Enquanto há impasse sobre o impeachment, a agenda de Michel Temer (PMDB) avança a passos largos, porém bambos, em meio a frágeis alianças e um futuro nada promissor para a saúde pública – apesar do nome do plano do pemedebista querer inferir o contrário. Nesta semana, foi lançado o documento “Uma ponte para o futuro”, um rascunho da estratégia de governo de Temer. São muitos os aspectos. Mas no que tange à saúde pública, a proposta é arrasadora e um ensaio para a retomada da falecida, porém prestes a ressuscitar, “Agenda Brasil”.
Quem se lembra? Em agosto de 2015, Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, entregou à presidenta Dilma Rousseff uma proposta para a retomada do crescimento. A guinada rumo ao equilíbrio fiscal previa nada mais, nada menos, que a cobrança por serviços no SUS –o que enterrava de vez um projeto de saúde universal e pública invejado no mundo inteiro e conquistado com muita luta pela sociedade civil.
O que o plano de Temer propõe agora é acabar com as vinculações constitucionais de orçamentos de algumas áreas. O governo federal é obrigado por lei a gastar uma determinada porcentagem de seus recursos com setores considerados prioritários. Saúde, educação, assistência social e previdência são alguns. O mecanismo foi proposto pela Constituição de 1988. Atualmente, Estados e municípios devem aplicar 15% das suas receitas com saúde –e o governo federal, 12%.
Muitos, contudo, consideram que essa vinculação de receitas impõe uma camisa de força sobre o orçamento. Afinal, com esses recursos obrigatórios sobrariam poucos recursos para outros projetos. Por isso, foi criado em 1994 uma “jogada” que permite desvincular parte desse montante -todos os governos lançaram mão dele, entre tucanos e petistas. É a chamada DRU (Desvinculação de Receitas da União).
Esse mecanismo “dribla” a Constituição e permite que, apesar de se ter que reservar recursos para a saúde e educação, é possível que 20% desse montante vinculado seja “retirado” para onde o governo achar que deve.
Resumindo, o governo é obrigado a gastar X com saúde, mas 20% desse X ele pode simplesmente gastar com outra coisa. Para ficar mais concreto: suponhamos que o seu salário seja R$ 4000 previstos em contrato, mas uma cláusula diz que o seu patrão pode pegar 20% desse valor e pagar uma outra pessoa. Na prática, então, o seu salário é de R$ 3200.
Um ensaio para a total desvinculação
O que o Temer quer é que se acabe com qualquer vinculação. Assim, em tese, se o governo quiser tirar 100% da saúde, ele pode. Muitos desses recursos vão para a garantia do superávit primário, o quanto o governo consegue economizar para o pagamento de juros da dívida pública. A garantia do superávit mostra aos mercados que “está tudo ok com as contas” e, em tese, garante o investimento.
“Na forma como está desenhada na Constituição e nas leis posteriores, a excessiva rigidez nas despesas torna o desequilíbrio fiscal permanente e cada vez mais grave”, diz o documento do PMDB. “Para um novo regime fiscal, voltado para o crescimento, e não para o impasse e a estagnação, precisamos de novo regime orçamentário, com o fim de todas as vinculações”, conclui o texto.
Mas, enquanto o plano de Temer sinaliza acabar totalmente com a vinculação, uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) proposta pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR) e aprovada em primeiro turno no Senado, vai aumentar a alíquota que o governo pode desvincular –de 20% para 25%. Pelo projeto, essa “mobilidade do orçamento” também poderia ser adotada por Estados e Municípios – e não somente pelo Governo Federal, como é hoje.
Nem quem é a favor do impeachment quer o fim do SUS
Um levantamento feito numa das maiores manifestações pró-impeachment em agosto de 2015 mostrou que a maioria dos presentes é a favor que o Estado ofereça saúde e educação para os brasileiros. Também grande parte dos entrevistados quer que esses serviços sejam oferecidos gratuitamente. A pesquisa foi feita e coordenada por Pablo Ortellado, professor da USP, Esther Solano, da Unifesp, e Lucia Nader, da Open Society.
Interessante observar o vácuo de representatividade que essa pesquisa mostra. Temer não representa aqueles que foram às ruas pedir a saída do Dilma Rousseff. E, tampouco, representam os movimentos que organizaram as manifestações. Em entrevista ao El País, Fabio Ostermann, do Movimento Brasil Livre, disse ser “contra o Sistema Único de Saúde”.
Reação da sociedade civil
Enquanto isso, a sociedade civil está tentando ganhar uma luta por vez. O foco agora é tentar conter o avanço da PEC. Nessa luta, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) enviou uma carta ao Senado para barrar a proposta. A entidade reitera que a emenda desrespeita a vontade popular “expressa em mais de 2,2 milhões de assinaturas que pediam por 10% das Receitas Correntes Brutas da União.”
O CNS também diz que a emenda vai acabar com as condições do SUS, que já não são adequadas. “Será a redução da capacidade de financiamento já insuficiente para o SUS constitucional”, diz.
“Em outros termos, diante do aumento dos casos de dengue, vírus Zika, H1N1 e outras doenças relacionadas e diante dos cálculos feitos por especialistas de que a insuficiência orçamentária tem crescido desde 2014, atingindo neste ano a cifra superior a R $ 20 bilhões para manter o padrão de gastos de dois anos antes, o Senado Federal poderá deteriorar as condições materiais de atendimento de saúde à população.”
O médico sanitarista Hêider Aurélio Pinto, que já foi diretor do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde, diz em artigo que o PMDB ensaia uma “tempestade” para o Sistema Único de Saúde que viabilizaria o total desmonte do sistema.
A satisfação com o SUS, diz ele, tenderia a minguar com um sistema cada vez mais subfinanciado, abrindo espaço para propostas duvidosas, como o Projeto de Emenda Constitucional 451/2014, de autoria de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), de cobrar pelo SUS. Foi com base nele que Renan Calheiros (PMDB-AL) montou o seu projeto de saúde pública na Agenda Brasil.
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