Já não se aplicam golpes como antigamente. Estudo recém-concluído por Pedro Estevam Serrano, professor de Direito do Estado da PUC-SP e pós-doutor pela Universidade de Lisboa, mostra que a tendência no mundo contemporâneo é que, em vez de golpes, ocorram medidas de exceção no interior de regimes democráticos. Nos Estados Unidos e na Europa, essas medidas surgem na forma de leis antiterroristas. Na América Latina, o mesmo recurso já culminou na interrupção de dois governos democráticos, em Honduras e no Paraguai. “No Brasil, temos um imenso risco de isso acontecer, porque existe contra a presidente da República um processo absolutamente ilegítimo, no sentido constitucional”, afirma Serrano. “É mais sofisticado do que o feito no Paraguai e em Honduras, mas não resiste a uma análise técnica.”
No caso brasileiro, não há uma agressão direta e clara à Constituição. Na prática, instituições encarregadas de protegê-la, como a Câmara dos Deputados, o Senado e o Supremo Tribunal Federal, participam do processo de forma direta. “O Judiciário está agindo como um soberano absoluto. Com a legitimidade da toga, ele suspende a fonte dessa autoridade, que é a Constituição”, observa o jurista. Ele também não poupa críticas aos governos Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva, que teriam deixado em segundo plano os juristas progressistas, chamados garantistas, e se cercado daqueles que têm uma visão policial do sistema Judiciário: “Não é à toa que ministros do Supremo votem da forma que votam. Houve um projeto punitivista para esse ambiente que Lula adotou e Dilma seguiu”.
Brasileiros – Na sua opinião, o que o Brasil tem pela frente?
Pedro Estevam Serrano – Os estudos que fiz em relação a Honduras, Paraguai e Venezuela indicam que na América Latina tem se observado diferentes medidas de exceção. E, hoje em dia, medida de exceção é a técnica autoritária exercida no interior dos regimes democráticos. Na Europa, tem sido exercida em geral por meio de atos legislativos ou com caráter semelhante a atos legislativos. Um exemplo são as leis antiterrorismo. Nesse tipo de medida há a suspensão de direitos de ao menos uma parte da comunidade, a título de combater a figura do inimigo.
De proteger o Estado?
Proteger a sociedade e a figura do Estado, suspendendo o Direito. É a velha figura de Schmitt (Carl Schmitt, jurista alemão), que fundamentou a ditadura nazista. Veja que interessante. Hitler governou em ditadura, em Estado de Exceção, sem revogar a Constituição democrática de Weimar. Com base em um artigo mal interpretado da Constituição, ele estabeleceu um Estado de Exceção.
Então o termo Estado de Exceção vem da época de Hitler?
O Estado de Exceção advém do direito constitucional alemão de 1919, da Constituição de
Weimar, que foi utilizado por Hitler em 1933, para estabelecer a ditadura, depois do incêndio do Reichstag (o Parlamento alemão). Com o pretexto de aplicar a Constituição, ele a descumpria.
E hoje, o que significa?
Passou a ser uma figura da teoria geral do Estado no século XX. Significa uma forma de soberania absoluta exercida com características distintas da época do Renascimento. Nos horizontes da sociedade judaico-cristã, as ideias autoritárias mudaram o discurso para poder se legitimar. Deixaram de contestar a ideia de existirem direitos humanos. Passaram a defender que, em situações de emergência, era legítimo suspender esses direitos para garantir a segurança da sociedade e do Estado.
Como aconteceu no Brasil durante a ditadura.
Ocorreu inicialmente em Hitler e no fascismo. O comunista e o judeu eram os inimigos internos a combater. Esse modelo mais ou menos se espraiou por todas as ditaduras do século XX, de esquerda ou de direita. É o combate ao inimigo de classe pelo socialismo real. É o combate ao comunista pelas ditaduras na América Latina. O que caracteriza as ditaduras na América Latina é o chamado golpe. Eram governos de exceção. Depois, passa a haver um discurso universal de democracia. As medidas autoritárias não deixam de existir, mas se adaptam a esse discurso.
É o que acontece hoje no Brasil?
Acontece nos Estados Unidos, na Europa e na América Latina. Aconteceu em Honduras e no Paraguai, onde houve interrupção do regime democrático. Em Honduras, por determinação do Judiciário. No Paraguai, por uma decisão do Legislativo, apoiada pelo Judiciário. Na Venezuela, um governo de esquerda, acontece também pelo Judiciário, não para interromper o ciclo democrático, mas para perseguir opositores. A realidade é que utilizar o Judiciário e às vezes o Parlamento como fonte de exceção é algo comum na América Latina. A América Latina parece que não se dá bem com essa coisa de democracia.
