Manual do perfeito midiota – 21

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Caro midiota.

Sabe o que se comemora no dia 15 de maio?

É o Dia Internacional dos Objetores de Consciência, criado pela ONU para reforçar o direito do cidadão de se opor a uma medida legal ou a qualquer decisão de instituições públicas que interfiram em sua vida pessoal ou que afete seus princípios morais, éticos, religiosos.

Caro midiota.

Sabe o que é “estado de desobediência civil”?

É quando um grupo de pessoas, por exemplo, a população – ou parte dela – considera que uma decisão governamental fere seus direitos, seus valores morais ou seus princípios éticos.

Um passarinho me contou que em alguns Estados brasileiros pode ocorrer a organização de milhões de objetores de consciência em um projeto de desobediência civil permanente, caso o vice-presidente da República ou qualquer outro indivíduo assuma o poder Executivo com base em um processo considerado ilegítimo, ainda que respaldado por uma decisão do Congresso Nacional.

Pelo menos um governador do Nordeste está consultando setores da sociedade para verificar a conveniência ou possibilidade de ocorrer esse movimento.

Esse conceito de desobediência civil é extremamente consolidado em democracias maduras, e já aconteceu no Brasil de forma desorganizada, mas eficaz.

Foi delineado no século XIX por um cidadão americano de origem francesa chamado Henry Thoreaux.

Esse princípio também foi analisado por pensadores como Hanna Arendt e Norberto Bobbio.

Agora imagine as consequências de uma decisão na qual um ou mais Estados e ou municípios, além de sindicatos, associações de estudantes e cidadãos em geral, organizados ou não, se neguem a reconhecer qualquer medida legal emanada de um governo que considerem ilegítimo, ainda que temporário.

Esse conceito de desobediência civil é extremamente consolidado em democracias maduras, e já aconteceu no Brasil de forma desorganizada, mas eficaz. Foto: Lula Marques/Fotos Públicas (27/04/2016)
Esse conceito de desobediência civil é extremamente consolidado em democracias maduras, e já aconteceu no Brasil de forma desorganizada, mas eficaz. Foto: Lula Marques/Fotos Públicas (27/04/2016)

“Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”.

Você certamente tem ouvido com frequência esse ditado popular nos últimos dias. Provavelmente também tem usado essa metáfora para definir a situação política criada com o avanço do processo de impeachment da presidente da República.

O que talvez você não saiba é que está se referindo ao título de uma peça escrita em 1966 por Oduvaldo Vianna Filho em parceria com o poeta Ferreira Gullar, que se tornou uma referência do chamado Teatro da Resistência, movimento cultural de oposição à ditadura militar.

Ele trata justamente de um cidadão que, premido pelas circunstâncias da vida, se vê obrigado a quebrar as regras para sobreviver. Ou seja, trata de certa flexibilidade das normas legais diante de uma situação grave.

Estamos aqui supondo que você é apenas um midiota, não um desses analfabetos políticos que têm saudade da ditadura, pois com esses não é possível fazer qualquer contato inteligente.

A circunstância criada pelo projeto de golpe que pretende substituir uma presidente eleita, contra a qual não há denúncia de crime, por um grupo político sobre o qual pesam graves acusações e suspeitas é não apenas uma situação na qual o bicho “pega” ou “come” – é também a justificativa para um movimento massivo de objetores de consciência em desobediência civil.

E não se trata apenas do fato de que o movimento de derrubada da presidente vai acabar colocando a chave do cofre público nas mãos de pessoas suspeitas de não tratarem com o devido cuidado os recursos do Estado.

(Essa é a razão pela qual você não tem tido muito ânimo para bater panelas ou para vestir verde e amarelo e desfilar sua indignação e sua verve moralista pelas ruas: você está desconfiando de que foi usado e, se lhe perguntassem, até diria que não foi para isso que você saiu do casulo. Isso se você se sente desconfortável ao lado de pessoas como Eduardo Cunha).

Trata-se do fato de que milhões de brasileiros, que votaram ou não em Dilma Rousseff, têm o direito legal de não reconhecer a autoridade de seu eventual substituto.

Até mesmo pessoas que foram simpáticas ao processo de impeachment podem decidir que não querem esse grupo no poder enquanto não forem todos julgados pelo STF.

Mas preste atenção: a mídia tradicional já está criando o clima para que você aceite como normal essa transição de uma presidente honesta para  um grupo de homens nem tanto.

Observe o conjunto das manchetes da semana: dá-se como certo um governo presidido pelo advogado Michel Temer, a tal ponto que os jornais e o noticiário do rádio e da TV anunciam futuros ministros, sugerem medidas econômicas, louvam intenções.

O vice-presidente Temer contratou uma empresa de comunicação e relações públicas para lustrar sua imagem e construir um discurso apaziguador.

Mas não pode escapar de sua própria natureza: por exemplo, ao anunciar que um eventual governo seu vai atender apenas os 5% mais pobres em políticas sociais, ele está sinalizando que irá interromper o modelo econômico criado em 2003, e que produziu o maior fenômeno de combate à pobreza  já ocorrido no Brasil.

Com isso, dá uma satisfação aos parceiros de golpe, cuja motivação sempre foi essa: a de priorizar o andar de cima e engambelar as classes médias com a ilusão do mercado livre.

Os desentendimentos que você deve estar notando se resumem ao seguinte: o Estado de S. Paulo e O Globo querem que Temer faça uma transição rápida mas sob a tutela do PSDB; a Folha de S.Paulo aceita qualquer solução, desde que o ex-senador José Serra tenha o papel principal e tenha asfaltado o caminho para sua eleição ao Planalto em 2018. Aquelas revistas semanais de informação que você aprecia querem qualquer coisa, desde que o plano inclua a cassação dos direitos políticos do sr. Lula da Silva.

Talvez você não saiba, mas consultores ligados à Rede da ex-ministra Marina Silva estão convencidos de que uma chapa Lula-Ciro Gomes teria grandes chances de vencer em primeiro turno na próxima eleição.

A situação ficou complicada, porque boa parte do PMDB não aceita ser usada como a mão do gato e depois entregar a castanha aos tucanos. E se a banda dos golpistas não se afinar rapidamente, os dois próximos anos serão conturbados e Lula volta ao poder pelo voto.

Está vendo? A mídia tradicional criou um senso comum segundo o qual todos os males do mundo foram criados pelo governo de Dilma Rousseff.

Mas, como sabemos todos, o senso comum criado pela comunicação de massa é muito relativo, porque o discurso da mídia hegemônica não pretende construir uma sociedade crítica e reflexiva – seu propósito é fabricar midiotas.

Ah, e o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, acaba de acertar com os ministros do Supremo Tribunal Federal um reajuste de 53% a 78% para os magistrados – que vai beneficiar em cascata todo os servidores do setor, produzindo um impacto de mais de R$ 36 bilhões nos cofres públicos num prazo de três anos.

A presidente Dilma Rousseff tinha vetado essa proposta, e o STF acaba de conseguir o apoio das bancadas golpistas para derrubar o veto.

E você ainda achava que esse movimento em que você embarcou cheio de tesão cívico ia moralizar o País?

Sinto muito: se você correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come.

Para ler: Estado de desobediência e direito civil, de Carlos Fabián Pressacco, em quatro idiomas a escolher.

*Jornalista, mestre em Comunicação, com formação em gestão de qualidade e liderança e especialização em sustentabilidade. Autor dos livros “O Mal-Estar na Globalização”,”Satie”, “As Razões do Lobo”, “Escrever com Criatividade”, “O Diabo na Mídia” e “Histórias sem Salvaguardas”


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