O preço da paralisia

Para o cientista político André Singer, as eleições deste ano dificultam a aprovação de medidas impopulares. Foto: Luiza Sigulem
Para o cientista político André Singer, a votação final no Senado dificulta a aprovação de medidas impopulares. Foto: Luiza Sigulem

Não, a história ainda não acabou. Para o cientista político André Singer, livre docente da Universidade de São Paulo, “é necessário opor toda a resistência possível a essa tentativa de golpe”, pois “o que está em jogo não é apenas o mandato da presidente, mas a qualidade da democracia brasileira”. Autor do mais influente ensaio sobre a Era Lula (Os Sentidos do Lulismo: Reforma Gradual e Pacto Conservador, Cia. das Letras, 2012), Singer diz que o debate político vai se aprofundar nos próximos meses e exigirá que “todos os que estão preocupados com o futuro da democracia no Brasil se empenhem em todas as dimensões possíveis para evitar que o impeachment ocorra”.

É inegável que “as razões apontadas para o impeachment são muito fracas do ponto de vista constitucional: não há nenhuma evidência forte de crime de responsabilidade”. Não é um golpe militar, é “um golpe dentro da Constituição”, mas que certamente terá um preço enorme. “Isso significa que é preciso ir até o final das possibilidades, o que inclui agora o Senado e o Supremo Tribunal Federal. Qual vai ser o resultado final desse jogo? Impossível dizer agora.” Não resta dúvida de que “a tendência de o impedimento ser aprovado no Senado é forte. Mas não é possível decretar o fim do jogo antes que ele seja jogado”. Por isso toda a resistência que o governo e os movimentos sociais vêm opondo ao impeachment é inteiramente correta.

Caso o impeachment seja revertido no Senado, o que Dilma deveria fazer para reconstruir o governo?  “Eu diria agora que a primeira coisa a fazer é desenhar uma política econômica responsável, mas que aponte para o fim da recessão. É indispensável.” É claro que isso não poderá ser feito sem apoio do Congresso. Mas haveria espaço para tanto desde que se tomasse a decisão de orientar o governo nesse sentido. O grande problema é que, “evidentemente, a presidente não tomou esse caminho até aqui. Ela teve essa oportunidade no final do ano passado, quando o então ministro da Fazenda, Joaquim Levy, decidiu sair”. Contudo, isso não aconteceu.

E, mais uma vez, ela não se encaminhou nessa direção “nos primeiros meses deste 2016, quando ficou claro que o movimento em favor do impeachment iria crescer. Ela poderia ter tentado um movimento desse tipo, mas não o fez”. A recomposição do governo exigiria a sinalização de uma mudança de rumo na economia que até agora não surgiu.

É certo que o governo continuaria a enfrentar as dificuldades decorrentes da Operação Lava Jato. Nesse aspecto, “a postura da presidente tem sido correta, é preciso deixar que a operação caminhe. No entanto, a cada passo é preciso assinalar que ela não pode se transformar numa operação de caça ao PT, mas ser efetivamente uma iniciativa com vista à desmontagem da corrupção sistêmica. O conjunto dos partidos, certamente os mais relevantes, tem de ser instado a dar explicações, a mudar os seus procedimentos em proporção semelhante uns aos outros, senão não seria algo propriamente sistêmico”.

Caso o impeachment passe, o que se pode esperar de um governo Michel Temer? “O programa inicial do governo Temer é um programa de natureza liberal. Está escrito no documento Uma Ponte para o Futuro. Mais ajuste fiscal, alterações constitucionais para aumentar a desvinculação das receitas da União, mais ajuste na Previdência, alterações na legislação trabalhista, tudo isso numa direção liberal.” Mas essa, adverte Singer, é uma plataforma anunciada em outubro do ano passado. Caso o Senado Federal afaste Dilma e o vice assuma interinamente a Presidência até o julgamento se completar, “ele vai ter de fazer escolhas. Esse é um momento muito delicado para previsões, porque depende das escolhas que ele vai fazer. Nós vamos ter de aguardar, diante deste cenário, quais dessas opções serão efetivamente tomadas”.

