cultural. O exercício do poder com pompa. Por que contar à sociedade quais são seus rendimentos? O Supremo Tribunal, a princípio, refletiu essa cultura do feudo judiciário, mas afinal se retratou, pelo menos parcialmente, dizendo que CNJ tem toda a obrigação de fiscalizar.

Brasileiros – Não conheço um único país, com a exceção talvez dos Estados Unidos, onde a opinião pública seja exposta diariamente às figuras do alto escalão do Judiciário. Os ministros do Supremo têm uma superexposição de mídia. Falam o tempo todo sobre tudo – até o que está fora da alçada deles. Discutem política, só falta falar de carnaval e de futebol, se é que já não falaram. Na França, ninguém conhece um único juiz da Corte Suprema. Ou na Inglaterra, na Alemanha, no Japão…
M.C. – É, não dão entrevista e só falam nos autos.

Brasileiros – É um paradoxo que me intriga: querem preservar a intimidade dos juízes e do Judiciário, mas são loucos por um holofote.
M.C. – Aconteceu aqui um fenômeno interessante. Quando Collor foi eleito presidente, depois de quase 30 anos sem eleição direta, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral era o Francisco Rezek. Um brilho de pessoa. Mas era uma eleição especial, e a imprensa ficou ali enchendo a paciência do Rezek que, além de presidente do TSE, era ministro do Supremo. Foi aí que a moda pegou. Rezek dava entrevista todo dia. Culpa de 20 e tantos anos de ditadura. Mas, no resto do mundo, você não vê nenhum ministro falar fora dos autos.

Brasileiros – Não é só vaidade?
M.C. – Nem sempre isso é ruim. Veja o caso recente do ministro do Supremo, Ricardo Lewandowski. Foi ao jornal e disse que pode haver prescrição no processo do mensalão. Ele é um juiz brilhante, correto e honesto. Talvez tenha sido um pouco ingênuo, mas acabou prestando um serviço ao País. Se não tivesse dado a entrevista, talvez o mensalão acabasse prescrevendo. mesmo.

Brasileiros – O senhor fez parte de uma Comissão de Ética criada pelo presidente Itamar Franco. O que vinha a ser aquilo? Funcionou?
M.C. – Itamar queria que o grupo fizesse um Código de Ética para o servidor público. Passamos um ano trabalhando de graça, dentro do Palácio do Planalto, levantando todas as infiltrações que vinham daquele escândalo dos “anões do Orçamento”, está lembrado? O escândalo tinha ramificações no Ministério e nós ficamos um ano investigando as gangues ligadas aos “anões do Orçamento” dentro do Executivo e como o dinheiro vazava dos cofres públicos para os bolsos particulares. O objetivo não era só fazer um Código de Ética, era também implantar. Evangelizar os agentes públicos com um comportamento fundado na cidadania. Acontecia uma crise, íamos lá ao Ministério e discutíamos com os funcionários. Os chefões resistiam, mas os funcionários iam lá buscá-los para ouvir. O Código de Ética era um primor.

Brasileiros – O que aconteceu com ele?
M.C. – O governo Itamar foi muito curto, fizemos o que pudemos, com um entusiasmo juvenil, todo o nosso grupo. Produzimos o Código de Ética e iniciamos o processo de implantação. E, a partir do escândalo do Orçamento, fizemos um relatório mostrando as infiltrações da corrupção dentro dos ministérios. Itamar chamou o então presidente eleito, Fernando Henrique, e lhe entregou solenemente nosso relatório. A primeira coisa que Fernando Henrique fez foi arquivar o relatório e demitir a comissão.

Brasileiros – Demitiu uma comissão de voluntários?
M.C. – Demitidos. Sem nenhuma satisfação. Sem nenhuma condecoração. Nada. Em seguida, Fernando Henrique fez outro ato heroico: revogou o Código de Ética. A partir daí, entendi que Fernando Henrique é de fato um ser superior.

Brasileiros – Um nobre feudal.
M.C. – É que as campanhas eleitorais na época ainda não tinham o controle que existe hoje, só um controle muito relativo – ou nenhum. Fernando Henrique deve ter sido persuadido pelos empreiteiros, que lhe deram milhões na campanha, a revogar o Código de Ética, demitir a comissão e jogar no lixo o relatório. Que, aliás, era contundente. Mas está tudo registrado no Livro Negro da Corrupção, que organizei e lancei em 1995. Acabamos ganhando o Prêmio Jabuti de Literatura Jornalística. Veja a grandeza desse notável sociólogo, o Fernando Henrique!

