Os interinos querem mudar tudo

Ivan Martins

O presidente interino Michel Temer com o deputado Eduardo Cunha - Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil
O presidente interino Michel Temer com o deputado Eduardo Cunha – Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil

O que está ocorrendo politicamente no Brasil é uma espécie de estupro à luz do dia. Um grupo de pessoas, várias delas com problemas com a lei, tomou de assalto a máquina federal e está implementando medidas que contrariam o desejo da maioria do povo brasileiro, manifestado claramente nas quatro últimas eleições.

Veja-se o caso do Itamaraty.

José Serra, o ocupante interino do Ministério das Relações Exteriores, anunciou uma guinada radical na política externa brasileira. Ele a quer na direção oposta à que vinha sendo implementada pelo PT. Não se fala mais a palavra Mercosul. O Brasil vai se voltar para os Estados Unidos, Europa, China e Japão, com foco não na geopolítica, mas sim nos interesses comerciais.

Com que autoridade se fará isso?

Serra desdenha do Mercosul há vários anos, mas perdeu duas eleições presidenciais com essas ideias. Elas foram rejeitadas pelos eleitores brasileiros em 2002 e 2010, peremptoriamente. Agora, Serra assume o Itamaraty nomeado por um conspirador – que chegou à Vice-Presidência com o programa eleitoral do PT  e resolve implantar seus planos na marra, virando de ponta cabeça a política externa brasileira.

Com que autoridade, eu pergunto de novo? Quem ungiu as propostas que ele anuncia com tanta empáfia? Onde estão os votos que lhe conferem o poder para criar novas políticas de Estado?

Essas são questões incontornáveis na democracia, mas ninguém as está fazendo. O poder emana do povo e em seu nome é exercido. Gente sem votos que decide implementar políticas públicas rejeitadas pelas urnas alinha-se a uma outra tradição brasileira.

Os golpistas de 1964 escreveram no Ato Institucional Número 1 que seu poder emanava de uma “revolução” e por isso eles se colocavam acima das leis. “A revolução vitoriosa se legitima por si mesma”, disseram. Será que o impeachment, como o golpe, também se legitima por si mesmo?

Não é apenas Serra que está empenhado em apagar da cena pública as ideias consagradas pelos eleitores brasileiros e colocar em seu lugar planos rejeitados pela maioria.

Ricardo Barros, o deputado enrolado com a Justiça indicado por Michel Temer para o Ministério da Saúde, começou dizendo que o SUS precisaria diminuir para caber no orçamento da União – embora o desejo por mais saúde pública de qualidade apareça em todas as eleições e em todas as pesquisas em que se pergunta aos brasileiros o que esperam do governo.

Depois dos desmentidos habituais, soube-se pela imprensa que Barros teve sua campanha política financiada pelas empresas de planos de saúde. É mais um da turma de Temer mudando as políticas públicas na direção contrária à opinião dos eleitores, mas em favor dos interesses de seus patrocinadores privados.

Vai ficando claro neste início de outono que o programa político do impeachment – votado em eleição indireta naquela sessão da Câmara de 17 de abril – é destruir rapidamente as conquistas políticas que colocaram as aspirações nacionais e populares mais próximas dos centros do poder e implementar em tempo recorde políticas que jamais seriam aprovadas em eleições livres.

Temer, Serra e Barros agem como interventores da elite tradicional com a função de corrigir os desvios de 14 anos de PT – desde que não sejam éticos, naturalmente. Com quatro ministros indicados por Eduardo Cunha, um líder na Câmara acusado de assassinato e uma baciada de indiciados e investigados da Lava Jato, o temerato já mostrou que moralidade não é uma das suas 30 prioridades.

Na economia, onde se concentram os principais interesses do mercado financeiro e dos investidores internacionais, as coisas caminham como encomendado.

Entre outras coisas, a nova equipe econômica fala em cortar fundo os gastos públicos, dar independência ao Banco Central e retardar aposentadorias, enquanto Temer incentiva os planos de privatização que decolam no Congresso. Essas ideias liberais foram derrotadas em quatro eleições seguidas, mas agora vão sendo implementadas como se o Brasil fosse o Japão e Henrique Meirelles usasse o cachimbo do general Douglas MacArthur, líder de uma força de ocupação.

Os liberais brasileiros, herdeiros refinados dos escravocratas, acham esse show de autoritarismo sem autoridade uma beleza. Construíram um País para 30% da população e estavam alarmadíssimos com o acesso que os demais 70% ganharam ao Orçamento nas gestões do PT. Inclusão social, cotas raciais, SUS, Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, eletrificação rural, arte na periferia. Quem precisa dessas coisas? Quem paga por elas?

Alardeia-se na imprensa um rombo de R$ 150 bilhões nas contas públicas – quem inventou esse número mágico? – para justificar cortes de orçamento que incidirão inevitavelmente sobre os serviços prestados aos jovens, aos idosos e aos pobres brasileiros, que são aqueles que dependem mais intensamente do Estado.

Como ficou claro no episódio trágico da eliminação do Ministério da Cultura, grupos sem poder econômico não têm mais quem defenda seus interesses em Brasília.

Na ausência de eleições, a generosidade da política brasileira dos últimos anos – limitada e corrompida, mas que tirou muita gente da miséria e da desesperança  dará lugar à velha racionalidade dos patrícios, que usam a máquina pública em seu benefício pessoal e familiar, mas se negam a dividir migalhas com os 70%.

O suspeito de assassinato que Temer escolheu como líder do governo na Câmara por ordem de Eduardo Cunha – seu nome é André Moura – está sendo processado no Supremo Tribunal Federal por desviar verbas municipais da pequena Pirambu, em Sergipe, para pagar alimentos, transporte e até conta de celular para a sua família.

Se a interinidade imoral de Temer precisava de um símbolo, já tem. 

* Ivan Martins é jornalista e escritor.


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