Coluna_Salem

Foto: UNRWA/ Fotos Públicas (06/04/2015)
Foto: UNRWA/ Fotos Públicas (06/04/2015)

Um homem se dirige ao posto de saúde. Há cinco anos já não sabe pensar direito. Trabalho não há mais. E, se houvesse, seria mais difícil agora, sem os instrumentos que teve que vender. Uma parte da casa foi destruída. A escola já não funciona e as crianças estão à toa. Tudo está mais caro e ele já não tem a quem pedir emprestado. Muitas são as noites em que se dorme com fome. A água potável, antes tão abundante, agora é um luxo raro. As condições sanitárias são péssimas e mesmo doenças antes desaparecidas voltam com força. Vai agora ao hospital que, tantos outros tendo fechado ou sido bombardeados, estará apinhado de gente. Antes de chegar, passa por ele uma ambulância que ele não sabe ser falsa. Ela explode na esquina e ele já não pensará em nada.

Um outro menino, 9 ou 10 anos, chega a uma escola no Líbano. Caminhou alguns quilômetros desde o acampamento para chegar ali. Quer saber se há vagas. Já não as há, os refugiados são muitos, a escola não dá mais conta. Ele insiste. Exige as vagas. Hoje voltará para o lugar de onde veio, mas amanhã trará seus dois irmãos menores e é preciso que haja vagas.

Uma moça, jovem ainda, há não muito tempo brincava ainda os jogos de meninas. Seu mundo ainda era conhecido e seguro, antes que junto com a sua família fosse arrancada pela raiz da sua vida. Ela intui que algum negócio se prepara. Aquela senhora, em cuja aparência tudo é normalidade, à exceção da malícia nos olhos e do caráter esquivo de alguns gestos, fala docemente com o seu pai, que agora parece perdido e que há muitos dias não olha senão para o chão. A mãe, que chora permanentemente, agora parece fria e ausente, não quer ouvir a conversa e não ousa voltar-se para a filha. A falta de tudo e a fome que nunca antes tinham conhecido transformaram as coisas. Aquela substância que mantinha em pé e unia os seus parece se esfarelar. Ela intui que talvez esteja por desempenhar um papel maior naquela tragédia familiar. Sim, talvez seja ela o objeto do negócio.  Sim, certamente, será ela a por alimento na mesa.

*Salem Nasser é professor de Direito Internacional da FGV Direito SP


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