Brasileiros – Do ponto de vista da corrupção, o que mudou de lá para cá?
M.C. – Mudou bastante. Houve aquela fase de passar a mão no caixa, direto, hábito disseminado no Brasil. Veio o governo Fernando Henrique e esse tipo de corrupção, não digo que foi abandonada… Mas a corrupção se sofisticou. Era a corrupção do inside trading, do sujeito que sabe para onde vai o câmbio, que compra o dólar a R$ 0,85 e no dia seguinte chega a mais de R$ 3. Muita gente se aproveitou daquela informação privilegiada. Gente que saiu do governo trilionária. Passar a mão no caixa ficou ultrapassado, mesmo porque havia o perigo de ser pilhado e o roubo ainda era considerado uma vergonha. O exemplo dos “anões do Orçamento”: todos cassados, menos um. No governo Lula, ninguém foi cassado. É uma diferença brutal.

Brasileiros – O que acabou, então, foi o pudor?
M.C. – Não existe mais. Na maior cara de pau, o corrupto diz: “Prove que sou corrupto”. O ministro sai por corrupção e diz: “Sou inocente”. E todos os presentes na posse do novo ministro se levantam e batem palmas para o ex-ministro. O que há é o elogio da corrupção, no sentido escolástico da palavra elogio. A exceção que tivemos foi o governo Itamar. Ele foi corretíssimo.

Brasileiros – Pelo visto, Itamar foi um presidente subestimado.
M.C. – Subestimado, sim. Depois que morreu o acharam lindo. Enquanto estava vivo, era só Itamar, o encrenqueiro. Então, resumindo: houve a fase de passar a mão no caixa, mas havia o perigo da cassação. Depois, houve o período do inside trading, o período do sofisticado sociólogo. Agora, passar a mão no caixa é a regra geral. Não há cassação, não há processo. Os ministros são demitidos pela presidente da República e nada acontece. Corrupção é um hábito nacional, generalizado. Um País totalmente patrimonialista, que confunde o dinheiro público com o dinheiro privado. Se tenho um orçamento de 16 bilhões no meu ministério, por que é que vou sair pobre? O cara compra apartamento no exterior e quadros do Fernand Léger. Inflaciona o mundo todo. É a turma da Quinta Internacional, a Internacional dos corruptos. Corruptos brasileiros e corruptos russos inflacionando o mercado de imóveis em Paris e em Miami. Comprando quadros caríssimos.

Brasileiros – O senhor é a favor do financiamento público das campanhas eleitorais?
M.C. – Sou. Acho importante proibir qualquer tipo de financiamento privado. Sou também a favor do sistema de lista por partidos. Funciona em vários países. A lista pode criar uma oligarquia dentro dos partidos. Mas pelo menos você vota no partido, não vota no assassino, no cara da motosserra. Os partidos terão seus donos, seus potentados, o (governador Geraldo) Alckmin será eternamente o primeiro da lista do PSDB. Mas é um avanço. A democracia perfeita não existe. Ela está aí para melhorar o processo civilizatório. São pequenas melhoras. No Brasil, por causa dessa democracia sórdida e corrupta, a gente tem de se proteger com coisas como o Código do Consumidor, a lei Maria da Penha, a legislação da união civil dos homossexuais, a Ficha Limpa. O voto de lista tem esse sentido. Diminui o número de candidatos bandidos. O cara de direita vai votar no partido do Maluf. Tem os que votam no PT. Eu voto no PSDB.

Brasileiros – No PSDB?
M.C. – No PSDB. Sempre fui muito ligado ao ex-governador Franco Montoro.

Brasileiros – O senhor já foi mais radical. Comandou a primeira greve de professores na USP, durante o regime militar.
M.C. – A primeira greve, professores e servidores juntos. O Geisel era um presidente mais civilizado, mas com uma terrível vocação ditatorial. Não queria que torturassem e matassem, mas era louco para cassar. Eu era presidente da Associação de Docentes da USP (Adusp), e em um seminário ouvi a professora Eunice Durham dizer: “A melhor maneira de atacar a ditadura é tratar de assuntos da sociedade, porque aí não há censura”. Um exemplo foi o episódio da Escola Caetano de Campos, em 1975. A gente não deixou demolir a escola. Foi uma baderna. A imprensa dava manchete todos os dias. Desafiamos o Metrô, desmoralizamos a Prefeitura.