Essas decisões não serão fáceis. Um novo governo a princípio é recebido com certa boa vontade, mas “esse tempo não será longo, porque o desemprego cresce e a recessão tende a se aprofundar. Então haverá rapidamente a cobrança de um alívio efetivo, e não só de um alívio nas expectativas”. Um governo do PMDB terá de enfrentar uma situação muito volátil, pois “ele será obrigado a tomar medidas rápidas, mas, se essas medidas derem resultados impopulares, que é uma das possibilidades efetivas diante do programa que ele anunciou no ano passado, isso pode alterar a própria votação final do Senado, pois não está definido necessariamente que a presidenta vá perder. E esse é um dos motivos pelos quais é obrigatório seguir adiante na luta para evitar o impeachment. O próprio início do programa alternativo, que não se sabe muito bem qual é, vai ser posto à prova numa fase em que ainda se tem uma presidente no cargo, embora afastada temporariamente. É uma situação extremamente indeterminada e passível de várias mudanças imprevisíveis”.

O calendário deste ano tampouco favorece Temer, uma vez que, a cada eleição municipal, ao menos 90 parlamentares se candidatam a algum cargo executivo. Esse fato cria uma dificuldade adicional para o vice-presidente, já que “ninguém vai querer se associar a um plano impopular”. “É um problema que quase propõe a quadratura do círculo para o vice-presidente. Temer anunciou um programa liberal de sacrifícios, um programa nitidamente impopular, em um contexto em que a população está esperando exatamente o contrário. É um quadro extremamente difícil de resolver.”
Além disso, Temer terá de equacionar um problema bastante perigoso: a situação de seu grande aliado, Eduardo Cunha. A oposição agora já emite sinais de que tentará desfazer sua aliança com o atual presidente da Câmara, mas este “tem a seu favor um nítido grupo que o apoia na Câmara dos Deputados e o fato de que ele foi figura-chave na vitória contra a presidente Dilma no âmbito da Câmara. Cunha certamente vai ser muito questionado e o destino dele agora passa a ser, talvez, o primeiro problema que o vice-presidente terá de resolver, talvez mesmo antes de assumir. Porque ele vai ter de tomar uma posição de grande dificuldade no partido que lidera, que é o PMDB”.

Com quais forças o vice-presidente poderá contar? “Num primeiro momento, é provável que conte com o PP, o PSD, o PRB, ou seja, partidos que optaram pelo ‘sim’ na Câmara a favor do impeachment e que são partidos mais alinhados com uma visão de tipo liberal. Os partidos com os quais ele terá de negociar são legendas do tipo PSDB e PSB, que têm outro tipo de ambição. Aí a negociação vai passar por uma questão de espaços e também de orientação de governo. Aqui vai entrar em jogo a capacidade política do vice-presidente de fazer uma costura mais ou menos ampla.”

A oposição a Temer deve reunir inicialmente aqueles partidos que podem ser classificados genericamente de esquerda: PT, PCdoB, PDT e PSOL. Além disso, “há uma força que passa a ser muito relevante e com a qual o vice-presidente teria que estabelecer um diálogo que neste momento me parece muito difícil: a Rede de Marina Silva. No atual contexto, a liderança da ex-senadora é muito relevante porque não tem compromisso com nenhum tipo de acusação que tenha aparecido na Operação Lava Jato nem com um problema sério que o vice-presidente terá de resolver, que é o que fazer com o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Acho que aí, embora tenha pouca força parlamentar, a ex-senadora Marina Silva poderá funcionar como o fiel da balança num eventual governo Temer”.

Marina ainda aposta na cassação da chapa Dilma-Temer no Tribunal Superior Eleitoral, mas “a tendência é isso ocorrer mais no final do ano do que de imediato. Os tempos do TSE são tempos mais dilatados. Não creio que haja uma decisão antes que um eventual governo Temer comece, sempre na hipótese de o Senado admitir o processo”.

Além das dificuldades no Legislativo, o peemedebista ainda teria de enfrentar sérias divisões na sociedade civil. Esta cisão já se manifesta no próprio empresariado que emprestou apoio ao afastamento de Dilma: existem setores que defendem um aumento de impostos para reequilibrar as contas públicas, enquanto outros (como os industriais ligados à Fiesp) rejeitam ostensivamente qualquer iniciativa nesse sentido. Isso exigiria de Temer a “capacidade de unificar posições que à primeira vista são incompatíveis. Eu devo confessar que até aqui não vi nada nesse sentido”.
“Mas estamos no meio de um torvelinho e é preciso esperar a cada dia as novidades que vão surgir. Em uma hora como esta os atores pesam e  têm escolhas a fazer, eles têm um papel ativo: não se trata simplesmente de gerenciar situações dadas, mas de inventar soluções diante das dificuldades”, observa Singer.