Como fica o Brasil nesse cenário?
No Brasil temos um imenso risco de isso acontecer, porque existe contra a presidente da República um processo absolutamente ilegítimo no sentido jurídico, constitucional. É mais sofisticado do que o feito no Paraguai e em Honduras, onde a agressão ao texto constitucional foi muito evidente. No Brasil é um pouco mais complexo, mas não resiste a uma análise técnica também um pouco mais sofisticada.
Seria uma discussão do mérito?
Do mérito e da forma. A meu ver, existe no Brasil o uso do instituto do impeachment para finalidades diferentes das quais ele foi estabelecido. Com isso, se transforma esse instituto, previsto na Constituição, em uma medida de exceção, uma forma de interromper o ciclo democrático. O impeachment é uma fraude. Não há uma agressão direta e clara à Constituição. Ao contrário, os órgãos incumbidos de proteger a Constituição, o Senado, a Câmara e o Supremo são utilizados. A título de aplicar a Constituição, a subvertem. Os direitos políticos de uma parcela da comunidade, no caso do Brasil a esquerda ou a centro-esquerda, são suspensos.
Esses direitos já foram suspensos?
Não estou dizendo que hoje ocorre uma medida de exceção no Brasil. É cedo para dizer isso. Existe a possibilidade de ocorrer. Uma possibilidade que me atemoriza muito, porque já foi aprovada em uma primeira instância pela Câmara. Se o impeachment se concretizar no Legislativo e o Judiciário não suspendê-lo, teremos no Brasil uma medida de exceção semelhante às que ocorreram em Honduras e no Paraguai. Teria também alguma semelhança com a Venezuela. Só que no Brasil de uma forma mais intensa, porque também suspende o ciclo democrático.
Então, nessa divisão que ocorre na comunidade jurídica, como o senhor fica? É golpe ou não é?
Nem de um lado nem de outro. Não é golpe tecnicamente, porque golpe era algo típico do século XX. Golpe significa interromper o ciclo democrático para instaurar um governo de exceção. O termo golpe funciona bem na militância política. Não sou contra a militância usar. Ela não vai sair na rua gritando “não vai ter medida de exceção”.
O que pode ocorrer é uma medida de exceção na democracia?
Se esse processo culminar no impeachment da presidente, vamos ter uma medida de exceção no interior da democracia. Significa uma interrupção do ciclo democrático. Pode ter ou não um impacto maior no contrato social brasileiro.
Depende de quê?
De uma série de fatores. Qual o nível de suspensão de direitos que vai haver? Se a suspensão de direitos for pura e simplesmente interromper o governo democrático e entregar para o vice, é um nível menor. Vai haver perseguição política aos líderes de esquerda? Até que ponto o Judiciário vai ser usado? O Judiciário já está sendo usado como fator de interdição do mandato de Dilma. Foi dada uma liminar que proíbe a nomeação de Lula como ministro, quando é um direito dela nomeá-lo. Foi dada outra liminar proibindo Dilma de usar a rede de televisão, de falar com o povo. Foi proibida a voz da presidente perante a Nação, um elemento fundamental do exercício do mandato. O Judiciário já está interditando o mandato da presidente antes de se ter declarado impeachment.
Está havendo uma judicialização da política?
Mais do que isso. Há o uso do Judiciário como fonte de exceção e não do Direito. Schmitt tem uma frase interessante: “Soberano é aquele que tem a força de estabelecer exceção”. O Judiciário está agindo como um soberano absoluto. Com a legitimidade da toga, ele suspende a fonte dessa autoridade, que é a Constituição. Estão interditando o exercício do mandato antes de o impeachment acontecer. Isso vai ficar para a história.
Três ministros do Supremo disseram que o processo de impeachment está regular. Eles poderão julgar um possível recurso?
Primeiro, é um comportamento inadequado para ministros, porque eles estão se pronunciando sobre um caso que vai estar sujeito a julgamento deles. Segundo, existem duas questões em debate, que são técnicas, mas as pessoas têm que entender. Existem aqueles juristas que defendem não caber ao Supremo entrar no mérito da decisão. Dizem que, pela Constituição, cabe ao Senado decidir a questão com exclusividade. Existem outros juristas para os quais caberia ao Supremo decidir apenas as questões do que se chama de devido processo legal.
