Li O Encontro Marcado uma única vez, aos 17 anos, no colégio, por sugestão de um professor. Isso foi em 1984. Peguei um exemplar na Biblioteca Pública, devorei de uma tacada só − coisa rara para mim, que costumo ler bem devagar, de forma interrompida, incompleta. Quando tento me lembrar desse romance hoje, mais de 30 anos depois, a sensação imediata é a de um grande afeto, um afeto meio autobiográfico, associado a Belo Horizonte, a cidade em que nasci e sempre vivi. As lembranças da narrativa, no entanto, são escassas. Se faço um esforço, algumas passagens retornam, vagas, incertas. Primeiro, a cena clássica, que está na memória de todos, mesmo dos que não leram o livro. Eduardo Marciano subindo os arcos do viaduto Santa Tereza, com um bando de amigos inquietos − quatro rapazes querendo impressionar. Para mim, nada mais familiar: por mais de uma década, morei em Santa Tereza, com meus pais e depois sozinho.
O viaduto era meu caminho de casa, mas, ao contrário de Drummond e de Sabino, nunca tive vontade de escalá-lo (se tivesse que adotar um gesto semelhante, bombástico, seria o de invadir a pista do aeroporto da Pampulha, como fez o porteiro Jonas, personagem de um conto meu chamado A Pista). Continuo a puxar pela memória, e vêm as conversas, os amigos (que nome eles têm?) discutindo de tudo um pouco, com certa arrogância, mas com inocência também, numa espécie de diletantismo juvenil. Está aí um pouco da relação que eu próprio tinha com meus amigos na adolescência. Na falta de mar, na falta de namoradas, valia nossa boa vontade e o entusiasmo, o prazer de conjecturar sobre física, matemática, filosofia, religião, existência, astronomia, e o desejo de amor e amar, e a melancolia, muita melancolia. Nessas lembranças, sabe-se lá por quê, acabo enfiando um pouco do Amanuense Belmiro, do Cyro dos Anjos, pinçado da década de 30, logo na cena inicial de seu livro, em que um grupo de amigos faz um balanço da vida em uma roda de bar no parque municipal.
Escavo um pouco mais a memória. Os rapazes marcam um encontro para décadas depois, mas ninguém comparece. Então é um livro sobre a amizade, e a dissipação da amizade, mas que hoje talvez soe anacrônico. Na era da internet e do Facebook, o passado não guarda a distância que deveria – simplesmente invade o presente e o satura. A ideia do encontro, do reencontro, e da espera duvidosa, é simplesmente fulminada; o mundo virtual retorna com tudo, com todos os passados, os fantasmas, as fotografias. Sabendo disso, Marciano não teria mais nenhuma ansiedade, nenhuma expectativa.
Lembro-me, afinal, de que havia um encontro com a literatura. Não sei se o livro sugere isso, se põe a coisa nesses termos, mas, para mim, o futuro era e é um encontro literário, com uma obra prometida, por vir. Assim eu projetava, ou projeto, o meu desejo sobre o destino de Marciano. Um encontro que começa e termina em Belo Horizonte, a cidade experimentada como corpo, matéria sensível, concreta. Sei que Eduardo Marciano vai para o Rio. Tal como acontecia com a maioria dos escritores de Minas Gerais, até os anos 90, talvez ele tinha a necessidade, o ímpeto de partir: para ganhar leitores, para ter críticos, comunicar-se com o mundo além dos morros (ou além dos mortos). Acontece que esse movimento, hoje, não é mais tão imperativo assim. Dissipou-se a nostalgia rural, também a família, a tradição dura das mesas duras. E nenhum lugar é tão periférico assim. O percentual de ferro nas almas vem diminuindo, o minério já foi quase todo explorado. Não é preciso inventar uma terra à distância para sobreviver da sua recordação. Todo mundo vai e volta com rapidez. A cidade, a memória e a vida na cidade, em qualquer uma, parece cada vez mais contingente, mais incidental. O dilema entre partir e ficar se resolve como um ato simultâneo, não como uma dor (um retrato na parede). Estamos fora e dentro ao mesmo tempo, em qualquer lugar. Mas, em meio a tantas mudanças que afetam a leitura contemporânea de O Encontro Marcado, acho que algo permanece quase intacto. Como eu disse certa vez, em uma entrevista que dei a Fabrício Marques, Belo Horizonte continua sendo um centro resistente a novidades, à perturbação. Uma cidade que espera, mas ao mesmo tempo rejeita, o acontecimento. Essa posição ambígua, parda, parece bem favorável à literatura.
Pensando em tudo isso, nos restos do romance que recupero, e na grande parte que esqueço, chego a uma conclusão óbvia. O que ficou desse livro para mim foi, no final das contas, aquilo que retenho como minha própria biografia – uma coleção de estilhaços, de fragmentos, um mosaico em construção. Essa é a projeção involuntária que me dá a dimensão do que é O Encontro Marcado − de onde vem a sua força. Seu enredo cede espaço para o leitor, o leitor de Belo Horizonte ou de fora, e é nesse afastamento que intervêm as diferenças, que se quebra parte de uma tradição. Acho que foi isso que o livro de Fernando Sabino me proporcionou. O que precisamente ele escreveu, já não importa tanto.
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