O vice-presidente também não terá um cenário tranquilo nas ruas, dado que a esquerda está claramente se rearticulando: “Acho que a esquerda está numa situação muito contraditória, porque ela está perdendo força no plano institucional, mas ganhando força no plano social. O que é compreensível, porque, à medida que ela vai sendo posta para fora do governo federal, ela vai perdendo capacidade de decisão nas instituições, mas fica mais livre para vocalizar o que é o imaginário e as posições daqueles setores que estão sendo nitidamente prejudicados com a ascensão de um projeto liberal”.

Assim, à medida que crescem as perspectivas de impedimento, “paradoxalmente a esquerda se fortalece no plano da sociedade, porque ela fica livre de uma carga quase insuportável: sustentar o programa atual do governo Dilma, que na prática é o programa do PSDB, que, embora derrotado na eleição de 2014, acabou sendo trazido para o âmbito do Poder Executivo pela própria presidenta Dilma”.

Está ocorrendo, portanto, “uma evidente rearticulação da esquerda no plano social, e ela fica cada vez mais forte porque esse projeto liberal, com essa marca de desregulamentação e de redução do papel do Estado e de aumento do papel do mercado, vai sofrer grande resistência”. Singer ressalta que, em meio a toda a crise dos últimos meses, os setores de esquerda têm se mostrado capazes de manter a unidade: “A esquerda se fragmentou relativamente pouco nestes últimos meses” e construiu uma frente capaz de unificar suas diversas correntes diante do avanço liberal e conservador.

Enquanto a esquerda vem aumentando a sua presença nas ruas, a direita tende a se desmobilizar, caso Temer de fato assuma a Presidência. “Essa coalizão vai começar a se fragmentar.” Os conservadores vão se dividir porque está em jogo o poder: “Eles têm mais força institucional, mais lugares de poder para ocupar, e portanto há mais disputa”.

 Mas existe um setor que cresceu neste período, aquele representado pelo deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), “que tentará manter uma opção mobilizadora porque tem como objetivo extinguir, se possível, o PT e tudo o que possa representar uma alternativa popular”. Segundo Singer, “há um dado surpreendente, no último Datafolha. Entre os eleitores com mais de dez salários mínimos de renda mensal, a intenção de voto em Bolsonaro chegou a 23%. É um número muito alto. Isso mostra que essa opção extremista ganhou algum apelo nos setores médios. Mas não creio que isso, desde que seja uma alternativa isolada, consiga ir muito longe. Mas acredito que essa faixa tentará se manter mobilizada”.

Para o professor da USP, a crise política ainda tende a se prolongar, por duas razões. A primeira resulta da tentativa de solucionar as dificuldades econômicas por meio de um ajuste fiscal ortodoxo, o que só tem provocado “uma piora significativa das condições de emprego e renda”, que só poderá estabilizar a economia brasileira a um custo social extremamente elevado.

A segunda razão que explica a persistência da crise é a Operação Lava Jato, que criou uma “instabilidade política crônica. Aliás, deve-se dizer que já estamos assistindo  a uma desmontagem do sistema partidário que prevaleceu de 1994 para cá. Nós tínhamos uma estrutura de esquerda, centro e direita, representados relativamente pelo PT, PMDB e PSDB, que já está fazendo água. O PT está certamente muito abalado pela Operação Lava Jato, e o PMDB, em lugar de adotar um comportamento típico de centro, que seria buscar uma moderação entre as partes, uma conciliação, aderiu ao projeto de natureza golpista”, ainda que o golpe tenha uma moldura legal. “Nós estamos diante de um sistema partidário que terá de ser reconstruído.”

Olhando retrospectivamente, que balanço pode ser feito desses 13 anos de PT no governo? “O balanço possível até o final de 2014 seria o de um projeto de reformas graduais, com um pacto conservador, bem-sucedido – tanto as reformas quanto o pacto. O Brasil passou por um momento em que a população de menor renda, sobretudo os mais pobres, teve certa ascensão social. Não houve nada de revolucionário, uma transformação completa das estruturas. Mas o direito efetivo a uma renda básica é algo que vai ser mantido. Mesmo o governo mais liberal neste cenário atual não vai se arriscar a mexer no Bolsa Família. E houve muitos programas nessa direção: Minha Casa Minha Vida, ProUni, Farmácia Popular, Luz para Todos, tudo isso mudou as condições de vida. Insisto: não foi uma mudança revolucionária, ela apontava na direção de um índice de Gini mais equilibrado. Mas, no último ano, com a decisão a meu ver equivocada de adotar o programa defendido pelo adversário, entrou-se numa situação em que uma parte desses avanços talvez tenha ficado obscurecida em razão da perda do emprego e da renda. Esse é o balanço mais realista que se pode fazer”.


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