É o que está sendo chamado de rito?
Só vou entrar no debate da primeira corrente. Ela fala que o Supremo deve julgar apenas o devido processo legal, o que falaram esses três ministros. Devido processo legal é um princípio que está na Constituição. Não é apenas estabelecer o prazo, a defesa, a ordem. Devido processo legal significa, por exemplo, garantir que haja o mínimo de razoabilidade no enquadramento do fato na lei. Para mim, não há razoabilidade em falar que pedalada fiscal é crime de responsabilidade. O próprio ex-ministro Joaquim Barbosa levantou que também não há proporcionalidade. A pena aplicada tem que ser proporcional à conduta. Para mim, não há ilegalidade nessas manobras contábeis, mas, mesmo que se considere ilegal, não há proporção. A falta é muito pequena para gerar perda do mandato.
Quais os principais argumentos da presidente que, na sua opinião, o Supremo tem que analisar?
Primeiro, pedalada e decreto de crédito suplementar, eventualmente ilegais, nem de longe têm razoabilidade suficiente para enquadramento como crime de responsabilidade. Segundo, não têm proporcionalidade para serem enquadrados como crime de responsabilidade. O Supremo precisa entrar nisso de qualquer modo. Segundo, tem que entrar em algumas questões estritamente formais. A maioria dos deputados que votaram a favor do impeachment fundamentou a decisão de forma absolutamente ilegal, inconstitucional.
Quando dedicaram o voto à família, a Deus?
Não tem que fazer isso. Eles teriam que falar pelo menos “acompanho o relator”. Fundamentar o voto juridicamente. Eles não estavam exercendo uma função legislativa, mas jurisdicional atípica. Se entenderem que não é função jurisdicional atípica, então não tem sentido falar que o Senado decide com definitividade. Então o Supremo pode mexer em tudo. O único sentido dos que defendem que o Supremo não pode entrar no mérito é falar que o Legislativo exerce uma função jurisdicional atípica. Eles têm que se comportar como juízes e não como deputados. O relator não pode falar de Lava Jato. O deputado não pode oferecer o voto para Deus e para a família.
O Supremo tem que ser provocado para entrar nisso?
A presidente tem que provocar. O Supremo não age de ofício. Se ela não provocar, nós não poderemos falar em medida de exceção. Essa é uma das razões de ainda ser cedo para se falar em medida de exceção. Não sabemos o que vai acontecer. Se Dilma não provocar de forma adequada o Supremo, ninguém vai poder falar de medida de exceção.
E ela pode fazer essa provocação antes da votação no Senado?
A meu ver não. Teria que esperar pelo menos o Senado votar o afastamento dela da função. Até o afastamento da função não há o que em Direito se chama interesse de agir. O Senado pode negar o procedimento da Câmara. Ele está encarregado de fazer um juízo de aceitabilidade. Pode negar essa aceitabilidade até pelas razões que estou citando aqui. Uma vez que ele negue a aceitabilidade, Dilma continua exercendo a função. É só depois de o Senado negar a aceitabilidade que ela tem razões de interesse de agir.
Em todo o País, há manifestações contra e a favor do impeachment. A lei Antiterrorismo, sancionada recentemente, pode ser uma ameaça aos manifestantes, aos movimentos sociais?
Não tenho dúvida. Para mim, não tem outro sentido. O que se demonstrou no efeito do cumprimento dessas leis na Europa é que, em vez de resolver o problema do terrorismo, criou outro. O terrorismo é um problema grave, uma agressão à democracia, aos melhores valores do mundo ocidental. Mas a guerra antiterrorismo é um problema tão grande quanto o terrorismo, porque suspende direitos, injustiças acabam acontecendo. Além disso, não conseguiu alterar em nada a eficácia dos ataques terroristas. O sujeito que está disposto a morrer em um ataque terrorista está pouco se lixando se vai tomar dez ou 30 anos de cadeia. A sanção da lei penal não é eficaz para esse problema. O eficaz é a prevenção de segurança. Isso o Brasil já tem.
O que pode acontecer então?
Com essa onda punitivista e de direita que se espalha pelo Brasil, vão acabar enquadrando os movimentos sociais, as frentes de contestação política. É o que já estão fazendo com outras legislações. Originalmente, organização criminosa era o PCC (a facção Primeiro Comando da Capital). De repente, a lei de organização criminosa está sendo usada contra partido político, contra empresa de engenharia. Pode até ter cometido um crime ou outro, mas uma empresa de engenharia não é uma organização criminosa. Acredito que a mesma lógica vai acabar sendo aplicada em relação à lei de terrorismo.