Brasileiros – Mas e a tal greve?
M.C. – Meu vice era o professor Antonio Candido. Além de outras qualidades, um enfant terrible. A gente pensou: não faz sentido sair à rua gritando “abaixo a ditadura” porque vem a cavalaria e todo mundo sabe o que acontece. E o povo não gosta dessas coisas que lhe tiram o sentimento de segurança. Fizemos a greve. Começou com os professores e funcionários da USP, mobilizou o Hospital das Clínicas e foi se ramificando até virar greve de todo o funcionalismo. Ao mesmo tempo, sem que houvesse nada combinado, os metalúrgicos faziam greve em São Bernardo. As ideias estavam no ar. Somados, os movimentos abalaram profundamente as autoridades e tinha um general aí, apelidado de Bebê de Rosemary, de tão pequenino que era, não me lembro o nome…

Brasileiros – General Milton Tavares.
M.C. – O Bebê de Rosemary… Ele andava de helicóptero sobre nós. O Bebê era tão baixinho, pesava tão pouco, que o helicóptero podia ficar parado no ar. Nós nos divertimos para caramba. Acabou todo mundo no DOPS.

Brasileiros – Imagino que foi um bom treino para o trabalho no Patrimônio Histórico: comprar brigas e contrariar interesses. Tombar a Serra do Mar, por exemplo, deve ter sido uma parada.
M.C. – Ainda é. De vez em quando, tentam pegar um pedacinho. Tinha um louco a meu lado, naquela briga: o Montoro. Não é porque ele morreu que digo isso, mas o Montoro tinha uma sensibilidade que ia muito além da política. Tinha visão do Direito, da Filosofia, do meio-ambiente. Gostava de delegar. Ele colocou no CONDEPHAAT porque sabia que eu era um louco por esse negócio de patrimônio. Eu disse: “Vamos tombar a Serra do Mar”. E o Aziz Ab’Saber: “É um absurdo”. O Ab’Saber era o dono da Geografia. Sugeriu que tombássemos uma ou outra mancha vegetal. Insisti: “Vamos tombar tudo”. O Montoro comprava as brigas até o fim. Foi também o caso do tombamento dos Jardins, em São Paulo. O Montoro morava no Jardim Paulista e aceitou a ideia.

Brasileiros – Tombar bairro de uma cidade, nunca tinha acontecido, não é?
M.C. – E o prefeito era o Jânio Quadros. Tinha ódio do Montoro, ficou com ódio de mim. Ele me chamava de El Tombador: “O que El Tombador aprontou hoje?”. A gente anunciava os tombamentos em cerimônias extraordinárias, centenas de pessoas, o governador. Jânio nunca foi convidado. Disse aos repórteres que ia destombar tudo o que tínhamos tombado, plantar torres altíssimas nos Jardins, que ia arrasar o sistema viário. Os repórteres vinham me entrevistar e eu respondia (com ironia): “Não acredito que o prefeito tenha dito isso. Ele é um homem ilustre, uma das pessoas mais inteligentes que o Brasil tem”. O Jânio falava tão mal de mim que um dia a secretária me avisou que o governador Montoro estava marcando uma audiência comigo. Estranhei: o governador? Afinal, o CONDEPHAAT era um órgão de décimo escalão. Peguei o carro oficial, um fusquinha, se você quisesse andar a mais de 50 KM por hora era capaz de morrer asfixiado pelo gás carbônico. Eu me apresentei ao Montoro e ele explicou que não tinha nada a dizer, não. “Só quero mostrar que estou prestigiando você”.

Brasileiros – Em que consiste o tombamento dos Jardins?
M.C. – Tombamos a cobertura vegetal, o sistema viário, a chamada área de edificância. Quer dizer, não pode reunir lotes, não pode construir mais do que já estava construído no momento do tombamento, não dá para construir prédios. O Montoro era incrível. Me disse, literalmente: “Daqui a 90 anos, aquilo ali vai ser um Central Park”. Disse 90, podia ter dito 50 ou 100 anos. Mas a profecia é esta: vai ser, do Ibirapuera à Avenida Rebouças, uma área de respiro para a cidade. Era um visionário.

Brasileiros – Aos 80 anos, com apartamento alugado em Paris, quais são os seus planos?
M.C. – Vou continuar trabalhando. E quero continuar me divertindo com as coisas que acontecem.

 


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