A lei foi uma iniciativa do Executivo, não foi?
Inadequadamente. A Alemanha não aprovou até hoje. Em suma, no Brasil, estamos semeando fartamente, e o PT ajudou nisso, um Estado policial. Os juristas progressistas em geral reagiram a isso. Dilma não deu ouvidos. Lula já não dava. Essa esquerda, vamos dizer assim, petista, e eu fui do PT lá atrás, não dá ouvidos à área jurídica progressista.
No governo Lula, teve um projeto específico que os juristas progressistas questionaram e não foram atendidos?
Vários. Cada um tem a sua opinião, mas pelo menos o pessoal mais independente, com visão centro-esquerda, que não é ligado ao PSOL nem ao PT, onde me incluo, é garantista. A nossa visão é que as nomeações para ministros dos tribunais foram uma tragédia. Só teve nomeações de punitivistas, de pessoas que veem o sistema penal de uma forma punitiva, policial. Nos tribunais, a maioria é punitivista, não é garantista. Esse é um erro imenso da esquerda.
Isso se reflete na inação dos tribunais em relação às prisões coercitivas?
Claro. É um equívoco usar a condução coercitiva da forma como está sendo usada. Muito pior é a prisão preventiva para obter delação. Não pode prender para obter a delação. Tudo isso é contrário à nossa Constituição, que é garantista. Antes também havia abuso, mas esses métodos de investigação estão sendo usados pela primeira vez de forma sistemática.
Como isso se reflete no meio jurídico?
A jurisprudência também é um ambiente de luta política. Há uma luta entre um juízo garantista e um punitivista. Isso não quer dizer esquerda e direita. Tem gente de direita que é garantista, tem gente de esquerda que é punitivista. Então essa é uma divisão de quem defende os direitos da pessoa e quem não os defende como prioridade. No governo Lula, eu esperava um avanço maior em termos de direitos humanos, em particular na questão penitenciária.
Em qual sentido?
Duas coisas. Primeiro, diminuir o número de aprisionados. Ao contrário do que se fala no Brasil, nós punimos muito. Quarenta por cento dos presos não tiveram direito de defesa. O Brasil tem a quarta maior população aprisionada do mundo. Dependendo do jeito que se conta, vira a terceira. Só ficam Estados Unidos e China na frente. É uma maluquice. Há uma banalização da prisão preventiva no País. Com a força que teve em seu governo, Lula poderia ter interferido para mudar esse jeito de prender. E para mudar também dentro da cadeia. Ele não fez nada e foi um erro brutal. Dilma deu continuidade a isso. A impressão que me dá é que eles eram insensíveis a esse tipo de problema.
A ideia de punição está enraizada?
No poder, a esquerda entrou em um discurso populista de querer punir também. Lula entrou muito nisso e Dilma também. Os direitos humanos só passaram a ser relevantes a partir do mensalão, com os quadros de esquerda atingidos pelas medidas de exceção. Enquanto as medidas de exceção foram aplicadas contra os pobres nas periferias, nada foi feito.
A comunidade jurídica não atuou?
Durante 12 anos, a gente falava para a gente mesmo. Nunca fomos consultados para nada. Eu e outros juristas só entramos no Palácio do Planalto para dar um parecer contra o impeachment de Dilma. Antes, nunca fomos chamados para dialogar. Na minha área, chamavam a direita. Tanto no governo Lula quanto no Dilma. Não é à toa que ministros do Supremo votem da forma que votam. Houve um projeto punitivista para esse ambiente que Lula adotou e Dilma seguiu.
De sua parte, existe expectativa de mudança, caso Michel Temer assuma?
Celso Antônio Bandeira de Melo (jurista), um homem em quem confio, é amigo de Temer há muitos anos e garantiu-me que ele é um sujeito honrado. Eu não o conheço. Temer foi meu professor há anos, na PUC, mas eu era menino, tive uma relação muito distante com ele. Ele entrou para a política ainda na época do Montoro (governador Franco Montoro, nos anos 1980). Desde aqueles tempos, ele se distanciou da vida acadêmica. Mas sei que é um constitucionalista. Então espero que traga uma visão garantista, que todo constitucionalista tem que ter. Mas não posso assegurar isso. Schmitt era um grande constitucionalista.
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